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Fronteira animal/humano

No documento Culturas do Eu (páginas 159-163)

DISPOSITIVOS DE MEDIAÇÃO

5 Panofsky, citado por Baptista Pereira (1998: 199) É ainda apoiada em Panofsky a referência ao

2.2 Fronteira animal/humano

A dicotomia animal/ humano percorre e enraíza-se no pensamento ocidental transformando-se numa evidência inquestionável. Tal partilha verificar-se-ia até pela oposição anterior, a da natureza VS cultura que suporta esta última. Tais dicotomias derivam, no essencial, do enviesamento que o pensamento ocidental operou com a “tese da excepção humana”, tal como a designa Jean-Marie Schaef- fer (2007), tese que enunciaria a humanidade como um ser de excepção de entre os animais. Ancorada numa fundamentação filosófica, esta tese, segundo a pers- pectiva em análise (Schaeffer, 2007), concebe o humano como fundacionalmente autónomo; cujo substrato biológico seria transcendido pela desígnio social e cul- tural que constituem a sua identidade própria (2007: 14/15).

Seguindo a filosofia de Kojève, para quem o humano é um conceito histo- ricamente definido e, nessa medida, envolvendo cesuras e tensões, e não uma espécie biologicamente delimitada, trata-se, para Agamben (2002), de pensar o humano não como uma totalidade de corpo e alma, animal ou sobrenatural, mas, antes, de afirmar essa cesura constitutiva do humano: “o homem como aquilo que resulta da desconexão desses dois elementos” (2001: 31), animal/humano, com vista a uma análise que, ao contrário da metafísica da conjunção, se propõe encarar “o mistério prático e político da separação” (ibid). O limiar consensual da separação animal/humano está ancorado na linguagem. É a linguagem que fez a transversalidade das posições sobre a diferença do humano, estabelecendo a linha de fronteira mas, inevitavelmente, contendo uma dimensão ficcional. Pois é com recurso à ficcionalização que funcionam as máquinas antropomórficas,

seja a antiga seja a moderna, cujas aporias são identificadas por Agamben (2002: 59/60). A máquina antropomórfica dos modernos exclui o homo alalus – homem não-falante – ou o homem-macaco como um (ainda) não humano ou, então, o não-homem no próprio homem, seja ele judeu ou paciente comatoso. Neste caso, o fora é produzido pela exclusão ou expulsão de um interior e o inumano, pela ani- malização do humano. Por seu lado, a máquina antropomórfica dos antigos opera a inclusão de um fora, o não-homem, quer isto dizer que humaniza o animal, o enfant sauvage, homo ferus, empurrando para a mesma categoria o escravo, o bár- baro e o estrangeiro, animais de face humana. As duas variantes desta máquina funcionam com base na mesma oposição, homem/animal e humano/inumano, excluindo ou incluindo, conforme os casos. Só que, em qualquer deles, trata-se de pressupor, desde logo, o humano e em seguida determinar-lhe as excepções. Quer isto dizer que a própria cesura está imbuída já de um pré-conceito acerca do humano, como máquina ficcional de antropomorfização, a que é logicamente impossível fugir. É que a operação de antropomorfização da natureza, da vida animal em particular, recentra o humano como paradigma, como meta-espé- cie. Assim, a racionalidade do humano permiu um olhar confortável e superior, extraindo o humano do outro termo da dicotomia, isto é, da sua fundacional ani- malidade. A tese da excepção humana reencontra no pensamento teológico a sua figuração mais acabada, como se vem afirmando. Podemos considerar mesmo que a tese da excepção humana é uma teologia humanista que ancora o humano na sua origem divina.

Para desmontar a perspectiva humanista que perdurou séculos baseada nesta cesura animal/ humano, Agamben recorre ainda às tomadas de posição de von Uexküll (s\ d\), investigador fundador da ecologia e que podemos denominar também de semioticista. A originalidade das suas descobertas sobre a vida ani- mal deve-se, antes de mais, ao facto de ter desantropomorfizado radicalmente as ciências naturais. Este especialista entende as ciências da vida não tanto como um só mundo unitário e hierarquizado, mas como uma infinidade de mundos perceptivos, todos perfeitos em si mesmos e ligados entre eles apesar de nem sempre comunicarem uns com os outros (apud Agamben, 2002: 63).

Heidegger baseia-se em Uexküll (apud Agamben, 2002: 74): da “pobreza em mundo” ao “aberto”. Enquanto o animal é pobre em mundo, o humano é forma- dor de mundo (idem: 75). O animal pode comportar-se no seu meio ambiente, mas não ter uma ideia do que o envolve, um mundo. Tem um comportamento instintivo mas não uma percepção. A questão que aqui se debate permite dife- renciar o animal, pobre em mundo, que reduz o seu universo aos marcadores de significação, que são os seus desinibidores – a teia para a aranha – sem capa-

cidade de uma visão de fora ou, sequer, de uma perspectiva de conjunto, do humano, entendido como aberto ao mundo, por ter a capacidade de uma visão global, de uma perspectiva de fora. Ver a floresta e não somente a árvore ou a sua sucessão. Já que, para cada observação, há marcadores de significação que ligam essa observação ao contexto em que é feita. Caso da ideia de floresta, que não existe na natureza mas tão só no observador. Somente, o facto de ele não possuir mundo também não relega o animal, e isto por princípio, para o lado da pedra. Com efeito, a aptidão pulsional de ser tomado pelo que desinibe é já um embrião de abertura a…. Para o animal, o mundo são os estímulos que o “incitam a abrir-se num campo de excitabilidade” (Heidegger, apud Agamben, 2002: 88); animais e plantas dependem de algo exterior mas “não são capazes de ver o seu ser desvelado na liberdade do ser” (ibid: 89). Agamben explica essa diferença:

“a abertura do mundo humano – enquanto ela é também e antes de mais abertura ao conflito essencial entre desvendamento e turvação – não pode ser obtida senão com a ajuda de uma operação efectuada sobre o não-aberto do mundo animal. Ora, o lugar dessa operação – em que a abertura humana num mundo e a abertura animal ao desinibidor parecem por um instante se reunir, – é o tédio” (2002: 95).

O humano deixa de ser definido como uma coisa ou outra, mas nessa dimen- são de abertura ao mundo. Definições compartimentadas de homem, em termos de um ser bio-psico-social ou de estrutura psíquica, por exemplo, comprometem o entendimento do fenómeno do existir humano e, na mesma lógica, do existir animal. Por isso é tão novo esta concepção de tédio como ponto de ancoragem do vivo. Na verdade, de um ponto de vista epistemológico, deveremos considerar, como afirma Heidegger, que aquilo que encontramos depende necessariamente da metodologia que utilizamos.

E Heidegger adverte que há ainda a realçar uma outra questão, a de que o humano é um ser histórico; a temporalidade determina-lhe a existência. Não que o animal seja anistórico, e essa discussão ancora-a ele em Nietzsche. Na verdade, o animal vive na dimensão do instante, não possuindo a distensão do passado ou do futuro. E assim retira desta constatação a seguinte ilação:

“Não é pelo facto de o animal esquecer que ele não fala; mas é porque nada pode dizer (já que a sua relação ao lhe faz falta) que o animal tem necessaria- mente de esquecer” (Heidegger, 2003: 275).

Heidegger, considera assim, que a anistoricidade animal não o é verdadeira- mente, já que ele não possui essa temporalidade onde o esquecimento se integra. Resta a grande interrogação sobre a linha de demarcação do humano face ao ani- mal, que implica ainda a própria concepção de que o humano, como vivo, é já, ele também, animal.

É este vivo, por outro lado, que, irrompendo como conceito operativo na epis- temologia das ciências contemporâneas vem deslocar e descentrar a clássica epis- temologia diltheyana cuja clivagem se dá entre ciências da natureza e as ciências do espírito –wiessenchaften Geistes. Ora, as ciências do vivo englobam hoje tanto a psicologia como as ciências cognitivas, tratando estas tanto da mente animal como da mente humana. A etologia, por seu lado, vem afirmar-se também num domínio trans-animal, se assim podemos dizer, de modo a recuperar e determi- nar comportamentos comuns ao vivo ou a certas espécies. A grande mutação operada por Uexküll, justamente, foi a de não executar a cesura animal/humano, considerando cada espécie com a sua singularidade e especificidade. É nesta ordem de ideias que devemos entender a noção de vivo, retirando-a dos domí- nios do pensamento a que estava confinado. Quer as ciências da natureza, quer a medicina definiram e delimitaram este conceito que não mais saiu do quadro das suas análises. Como se pergunta Schaeffer (2007: 15), como foi possível que, com o avanço das neurociências, da etologia, da psicologia cognitiva, etc., não se tenha procedido à revisão dos compartimentos em que a ciência dividiu o vivo. E que haja ainda reacções que ele apelida de segregacionistas. É neste mesmo sentido que podemos entender a posição tanto de Foucault como de Deleuze, ancoradas a um conceito de vida que constitui o tema de “uma filosofia que vem” e de que nos fala precisamente Agamben (1998: 187), distinguindo, muito embora a singulari- dade de ambas as assinaturas. Também, por seu lado, o conceito de vida precisa, segundo o autor, de um trabalho genealógico que lhe desvele a sua amplitude de conceito filosófico-político-teológico.

É ainda na esteira de Uexküll e baseados nas suas teses que surgem os textos de Deleuze sobre a animalidade e o devir-animal. Estamos hoje aptos a entender que essa elisão do animal no humano, correspondendo às oposições clássicas já debatidas, foi responsável, na história das Humanidades, pela grande clivagem, fundadora de uma metafísica dos desígnios insondáveis do homem, como ori- gem e finalidade do vivo. Deleuze e Guattari propõem-se pensar o humano-ani- mal de um ponto de vista não propriamente biológico mas filosófico, questio- nando, por esse viés, a própria subjectividade e a ideia de indivíduo. Na verdade, o que está presente nesta “filosofia de/da vida” é muito claramente: não uma ideia de sujeito pensante mas, sim, “uma zona pré-individual e absolutamente impes-

soal para além (ou aquém) de qualquer ideia de consciência”, como assinala ainda Agamben, sobre Deleuze (1998: 170).

No documento Culturas do Eu (páginas 159-163)