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Para uma semiótica do corpo

No documento Culturas do Eu (páginas 169-174)

DISPOSITIVOS DE MEDIAÇÃO

5 Panofsky, citado por Baptista Pereira (1998: 199) É ainda apoiada em Panofsky a referência ao

2.6 Para uma semiótica do corpo

Encarar o corpo numa ecologia ambiente exigirá indagar a articulação senão mesmo a génese comum entre o sentir e o sentido, isto é, a capacidade de produ- zir semiose. È impossível abrir o corpo ao mundo sem o interrogar do ponto de

vista semiósico. Daí talvez que toda a semiótica (nomeadamente a continental, que se desenvolve na escola de Paris) seja necessariamente fenomenológica.

É precisamente de uma abordagem fenomenológica que partem para o enten- dimento do corpo certas posturas analíticas.

Desde logo, o corpo aparece como entidade a descobrir a partir dos escritos de Freud, não propriamente como corpo clínico, mas antes com uma dimensão psi. É justamente quando o corpo deixa de ser relegado para um mutismo orgânico que ele advém como corpo, isto é, que ele ganha uma dignidade e uma dimensão dis- cursiva até aí inexistentes. O corpo começa a falar, enquanto corpo histérico, por exemplo, numa lógica que abole a dualidade cartesiana corpo/espírito. Aquilo que podemos entender como sendo uma “imagem do corpo” (Vergote, 1980: 178-194) não corresponde a uma realidade anatómico-fisiológica. O corpo vivido é uma recomposição operada por toda uma vida significativa, feita de prazeres, de sofri- mentos, de desejo, de angústias e de apropriação de figuras percebidas no mundo ou colhidas nas informações mais ou menos científicas. Ou, dito de outra forma, o corpo é o unificador por excelência da experiência vivida (Brohm, 2000: 322).

Ora, é ainda desta relação indestrutível entre o corpo e o mundo, que emer- giu uma visão marcadamente linguística do fenómeno corporal. Nessa medida, podemos fazer equivaler ao linguistic turn, de Saussure e Frege, um corporeal turn, com origem na fenomenologia desde Husserl a Merleau-Ponty (Rusthorf, 2000).

O corpo terá sido, porventura, o objecto que mais obstáculo colocou a toda uma postura semiótica que viu na linguagem e, mais estreitamente, na linguís- tica, a base da sua elaboração. Obstáculo, mais do que objecto, na medida em que a semiótica o não pôde reduzir por inteiro aos códigos que, no entanto, ele sem- pre acolheu. Esta perspectiva logocêntrica remeteu desde logo o corpo para um corpo sígnico. Louis Marin, já em 1985, na entrada que elaborou sobre o corpo para a EncyclopaediaUniversalis, chegou mesmo a perguntar-se se, no que diz res- peito ao corpo, poderemos abandonar a noção de signo. Acabando por lhe aplicar as funções da linguagem como dispositivo meramente operatório, reafirma, no entanto, que “o problema essencial que encontra na elaboração de uma semiótica do corpo e do gesto reside na sua subordinação à linguística, às suas categorias e aos seus modelos de comunicação” (1985). Digamos que uma vez ultrapassada a dualidade corpo/espírito é a linguagem e os códigos que vêm inquirir o corpo como seu significante.

Também José Gil, na esteira de uma antropologia herdada de Mauss, entende o corpo como espaço de inscrição de signos/códigos. Entidade ela mesma não codificável, o corpo acolhe os códigos que nele se vêm ancorar ganhando assim um estatuto de significante flutuante. Esta noção fabricada pela antropologia

responde à aporia entre uma corporeidade muda e a sua inegável capacidade de se relacionar com a significação. Apontando claramente para o desenvolvimento de uma semiótica do corpo – “convirá dar um lugar de importância ao corpo, à sua aptidão para emitir signos, para os inscrever sobre si mesmo, para os tradu- zir uns nos outros” (1997: 32) – a perspectiva de J. Gil não esgota o corpo nessa aptidão semiósica. Plural, o corpo possui, deste ponto de vista, a capacidade de captação de signos, que faz dele um corpo-inscrição, corpo marcado pelo espaço e o tempo e pelos códigos sociais; a capacidade de tradução que o transforma num operador intersemiótico de que os sintomas em geral são bem o exemplo; mas possui ainda a própria capacidade de produzir significância e essa é a sua condi- ção mesma enquanto corpo vivo.

Se não há uma língua do corpo, se o corpo não se pode reduzir a falar a lín- gua linguística, o que parece acontecer é que ele só desenvolve esta espécie de infra-língua aquando do acesso à linguagem verbal (ibid: 47). Quer isto dizer que o domínio e o exercício semiósico do corpo só advêm como expressividade na medida em que houve uma integração linguístico-cultural. A língua será por- tanto condição da própria infra-língua, mesmo se esta é não-linguística, pré- -verbal ou até não-verbal. Eis a partilha das águas, uma distinção que permite, ao subjugar todo o corpo à linguagem, no mesmo movimento, libertá-lo, como corporeidade que resiste. É que, apesar de semantizado ou semiotizado, o soma resiste ao sentido, não sendo tão pouco um resto, um corpo despojado de vida, na sua configuração de soma, cadáver. Trata-se de um corpo vivo, de uma singu- laridade no mundo, face ao outro, constantemente interpelado, atravessado por fluxos afeccionais.

A semiótica integra, por exemplo, na perspectivação do imaginário, trabalhada por Jean Petitot (1985), uma fundamentação fenomenológica. É ainda a noção de lieb que está na base da formação do imaginário como puramente tímico ou afeccional, a-semântico, antes mesmo da simbolização que dará lugar à subjecti- vação. O imaginário como carne constitui portanto uma instância heterogénea, substância donde emana a significação, aquando da aplicação de uma sintaxe actancial, como procedimento de subjectivação. Este imaginário substancial não tem a ver com com as representações ficcionais mas é antes um medium, entre a regulação biológica propriamente dita e uma indecibilidade da coisa sentinte.

Landowski, semioticista francês, também ele pertencente à Escola de Paris, num esclarecedor artigo (Landowski: 2001), faz um balanço geral das concepções que a semiótica e também a fenomenologia produziram sobre o corpo face à con- cepção clínica que a própria medicina desenvolveu e que informam a noção cir- culante nas ciências sociais. Começa por se referir à ambiguidade do corpo, ao

mesmo tempo familiar e estranho. Familiar por se encontrar demasiado perto, menos redutível ao estatuto de objecto; estranho pela ignorância do seu funcio- namento. Assim, um olhar externo, clínico por exemplo, que objectiva o corpo, opõe-se à experiência de uma apreensão efectuada do interior, fundada num vivido que pode fazer sentido. Portanto, segundo ele, há duas concepções antagó- nicas e quase simétricas do corpo e do sentido, que se trata de analisar: uma, a do corpo dessemantizado, outra, a do corpo desencarnado. A primeira perspectiva, é a de um corpo que assenta na sua função puramente orgânica, como um con- junto agregado de órgãos. Despido do sentido que tem o corpo para cada um, este corpo que a ciência, a clínica, desapossou de alma ou de consciência, é o equiva- lente ao corpo morto. Assim, para a medicina, um paciente é um corpo desperso- nalizado, dessemantizado e é nessa condição que ela o trata. É impossível à medi- cina interessar-se pelo corpo “do interior”, isto é, coincidindo com “aquilo que nós somos”, refere Landwski (2001: 273). Aquilo que é cientificamente observável diz respeito aos estados de “organismos anónimos”; aos “corpos despersonalizados” (ibid), dessemantizados. O tratamento psiquiátrico é disso uma prova, dado que as perturbações do espírito acabam por ser tidas também como puras disfunções orgânicas, onde intervém a acção química do fármaco. É que, para a medicina, curar um corpo doente não equivale a curar um sujeito que sofre. O corpo objec- tiva-se na mesa do hospital: “Aí, opera-se a redução do sentido à função, mediante a assimilação sistemática das perturbações do espírito a puras disfunções orgâ- nicas…” (2001: 274).

O corpo da medicina é, portanto, um corpo-objecto que deixa de fora o sujeito que dá sentido às afecções da carne. Diríamos, convocando a perspectiva feno- menológica, que é um corpo sem mundo. É que aquilo a que chamamos sujeito excede a totalidade dos órgãos de que é composto. Mas o sentido, como expe- riência vivida, do interior, pelo sujeito, é evitado pelo médico que propõe signifi- cações. A medicina não se ocupa desse sentido experienciado. Daí que o sentido vivido do interior do corpo não tenha a mesma dimensão para o médico e para o paciente. A medicina pode salvar sob condição de reduzir o paciente ao estatuto de não-sujeito, coisificando-o.

Do outro lado, segundo Landowski, encontramos na semiótica, o sentido desencarnado. Isto é: se a medicina dessemantiza o corpo, as ciências humanas desincorporam o sujeito. O sentido não parece depender do corpo, depende antes de instâncias específicas, designadas por cognitivas, libertando “o sentido de qual- quer ligação directa com a carne viva dos sujeitos” (2001: 278). Na mesma linha de pensamento que vimos desenvolvendo, Landowski assinala que, na história do pensamento ocidental, existe uma simetria de análise em que as ciências da natu-

reza trabalham corpos desligados do sentido e as ciências do espírito trabalham o sentido desligado do corpo. Ora, a noção de experiência, como vimos, é aqui fulcral para entender o humano ligado ao mundo, deixando de lado “quer o corpo des- -semantizado dos médicos ou outros ‘naturalistas’ quer o sentido desencarnado dos intelectualistas ou outros ‘humanistas’ “ (2001: 278). Como dar conta, então, de um “vivido indissoluvelmente corporal e carregado de sentido” (ibid) pergunta- -se, para concluir que, de uma forma geral, as teorias do signo e da representação já fizeram significar os corpos através, por exemplo, da semeiologia que estuda os sintomas e que assenta na detecção de um conjunto de traços exteriores que indiciam a doença: assim, ter a pele sarapintada é sintoma de sarampo, etc., etc. O mesmo fará o semiólogo para quem esses sinais são índices ou manifestações significantes de significados codificados. Por exemplo, o braço levantado do sina- leiro, significando paragem. Podemos trabalhar essa faculdade do corpo humano fazer signo e encontrar uma homologia entre ambas as perspectivas.

A etologia e a psicologia behaviorista, por exemplo, tentaram associar deter- minada mímica facial a estados de alma como a cólera, o medo, etc. As fisiogno- monias já o haviam tentado desde há muito. Mas, voltando a Landowski, o corpo faz muito mais do que isso, faz muito mais do que produzir signos faz sentido. Fazer signo é uma concepção instrumental do corpo como veículo de significa- ção. Paradoxalmente, se esse fosse o seu telos, então o corpo seria transparente ao sentido, dado que se apagaria para poder significar esta ou aquela significação (ex. braço levantado = proibição de passagem); para servir-se da matéria carnal para comunicar este ou aquele conteúdo. Ora, fixar ao corpo este destino semio- lógico é calá-lo na sua instância de corpo. Só transparente o corpo pode significar; é na condição de se não mostrar a si próprio (tornando-se invisível) que o dedo pode apontar e significar essa indicação. Esse é o paradoxo de uma semiologia do corpo entendida num sentido muito linear.

Como refere ainda o autor, “trata-se de manifestações simultaneamente cor- porais e desencarnadas, de meios de falar com o corpo /…/ sem que todavia seja o próprio corpo que fale” (2001: 281). O corpo, nesta perspectiva aqui desenvolvida, não é uma entidade em si mas uma espécie de utensílio: “o corpo-signo não é um corpo presente em carne e em osso mas uma simples superfície de inscrição explorável, ora para emitir informações, ora para lê-las na expressão corporal de outrem” (ibidem). Assim, os signos dariam acesso a outra coisa que não o corpo mas que ele próprio codificaria. O corpo seria, resumindo, um significante que exprimiria a alma.

Ora o corpo excede a sua função sígnica, dado ser opaco e não transparente, puro significante. Esta opacidade é portadora de conteúdos próprios, de certo

modo parasitas, como considera o autor (2001: 282): pegando no exemplo usado atrás, a vermelhidão como significante, pode ser um núcleo de estados emocio- nais – confusão, surpresa, prazer…; pode até provocar no Outro, em acto, também o mesmo fenómeno que se dá em quem sente. A reciprocidade é baseada no sen- tir do sentido, não na sua significação. Este sentir partilhado, conceito elaborado por Landowski, com base em toda a argumentação aduzida (2001: 282), excede a pretensa e redutora capacidade de expressão do corpo.

O que implica esta consideração da partilha do sentido? Uma interacção entre os corpos. Quer dizer que o sentir compromete os corpos, na medida em que os implica. O sentido é por vezes sentido por contágio. Excede o olhar médico mas também o olhar semiológico na sua vertente tradicional.

Toda a perspectiva aqui sustentada apoia-se na tese da intersubjectividade em que um corpo sentinte interage com outro corpo. O sentido emerge então desse “corpo a corpo”. Este sentir compromete os corpos, no sentido em que os convoca, os envolve, dando origem a algo da ordem da “intersomaticidade”, isto é, esse sen- tir que se dá na partilha. Por isso conclui:

“O estatuto semiótico do corpo não é o de uma substância de expressão disponível para ser articulada com vista a traduzir conteúdos que lhe são exteriores /…/ [mas] uma forma indefinidamente em construção, cujo sen- tido e valor não podem ser apreendidos senão relacional e dinamicamente” (2001: 285)

O sentido é o vivido, em acto. A experiência é aistésica, entre os participantes. Daí resulta uma concepção semiótica inteiramente nova do corpo e do seu esta- tuto face ao sentido: um corpo com espessura, opacidade.

Aparentemente orgânico, natural, o corpo alia, afinal, uma indeterminação sempre flutuante, entre a dimensão semiósica que o atravessa e constitui e a dimensão emotiva que o movimenta, de acordo com a perspectiva de um outro semiólogo, Galimberti (1998), que defende justamente uma semiologia do corpo onde se joga essa ambivalência.

No documento Culturas do Eu (páginas 169-174)