• Nenhum resultado encontrado

Dos specula medievais ao pensamento moderno

No documento Culturas do Eu (páginas 138-140)

DISPOSITIVOS DE MEDIAÇÃO

5 Panofsky, citado por Baptista Pereira (1998: 199) É ainda apoiada em Panofsky a referência ao

1.8 Dos specula medievais ao pensamento moderno

Esta transposição dos dispositivos ópticos para a pintura e seus efeitos de ilusão, encenando-a como a apresentação, têm a sua aplicabilidade também no universo textual. A escrita desenvolve, ela também, procedimentos de racionalidade que foram, desde logo, remetidos para os dispositivos quer especular, quer vítreo. Em latim, reflectere significa reenviar para trás; reflectir; meditar. Assim, depa- rámo-nos com a reflexão escolástica – os specula, por oposição ao pensamento moderno que se basearia no efeito de transparência, na observação vítrea.

A speculatio latina aliada à contemplatio forma a dupla que mais se aproxima da theoria grega. Trata-se da busca do saber pelo saber que desemboca no próprio termo especulação, termo que tomou, posteriormente, uma dimensão pejorativa, por gratuita e fantasista. Speculum – designa a perfeição da visão exacta e com- pleta. A metáfora do espelho, difundida nesses pequenos livros de reflexão moral e confessional, deu origem a um género didáctico em que se abordavam questões teológicas e filosóficas, entre outras. O género literário adoptou esta designação no fim do século XII, proveniente de uma passagem de Agostinho que diz que a Escritura reenvia a cada um a sua própria imagem. Embora de carácter enciclo- pédico, os specula indiciam uma forma específica de olhar o mundo. Tal como se passa com o eu, o mundo é um espelho reflector do sentido divino. Os specula tratavam do Homem e do seu lugar na natureza e, desde a alta Idade Média, que abrem uma via confessional, uma variante que se apresenta como um exame de consciência que percorre certos lugares, uma tipologia dos pecados.

Do ponto de vista do dispositivo textual, como assinala Michel Beaujour (1980), o speculum não é narrativo mas sim tópico: “agrupamentos de lugares orde- nados segundo uma metáfora tópica […] que fornece uma taxinomia” (1980: 31). Nesta ordem de ideias, o reenvio de lugar a lugar substitui-se à lógica da sequên- cia narrativa e suas causalidade e finalidade e serve de modelo textual à reflexão enciclopédica e à reflexão de si, no auto-retrato, por exemplo. A fundamentação teológica para a metáfora especular advém da figura do Cristo que é tida por modelo. Daí a possibilidade de uma taxinomia das virtudes – qualidades encon- tradas no modelo – por oposição aos vícios – que o modelo não possui. A variante confessional dos specula enciclopédicos são os specula confessionais que classifi- cam pecados e virtudes. Uma tal princesa Dhuoda redige, por exemplo, no século IX, para o seu filho de 16 anos, o manual do perfeito aristocrata e do perfeito cris- tão. Também o Leal Conselheiro, de D. Duarte, se reclama de um tratado de moral, de um dispositivo capaz de reflectir e, portanto, vigiar a consciência individual de si e, por extensão, a prática de governação. Tratava-se de espelhos reenviando

ao leitor a imagem do seu próprio ideal. Da mesma forma, a pintura usou o espe- lho como dispositivo complementar à representação da Virgem e também como dispositivo integrante da figuração das Vanitas. Ambivalência que cobre, em qual- quer caso, textual como imagético, a presença do divino, na sua face de Janus: Bem – Deus, e Mal – Diabo.

A distinção entre autobiografia e auto-retrato, experienciada por Agostinho nas Confissões, como se viu, permite demarcar o regime narrativo do regime especular mas, aplicada à descrição, ela resulta ainda da diferença entre regime especular e o regime vítreo. O desenvolvimento da física do vidro desemboca, no séc. XIII, na invenção dos óculos – incrementando um olhar positivo sobre o mundo. Do ponto de vista retórico, a grande distância que se cava entre a emer- gência do sujeito em Agostinho e a sua consolidação em Descartes é, talvez, a passagem dos dispositivos especulares – o espelho como reflector opaco – aos dispositivos vítreos – transparência no pensar e observância do mundo. Para J.-L. Nancy, a perspectiva de Descartes releva de um paradoxo: “não recusa nada com tanta obstinação como introduzir um pensamento do pensamento, uma reflexividade no cogito” (1979: 34, nota 8). Descartes consolida, assim, a própria instância identitária na transparência. Por seu lado, Foucault (1966: 337) consi- dera que Descartes inaugura o pensamento do impensado visto que interioriza a reflexão. Enquanto o pensamento reflexivo se sustenta da mesmidade, o que aparece no pensamento moderno é o Outro do sujeito, algo do domínio do não-eu, da alteridade impensada do sujeito. Na verdade, o sujeito moderno só pode pen- sar o Outro e o mundo na medida em que se constituiu, ele próprio, como sujeito. O fundamento metafísico do sujeito serve de suporte ao sujeito da ciência e do progresso: “É assim que a auto-reflexão moderna faz depender o domínio sobre o mundo e o seu estatuto de mundo de objectos para um sujeito livre e consciente de si, que traz a promessa de um mundo livre” (Gasché,1995: 36).

Descartes instaura, pois, uma postura nova, a do sujeito da transparência que, assumindo o seu lugar de observador, estabelece como objectivo, atingir a ver- dade. Trata-se da “emergência do sujeito racional” de que Cascardi determina a génese, ao considerar que Descartes funda a filosofia como “uma actividade livre e racional [que] consiste em elaborar representações exactas do mundo” (1995: 33-35). Este “olhar à janela”, sustentado por um edifício estruturante que é a pers- pectiva, remete o pensamento para o mesmo plano da perspectiva artificial na pintura, como faz notar o próprio Cascardi: “Tanto a perspectiva como o cogito garantem uma uniformidade e uma regularidade das proporções e sugerem uma forma de ver que poderia, em princípio, ser a de qualquer um, mas definem ambos a relação do sujeito ao mundo em termos puramente formais” (1995: 43). A partir

da assunção da razão, Descartes pode olhar o mundo, a natureza, como alteri- dade. A diferença entre o pensamento reflexivo de Agostinho e o pensamento da transparência cartesiano poderia estabelecer-se pelo lugar que a dúvida ocupa em ambos. Ora, como assinala Larochelle, a verdade em Agostinho é uma finali- dade a atingir mas por um percurso de incertezas, de sofrimento, de interrogação em que o próprio se põe em causa. Por seu lado, a certeza inaugura, em Descartes, a procura em vez de a concluir: “De um lado, o modelo da reconciliação desenvol- vido por Santo Agostinho parte de um desconhecimento (pejorativo) de si para o abrir, por redenção, sobre uma consciência do horizonte humano. Do outro lado, o imanentismo cartesiano caminha, ao invés, do conhecido (melhorado) em direcção ao desconhecido no propósito de estender progressivamente o saber por contenção da dúvida ou pelo cintilar ad infinitum das certezas” (Larochelle, 1995: 70). De qualquer forma, segundo o autor, em Descartes, através de uma prática de “dissipação da incerteza” que “reencontra o mito da transparência” o sujeito nunca reduz a dúvida posicionando-se, paradoxalmente, como sujeito absoluto e no entanto ausente (1995: 75). Trata-se, nesta ruptura, de uma mudança de para- digma: da interioridade reflexiva para a objectivação de si e do mundo.

No documento Culturas do Eu (páginas 138-140)