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FILOSOFIAS DA DIFERENÇA

No documento Culturas do Eu (páginas 33-39)

Face à idealidade da instância sujeito entendida como una, as filosofias da diferença operam a desantropomorfização do sujeito através do recurso às categorias impessoais ou coisificadas: “isto pensa”, “algo pensa em mim”, “há pensamento”. Trata-se, já não de conceber uma idealidade (como na represen- tação clássica) mas de localizar as eceidades – lugares pontuais de fluxo de intensidades – configurando uma singularidade, não necessariamente subjec- tivada. Trata-se de entender o sujeito mais como uma singularidade fruto do acontecimento, do devir, como existência dinâmica e não como natureza, iden- tidade, substância ou substrato o que remeteria toda a questão da subjectivi- dade para o fenómeno da identidade estática, de estabilidade. A singularidade, portanto, não é aqui sinónimo de identidade, nem tão pouco de subjectividade no sentido da consciência. O sujeito em devir vai acontecendo e, por isso, ele é mais fruto da existência do que propriamente predestinação, essência. Efeito mais do que causa. As filosofias da diferença, herdando de Heidegger o Dasein,

abandonam, digamos, a questão ontológica para perspectivarem o corpo e seus processos de subjectivação de acordo com a própria experiência do vivido, com o estar no mundo. Assim, as filosofias da diferença relevam do primado da multiplicidade contra a unidade. Bernard Sichère, na análise que desenvolve sobre o pensamento foucaultiano, vinca muito claramente essa viragem apon- tando várias teses, aqui enumeradas: a tese do primado da historicidade sobre a essência, que nega a concepção do sujeito fora ou desligado do processo his- tórico; a tese pragmatista, que insere o sujeito num conjunto de práticas e de produções; a tese da multiplicidade de práticas, de protocolos, de processos e de dispositivos, que prevalece sobre a unidade essencialista do sujeito; a tese do primado do acontecimento e da descontinuidade sobre a substância e a continuidade, que entende o sujeito como o efeito de um conjunto de modos ou procedimentos de subjectivação (1990: 97/101). A emergência das singula- ridades na contemporaneidade acompanha processos de dessubjectivação. A subjectividade deslocou-se para aquilo que considera ser “um novo sujeito” cuja subjectividade se dissemina (1990: 204) e integra a alteridade no próprio processo de subjectivação.

A corporeidade toma relevo como uma espécie de alternativa à filosofia tra- dicional do sujeito, com tudo o que ela acarreta – dualismo, substancialismo, metafísica, ideologia da interioridade, etc. – para formular posturas outras, impessoais, desinvestidas do humanismo na sua vertente romântica. O sujeito é corporizado e não mais desencarnado.

Não existe, portanto, um conceito unívoco de sujeito. A passagem em aná- lise das posições filosóficas a partir da Modernidade revela o estilhaçar da noção de sujeito, provocado pelo aparecimento de áreas do saber que, segundo pres- supostos e metodologias novas, como as do linguistic turn, desencadearam uma proliferação de opiniões, todas elas convergentes num ponto: o descentramento do sujeito. Reveladoras são as posições no interior do discurso filosófico mas abrindo-lhe algumas brechas, conhecidas pela designação de filosofias da dife- rença. Com Derrida e a noção de diferença/ diferância, com Deleuze e o princípio da desmultiplicação em devir da subjectividade, a identidade transforma-se em singularidades assentes numa “diferença ontológica”.

Falar de sujeito para Derrida, mesmo recusando-o, é, de uma forma ou de outra, fazer a sua genealogia. Já em 1989, numa longa entrevista dada a Jean- -Luc Nancy, no quadro do colóquio: Confrontation: après le Sujet qui vient, Derrida expõe o seu ponto de vista sobre a questão, dando-se bem conta do regresso do sujeito. Aliás, joga mesmo com o termo de “liquidação do sujeito” que, segundo o autor, revela, em germe, a sua reabilitação. Assumindo a herança do sujeito que

o Dasein ainda integra, Derrida não crê que a diversidade do pensamento filosó- fico tenha operado a sua abolição. Tratou-se, antes, de um descentramento que é uma reinterpretação da questão, por contraponto às filosofias clássicas, desde o cartesianismo. Pensar o sujeito será, antes de mais, perguntar-se o que os filóso- fos entenderam por este conceito. Este nome, o termo “sujeito” deverá ser, desde logo, inscrito na determinação predicativa que lhe dá forma, a saber: o sub-jectum – um ser-jectado, um en-jeitado, um cuspido – como forma de organização das suas paragens e estabilidades. Falando de lugar, de preferência a sujeito, Derrida vê nele um não-lugar, sobretudo não um lugar fixo, não uma identidade mas antes uma instância sem stance – estabilidade, presença permanente, manuten- ção da relação a si, à consciência, à lei, à história – que se definiria pelo jacto. O nome próprio, as marcas e representações assinalam paragens, identidades que o arrastam e fixam. O nome dito próprio é a marca por excelência da identidade com tudo o que esta acarreta de paradoxal e que M. Taylor, interpretando Der- rida, formula da seguinte forma: “Marca da coincidência paradoxal da liberdade e do destino, o nome força cada si-mesmo à decisão.” E acrescenta, recorrendo a Nietzsche “Como tornar-se no que se é” (1985: 64). Pode encarar-se o sujeito, não como aquele que jaz mas como aquele que erra, num movimento que é um jacto de destinerrância (1989: 95).

O ego está marcado pelo não-ego, numa relação de diferância, de suplemen- taridade: alter-ego. O sujeito não jaz, é instável. O outro é o introjectado, antro- pofagicamente. A destinerrância designa essa mácula originária e fundadora do mesmo, da ordem da alteridade; qualquer mesmidade está à partida maculada por essa alteridade. Do sujeito clássico, Derrida recupera, no entanto, a sua rela- ção ao outro. É ela que lhe confere responsabilidade ou calculabilidade política. Porque de inserção política se trata (1989: 103). A questão é que, mesmo para a filosofia clássica na sua variedade autoral, nunca houve verdadeiramente uma unidade tida por sujeito: O Sujeito. Mas perspectivas, metáforas, efabulações. Multiplicidade de identidades construídas pelo e no logos. A constatação, por- tanto, vai no sentido de promover singularidades que possam corresponder ou não à gramática pronominal do quem.

Na verdade, o pensamento de Derrida, criticando a filosofia clássica que baseia o sujeito no princípio da identidade, invocando Heidegger e a noção de ente mas também Freud com a sua tópica – o primeiro talvez a desestabilizar o sujeito – põe em causa os fundamentos do sujeito baseados na origem abso- luta, na vontade pura, na presença total a si para o descrever como uma “não coincidência consigo” (1989: 98). Correndo o risco, como ele próprio antevê, de não poder chamar sujeito a tal instância, Derrida faz uma longa reflexão sobre

o limiar animal do humano, que não entra nem na categoria sujeito nem na de Dasein. No entanto, diz ele, há um discurso dos efeitos de subjectividade, como a auto-afecção, que continuam a ser atribuídos ao humano. Por isso fala de rea- propriação ou de ex-apropriação pelo humano daquilo que não é unicamente humano (1989: 100). Haverá uma subjectividade não humana, no animal, por exemplo. A questão pode colocar-se também, na relação que sempre se deu como óbvia entre a categoria sujeito e o Humanismo tradicional onde ela tomou lugar, um lugar falogocêntrico. O descentramento derrideano passa por aí, pela revisão da posição judaico-cristã que o sujeito ocupou e que constituiu, ao longo da histó- ria ocidental, o “esquema dominante da própria subjectividade” (1989: 109).

Nesta destinerrância, o subjectil (de preferência a sujeito), aquele que assim foi de jacto, pode ter paragens, reapropriações e ex-apropriações, mas a sua condição será sempre a da incompletude que é abertura. Só ao homem cabe o destino de ser enjectado e de se tornar um ente. Um quem que não se apropria do outro, da sua totalidade, pois há sempre algo de inapropriável no sujeito-outro. Há sempre algo não-identificável, em si como no outro (1989: 106).

A proposta deleuziana sobre o sujeito é também ela marcante na medida em que desmonta a identidade em micro-individuações que são singularida- des não subjectivas. Deleuze coloca os fundamentos do conceito de sujeito de uma forma breve e muito clara (1989: 89). Para definir esse conceito, determina as funções que ele preencheu ou preenche ao longo do pensamento filosófico. E apresenta duas que configuram o conceito: a função de universalização e a função de individuação. O conceito de sujeito aliaria um je universal e um moi individual. O que acontece é que o conceito de sujeito agregou formas de singularização opostas ao estatuto universal e que, por seu lado, estabelecem vizinhanças entre si. Quer dizer que “a função de singularidade substitui a de universalidade” (1989: 90) e o singular entra em combinações múltiplas, em heterogeneidades, desfazendo aquela ideia da unidade do sujeito. Uma dessas singularidades é a do acontecimento que desestabiliza por assim dizer a uni- dade do sujeito e lhe retira a universalidade. Ao sujeito-indivíduo substitui-se uma ecceidade – esta coisa, haec – uma individuação que acarreta a dessubjec- tivação do sujeito. As ecceidades são agenciamentos, acontecimentos. Por isso encontramos já em Mille Plateaux (1980) a indicação do pronome impessoal il (no regime impessoal que toma na língua francesa) como uma não-pessoa indi- viduante, entre um eu e um tu. Deleuze conclui então que o sujeito, enquanto noção filosófica de base, terá perdido o seu interesse dado que as funções que desempenhava se deslocaram ou se multiplicaram, como é o caso da considera- ção de “singularidades pré-individuais e de individuações não-pessoais” (ibid).

Alerta ainda para o perigo da supressão de conceitos, já que eliminaríamos, no mesmo movimento, o arquivo textual da filosofia que deve ser interrogado constantemente. É essa a postura a tomar.

Para o aprofundamento desta multiplicação das singularidades que consti- tuem doravante o sujeito, torna-se incontornável uma revisitação do texto que constitui a referência ao pensamento, ele próprio múltiplo, de Deleuze e Guattari. A prática de escrita que em Mille Plateaux se experimenta releva, na própria praxis escritural, de um descentramento da unidade sujeito, dado que este sujeito de escrita é desde logo duplo.

O que nela se torna actuante é a recusa de uma teoria do sujeito baseada na ordem da representação. A dupla autoral parte de uma outra escrita, de uma outra singularidade, a chamada filosofia (nietzscheana) do intempestivo, para interro- gar a instância sujeito. O agenciamento como dispositivo indica emissão e distri- buição de singularidades inscritas na ordem do maquínico não subjectivado. O sujeito dissolve-se, estilhaça-se dando origem a uma teoria das multiplicidades, que é corolário das singularidades. A dessubjectivação do moi e do outro assegura emergência das singularidades do desejo que deixam de ser pessoais ou extensi- vas. Nesta des-topografia do desejo, o campo de imanência não se confunde com a interioridade de um eu nem com a exterioridade de um outro, ou de um não-eu: “Trata-se antes de um fora absoluto que já não conhece eus porque o exterior e o interior fazem ambos parte da imanência em que se fundiram” (1980: 194). O prazer é tido como fluxo do desejo – imanência – e não já como dependência rela- tivamente à falta originária, formulada aqui pelos três fantasmas da psicanálise: a falta interior (id), o transcendente superior (super-ego), o exterior enquanto apa- rente (ego). A proposta deleuze-guattariana descentra-se relativamente à psicaná- lise de inspiração freudiana por a considerar imbuída de uma estrutura familiar burguesa. A teoria do Corpo Sem Órgãos – CSO – é a sua bandeira. Entendido o sujeito como corpo, mas sem órgãos, a proposta inscrita em Mille Plateaux é a da definição do desejo/prazer como intensidade, fluxo, onda, vibração. Aliás, o pensamento deleuze-guattariano enceta uma outra via para pensar o sujeito que o retira da lógica da representação para a lógica do movimento. Mas oferece uma explicando para a sua constituição pelo recurso a três estratos: o organismo, a sig- nificância e a subjectivação (1980: 197). O organismo é entendido como o regime da regulação; uma função, uma coagulação ou sedimentação. Por seu lado, a sig- nificância é a instauração da relação S.te/S.do, intérprete/ interpretado que regula o espírito: “A significação está para a alma assim como o organismo está para o corpo” (1980: 198). Ela permite organizar o sentido e constituir assim o ponto de ancoragem do sujeito. Por fim, a subjectividade é uma sujeição aos lugares de

sujeito da enunciação projectado no enunciado contra o perigo do vagabundo: “os pontos de subjectivação fixam, prendem à realidade” (ibid). O sujeito tal como o herdámos, é então, segundo esta proposta, o resultado de três pontos de anco- ragem que lhe definem a ordem da representação. Como se depreende, então, a teoria do sujeito resulta de uma estratificação de instâncias. Os estratos são uma questão de coagulação, de sedimentação (1980: 201). A desarticulação dos estra- tos através do nomadismo, da experimentação, do movimento, confere ao CSO a oportunidade de conexões, conjunções, territorializações e desterritorializações, como se pode ler em Mille Plateaux:

“conexão e conjunção de fluxos: a conexão marca a maneira como os fluxos descodificados e desterritorializados se relançam uns nos outros, precipitam a sua fuga comum/.../ a conjunção destes mesmos fluxos indica antes a sua paragem relativa como um ponto de acumulação que entope ou colmata as linhas de fuga operando uma territorialização geral e faz passar os fluxos para a dominação de um deles capaz de o sobrecodificar” (1980: 269). O fluxo desterritorializado, por exemplo, a burguesia da época moderna, opera a acumulação e conjunção de processos – tecnologias, saberes, agencia- mentos de circuitos – e sobrecodifica, territorializando, colocando sob a sua dependência a Igreja, a Nobreza, os artesãos e os camponeses. Na ponta da des- territorialização, uma espécie de acelerador de partículas, opera a reterritoria- lização como sua paragem. O descentramento deleuze-guattariano verifica-se pela negação. Aquilo que não é corpo não se define nem pela forma, nem como substância, nem como sujeito, nem pelos órgãos ou suas funções. Mas sim pelo conjunto de elementos materiais – as afecções – nas relações de movimento ou repouso, de velocidade ou lentidão. Haverá então uma cartografia do corpo e a latitude como a longitude são as suas coordenadas. A proposta deleuze-guatta- riana não exclui, muito pelo contrário, uma semiótica mais fina que trabalhe os processos ao nível das suas manifestações, dos regimes de signos, como eles lhes chamam. Aliás, o apport guattariano é devedor de uma sólida perspectiva hjelmsleviana.

Encontramos, não ao nível dos conceitos desenvolvidos mas ao nível da dina- mização propulsionadora desta filosofia, pontos de contacto com a proposta derrideana. Percebe-se, por outro lado, que esta linguagem dos anos 80 permita formulações exigíveis em certos meios onde se torna imperiosa a consolidação das democracias (ou o perigo existente da sua falência) e a urgência de um tra- balho político activo. Talvez por isso, as propostas deleuze-guattariana tenham

encontrado o seu território mais fértil na América Latina, pela situação política e o campo de acção que promovem.

O interesse e a pertinência das várias teorias do sujeito não é, de modo nenhum, a da formulação de uma verdade que destronaria uma outra anterior, mas a da resposta adequada a determinadas questões que vão sendo alteradas relativamente ao mesmo objecto. A própria literatura, a partir de Mallarmé, veio exigir um outro tipo de olhar e de abordagem aos processos de dessub- jectivação. Tratar-se-ia, então, de encontrar essa outra gramática discursiva da dessubjectivação. Já não um eu, ou o meu corpo, mas um olho, uma boca, sem que se trate tão pouco do corpo desmembrado, da unidade perdida ou da des- multiplicação do corpo. Ou, de um outro modo, sou legião (1980: 293), essa emergência de uma força anónima, potência de existir mesmo que em efémero acontecimento.

A viragem na teoria clássica do sujeito e a efervescência de olhares que denun- ciam as posições fixas serão também provocadas pela emergência de novas ques- tões, de interrogações que desafiam o pensamento crítico da modernidade.

10. A QUERELA SOBRE O SUJEITO – ENTRE A FILOSOFIA CLÁSSICA

No documento Culturas do Eu (páginas 33-39)