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A QUERELA SOBRE O SUJEITO – ENTRE A FILOSOFIA CLÁSSICA E AS FILOSOFIAS CRÍTICAS

No documento Culturas do Eu (páginas 39-44)

Nas filosofias da diferença assim como, aliás, no estruturalismo, o sujeito é, não propriamente suprimido mas, antes, torna-se nómada, fugidio, camaleó- nico: “individuação mas pré-pessoal, o que cremos poder traduzir por aconte- cimento singularizado mas que, como tal, não se experimenta como um si”, no dizer de Sebbah (2001: 158) a propósito da concepção do sujeito em Deleuze. De qualquer forma, a especificidade da perspectiva deleuziana do sujeito é, para além do mais, a recusa da viragem psicanalítica de inspiração freudiana e que assenta na estrutura da falta. A lógica das máquinas desejantes não é movida pela falta, por uma ausência originária, mas pela dinâmica das multiplicidades singularizantes. O sujeito não é totalmente abandonado mas torna-se efeito e não causa. A plenitude do sujeito originário é vista como uma ilusão filosó- fica. O que move o sujeito são as afecções, as intensidades que o afectam. Esta peculiar aproximação à subjectividade, nas filosofias da diferença, é autónoma dos discursos humanistas e personalistas que são veiculam uma dimensão ideológica. Por outro lado, os processos de subjectivação não são estritamente individuais, podem ser entendidos pluralmente desde que tais pluralidades se constituam como sujeito fora dos campos determinados dos saberes e pode-

res instituídos. Por isso, afirma Védrine, que o processo de subjectivação em Deleuze nada tem a ver com o retorno das filosofias do sujeito. Trata-se antes de relações de forças que se alteraram, na medida em que “Entre o saber e o poder a subjectivação desliza ao mesmo tempo como resistência e conquista” (2000: 150). Há um pano de fundo político na constituição tanto dos processos de subjectivação como de dessubjectivação. Há um fundo político na actual concepção do sujeito.

Tomemos o exemplo de F.-D. Sebbah que, contra a corrente geral de críticos, encontra em Derrida uma inserção numa filosofia da subjectividade embora com características muito próprias. Derrida situar-se-ia numa posição limítrofe rela- tivamente ao sujeito e à presença, dado que a desconstrução é isso mesmo, uma ambivalência. Nessa medida, não poderemos falar propriamente de um retorno ao sujeito mas de uma nova concepção de subjectividade; uma “subjectividade espectral”, tal como a define Sebbah (2001). Nesta perspectiva, Derrida teria sido tão crítico do estruturalismo – uma arqui-presença da estrutura – quanto do pragmatismo – presença da intenção – salvando, neste último, o performativo como acto que desfaz o substancialismo do ser. Uma subjectividade não funda- cional, uma vez que não há presença pura, persiste em Derrida como subjectivi- dade espectral (Sebbah, 2001: capítulo IV – 211/231).

Não é esta, no entanto, a posição de François Laruelle quando analisa a posi- ção de Derrida. Laruelle critica o pensamento da diferância pela incoerência e pela negação da ciência que levam ao seu afundamento e paralisia (1986: 134). Essa incoerência viria de uma hibridação entre o pensamento grego, por via nietzs- chiana e heideggeriana, com o pensamento judaico, por via de Lévinas, o que conduz Laruelle a afirmar que “a diferância é a forma superior embora judaica do logocentrismo” (1986: 143). Portanto, a desconstrução não seria essa tal postura metodológica que pretende superar a lógica binária mas, antes, uma oscilação constante entre posições antagónicas. Nessa medida, o pensamento da diferença indistingue; seria antes o pensamento da indiferença já que ele não pode nomear, posicionar, colocar-se. Assim, Laruelle só vê uma saída: o pensamento do Uno que constitui uma filosofia do Ser. Se, por um lado, a filosofia da diferença acusa a filosofia clássica de dualismos metafísicos, acaba, por outro lado, por tornar- -se a própria dupla do Uno, do Ser, da Verdade. Resumindo a crítica à posição derrideana: é impossível sair da metafísica sem criar uma outra metafísica. O recentramento filosófico dar-se-ia, então, pela crítica à errância, à contingên- cia, à diferença como não trazendo nada de novo e não podendo, para além disso, sair da metafísica. Esse seria o impasse ao qual chegou um certo pensamento que Laruelle define como: TNT – Transcendência Não Tética – a forma que toma

qualquer não uno, o que o leva à proposta de fundação, após a morte dos pensa- dores da diferença, a “teoria da decisão filosófica”, que quer dizer: acabar de vez com a indecibilidade e a repetição, incomodativas ao pensamento filosófico. Tal desiderato tem agora as condições para a sua afirmação.

Por seu turno, Vattimo proclama o ocaso do pensamento da diferença (1988: 143) que, para o filósofo italiano, não é sinónimo de esgotamento da noção hei- deggeriana de diferença ontológica – a diferença entre o ser e os entes (idem: 144). A lógica do seu raciocínio vai no sentido de demonstrar que o pensamento da diferença em Derrida acaba por postular, na sua indecibilidade fundadora, uma “absolutização a qual tende a devolver-lhe todas as características do ser metafísico” (idem: 150). Diversamente, Deleuze partiria das mesmas premissas de Derrida mas evitando a ratoeira da metafísica. Tanto para Derrida como para Deleuze a diferença inscrever-se-ia na negação da presença da origem (ibid). A noção deleuziana de diferença, ao contrário do esvaziamento que nela opera Derrida, torna-se uma “pura noção energética” (ibid), cujo carácter vitalista recu- pera de Bergson. Para Vattimo, a diferença deleuziana nunca é tematizada dado que ela está sempre relacionada com a vida, entre fluxos de territorialização e de desterritorialização (idem: 151). Por isso, propõe um re-questionamento da diferença ontológica heideggeriana, centrada na finitude do ser – o ser-para-a- -morte – que só será possível através de um novo olhar sobre a relação natureza / cultura: “só assim se poderá dizer se esta assunção do ser-para-a-morte como indicador de uma fundação biológico-natural da cultura tem sentido, do ponto de vista heideggeriano” (idem: 160). No entender de Vattimo, a abertura da dife- rença heideggeriana encontra no seu horizonte a genética, a biologia ou a etolo- gia. Na verdade, a filosofia heideggeriana baseia-se em investigações do biólogo von Uexküll, para definir a animalidade como uma abertura opaca, inacessível, relativamente ao humano, caracterizado por uma abertura capaz de desvenda- mento do ente (Agamben, 2002), questão que se discutirá mais à frente. Assim, o humano, imbuído de uma animalidade na sua génese, tenta, segundo a hipótese heideggeriana, uma de duas coisas: ou, através da técnica, governar e controlar essa animalidade ou apropriar-se dela e pensá-la como tal, “como puro abandono” (Agamben, 2002: 121).

Concluímos a querela sobre o Sujeito com a análise proposta por Vincent Des- combes (1989) que situa a crítica ao sujeito na filosofia de inspiração francesa – os estruturalistas e pós-estruturalistas – e de inspiração heideggeriana – o que regionaliza, desde logo a questão. A sua crítica não diz respeito ao sujeito propria- mente dito mas à concepção de sujeito, à ilusão que consiste em “crer que um apaixonado seja o sujeito do seu desejo, que um pensador seja o sujeito dos seus

pensamentos, que um escritor seja o sujeito da sua escrita, que um agente seja o sujeito da sua acção e assim de seguida” (1989: 115/116). Seria, neste caso, impera- tivo de uma metafísica da subjectividade levar as pessoas a sentirem-se responsá- veis, sujeitos dos seus actos, pensamentos, desejos. Ora, observa Descombes, esta responsabilidade não é, senão, uma quimera. Não se pode, prossegue, confundir uma crítica teórica com uma crítica de costumes ou uma crítica prática: a con- cepção de sujeito na sua dimensão teórica permite e fundamenta um conjunto de outros conceitos como seja o de ética, enquanto a sua negação o impede.

Descombes enuncia o que diz ser uma falsa querela em torno da existência do sujeito. Em sua opinião, trata-se, sim, de uma divergência provocada por duas posições sobre o sujeito: a do sujeito enquanto conceito e a do sujeito enquanto indivíduo concreto. Se, no plano teórico se nega o sujeito, no plano prático o ideal da subjectividade revela-se falso e ilusório ou mesmo prejudicial (1989: 116). Para os defensores do sujeito, argumenta Descombes, o plano prático funda o plano teórico: “a filosofia do sujeito não pode ser totalmente inválida do ponto de vista teórico já que é válida na sua vertente prática” (idem). Na verdade, como observa, a abolição do sujeito (prático) impediria diferenciar um tirano daquele que lhe oferecesse resistência. Portanto, o conceito de sujeito torna-se um conceito regu- lador, necessário, em suma.

O passo seguinte será o de compreender o que se afirma ou se nega na asser- ção: “ser um sujeito”. Há que distinguir no termo “sujeito”, a sua dimensão ou significação filológica, tratada anteriormente, da sua significação propriamente filosófica. É este termo no seu investimento de sentido filosófico que deverá, para maior clareza do pensamento, ser totalmente distinguido do termo “pessoa”. Só assim se compreende que, no entender de Descombes, o sujeito / pessoa possa amar alguém embora ele não seja sujeito do seu amor (1989: 119). Desta forma, Descombes distingue entre a pessoa, que usa o seu nome próprio e que é um indivíduo, e o sujeito, categoria cartesiana. O ego de “eu penso” não se refere pois a René Descartes mas “a esse sujeito do pensamento”, o que abre uma distinção filosófica entre o homem, uma qualquer pessoa, e o sujeito, res cogitans (idem: 119). Na sua visão clarificadora da noção filosófica de sujeito, distingue três métodos de constituição deste conceito: o método da pressuposição – em que o sujeito é distinto de qualquer entidade empírica –, o método da experiência fenomenoló- gica – em que o sujeito advém na experiência e na reflexividade que ele próprio sente ao experienciar – e o método de postulação – em que o sujeito não é mais um conceito metafísico ou fenomenológico mas antes uma ideia que permite dis- tinguir entre liberdade e servidão, isto é, um sujeito responsável, um sujeito ético (1989: 119/120).

O que surpreende na constatação de Descombes, relativamente à crítica da filosofia do sujeito, é ela não se situar ao nível da desconstrução do conceito filo- sófico mas antes na acentuação da separação entre pessoa e sujeito:

“A crítica do sujeito não era a crítica do sujeito filosófico mas, antes, um pro- testo contra a tendência a confundir a subjectividade (extraída pelos méto- dos da dúvida, da pressuposição, da experiência ou da postulação) e a vida mental de uma pessoa” (1989: 120).

E especifica utilizando a asserção cartesiana: “eu penso, logo existo”. Não é Descartes que pensa mas algo pensa em Descartes. A génese da pseudo-querela estará, assim, na exagerada identificação feita pela filosofia do sujeito entre o sujeito como categoria e o sujeito como pessoa humana, dotada de corpo, de con- tinuidade, de identidade. A filosofia do sujeito foi-se imbuindo de humanismo, interpretando a seu modo o (ego) cogito cartesiano que, na origem, não remetia para o próprio, mas para o espírito, a alma, etc. que pensa nele. Que seja este o ver- dadeiro sujeito ou que o verdadeiro sujeito se designe por não-sujeito, argumenta Descombes, não é um diferendo filosófico mas terminológico (idem: 121).

Onde está então, segundo o autor, a verdadeira crítica à filosofia do sujeito? No pensamento de Wittgenstein e seus discípulos. De acordo com Wittgenstein, o eu, em “eu penso” não tem uma função referencial. Portanto, a frase não é uma proposição predicativa. Dado que esta não seria a objecção colocada pela que- rela francesa, segundo Descombes (1989: 124), qual seria ela então? Para o autor, todos os argumentos giram à volta da humanização ou desumanização do sujeito filosófico: “as críticas do sujeito são antes as críticas do sujeito humano.” (idem) Nessa medida, a suposta querela exprime uma diferenciação de épocas, já que se pode traçar: a) uma época “dogmática” inicial, em que se opera a diferenciação entre sujeito e ser humano – quando eu penso não sou esse ser humano mas um sujeito pensante; b) uma versão “crítica”, nessa mesma divisão entre ser humano e sujeito, sendo o primeiro uma consciência empírica e o segundo uma cons- ciência transcendental, embora possam coexistir – ser eu a pensar por mim; c) uma última versão “paradoxal” em que existe uma diferença entre ser humano e sujeito e por isso eu não sou o verdadeiro sujeito dos meus pensamentos. Portanto, não sou eu que pensa ou deseja. Para evitar que sujeito tenha o mesmo emprego que ser humano, o termo é abandonado (idem: 125). Chama-se a isto, relembra Descombes, a “desantropomorfização do sujeito” (idem) tal como a encontramos, aliás, em Deleuze e em Derrida. Tal raciocínio poderia, em nosso entender, ser aplicado à instância Outro diferenciando a perspectiva lacaniana, em que o Outro

é uma instância simbólica, da ordem da categorização, da perspectiva levinasiana em que esta figura se aproxima, diríamos, do rosto humano.

Enfim, esta querela só não se torna vazia de sentido se ela se voltar para as questões práticas. Tal vertente está, ainda para Vincent Descombes, inscrita no método de postulação já referido. O conceito de sujeito garante, no plano prático, o sujeito, não unicamente gramatical da acção, mas efectivamente aquele que se responsabiliza pelo agir. O sujeito é suposto ser responsável. Esta posição identi- fica o sujeito com o ser autónomo; não com o ser empírico mas com a categoria verdadeiramente livre e responsável que é o sujeito. Daí se poderá inferir, como o faz, que: “A subjectividade já não é aqui considerada como a marca distintiva de uma classe de seres. Ela é um ideal, uma ideia reguladora segundo a qual alguns seres, de facto ‘heterónimos’, trabalham para o seu próprio aperfeiçoamento.” (Descombes, 1989: 127)

Independentemente da adesão ou não a esta crítica que fecha a multiplicidade de perspectivas sobre a noção de subjectividade, cabe precisar que a crítica à filo- sofia do sujeito no pensamento francês vai mais longe do que o panorama que dela traça Descombes. Vai mais longe no sentido de retirar ao sujeito, entidade filosófica e não pessoa, o pleno domínio sobre a consciência e a plena identidade com a consciência do ser, descentrando o sujeito para o constituir como um pro- cesso, isto é, uma dinâmica, um devir e para o configurar através de procedimen- tos ou de dispositivos de subjectivação, dos quais a ordem do simbólico, apesar de configurar uma posição logocêntrica, é, por excelência, determinante. A falta de mundo, que em Heidegger caracteriza a animalidade, vem dessa ausência de um “pensamento de fora” para empregar a expressão foucaultiana. Desse fora que permite dar forma ao pensamento, que permite tão simplesmente pensar.

Encontramos, deste modo, a configuração de uma ideia de sujeito ético, o sujeito da acção que se quer responsável, por exemplo na concepção ricoeuriana de sujeito que aqui ficou exposta. Veremos, no próximo capítulo, em que medida os dispositivos que configuram o sujeito lhe permitem, justamente, tornar-se responsável e assumir compromissos. Neste domínio, Ricoeur, como Derrida pensam uma dimensão ética e mesmo política do sujeito.

No documento Culturas do Eu (páginas 39-44)