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Do espelho à fotografia: fixação e diferimento

No documento Culturas do Eu (páginas 143-145)

DISPOSITIVOS DE MEDIAÇÃO

5 Panofsky, citado por Baptista Pereira (1998: 199) É ainda apoiada em Panofsky a referência ao

1.10 Do espelho à fotografia: fixação e diferimento

A fotografia tem aqui cabimento unicamente na medida em que através dela poderemos retirar ainda conclusões, relativamente ao espelho como configurador de subjectividade. Se toda a filosofia do sujeito está centrada e apoiada na refle- xão como sua configuração por excelência, a fotografia, definida como “espelho com memória”, não só leva aos limites a própria fundamentação na reflexividade como, num movimento de desterritorialização que Deleuze tão bem aponta como ruptura inevitável do auge da territorialização – neste caso, o máximo de refle- xividade coincide com a ruptura dessa mesma reflexividade para outros fluxos configuradores – enceta uma outra configuração que poderíamos definir como objectualizante do corpo próprio.

Desde logo, é de salientar uma primeira consequência na imagem captada pelo dispositivo fotográfico: a possibilidade da sua reprodutibilidade. Enquanto a replicação especular, nas tão populares salas de espelhos múltiplos, cria uma mîse en abyme do sujeito e a própria diluição da imagem, a fotografia, replica-se com a mesma nitidez, o mesmo “grão”. Não há, nesta imagem reproduzida, original e cópia. Como dispositivo de retenção e fixação da imagem, a fotografia é, por natureza, reprodutível.

Como aliás assinalou Benjamin (1992), que lhe dedica todo um profundo ensaio, ao contrário do espelho, a fotografia capta a imagem separando-a do sujeito. Quer isto dizer que à contiguidade se acrescenta a dimensão de inscri- ção/empreinte que, se por um lado é um rasto de presença, funciona por outro, como rasto e como ausência. A câmara fotográfica exerce esse poder fascinante e, ao mesmo tempo, tido como mágico, de fixar e autonomizar a imagem espe- cular, isto é, a imagem que, obtida pela e na presença do próprio referente, se destaca e distancia dele. À primeira vista, a fotografia é um espelho que pode ser manipulado pois retém, fidedignamente, a imagem da realidade que nele se projectou.

Ora, acontece justamente na fotografia algo da ordem da cisão: se procura cap- tar essa aura que só a presença aqui e agora, irreproduzível, do sujeito, garante, também se desliga, irremediavelmente, daquele momento único e irrepetível. Transportável e reprodutível, o auto-retrato fotográfico – objecto que mais preci- samente aqui nos interessa – perde a autenticidade de que gozava na pintura. Daí

que, para Benjamin, a fotografia tenha participado do declínio da arte. Ao falar de reprodução, afirma:

“Torna-se cada vez mais visível a imperiosa necessidade da apropriação do objecto, obtido na sua mais intensa proximidade, pela imagem ou, melhor, pelo seu registo. Este, tal como o disponibilizam jornais ou semanários, dis- tingue-se inconfundivelmente da imagem. Nesta, o excepcional e a pere- nidade estão tão intimamente entrelaçados como, naquele, o efémero e o repetível. Retirar o invólucro do objecto, destroçar a sua aura, é a assinatura de uma consciencialização cujo sentido para tudo o que é semelhante no mundo se desenvolveu de forma tal que, através da reprodução, também o capta no excepcional” (Benjamin, 1992, p.127/128).

O paradoxo da fotografia é o de jogar inclusivamente com procedimentos que se auto-excluem: por um lado, a presença do rasto, a presença como rasto, por outro, a reprodutibilidade desvirtuante da aura subjectiva, individuante. A repro- dutibilidade da fotografia profana esse ídolo ou eidôlon que se crê todo o auto- -retrato ser capaz de reter. Lacoue-Labarthe reconhece a questão da identidade da arte como sendo aquela à qual a arte ocidental sempre respondeu da mesma forma: “a arte não se identifica a não ser como aquilo que não se pode identifi- car” (1979: 14). É por isso mesmo que a reprodutibilidade, inserindo uma lógica da identificação, da identidade e, mesmo, da replicação, vem perturbar, senão destinar a arte ao seu declínio. Lacoue-Labarthe extrai das propostas de Benja- min a seguinte conclusão: a fotografia participa do declínio da arte porque sim- plesmente “a reprodução destrói a autenticidade”. Por sua vez, a autenticidade sustenta-se na figura da aura, eminentemente cultual, por oposição, prossegue o filósofo, ao domínio da exposição. E desmonta o dilema benjaminiano, ao consi- derar que a arte se imprime já num movimento em direcção ao expositivo, o qual, diríamos, faz sair as obras de uma dimensão religiosa e sagrada, a do culto para uma outra, profana e laica, a do espaço público. Ora, a fotografia, conclui Lacou- e-Labarthe, é, por natureza, da ordem da exposição. Assim, a fotografia condensa este paradoxo, já que: “no mesmo movimento, destrói a arte cumprindo-a” (1979: 60). O que, no raciocínio deste filósofo, poderia ainda ser revertido num outro paradoxo bem hegeliano: “o que há de mais artístico na arte (a essência da arte) não é a arte mas o religioso” (ibid, ibidem). Precisamente, como assinala ainda o autor, Benjamin faz do rosto humano o último reduto do cultual. Se, como refere Benjamin, o retrato jogou um papel inestimável nos primórdios da fotografia, também será ele, justamente, a desfigurar o auto-retrato e, a partir daí, a obra

de arte. E no entanto, apesar de tudo, a análise de Just another story about leaving convence-nos, a imagem fotográfica de Urs Lüthi é, para além do mais, da ordem do ídolo (ibid: 61).

Justamente, a reprodutibilidade técnica que constitui para Benjamin o fim da arte será, para Man Ray, fotógrafo de profissão, o desafio da sua produção artís- tica. Benjamin repudiou os dadaístas, et pour cause. Pelo contrário, Man Ray sen- tia-se fascinado pela reprodução e pela réplica dos objectos únicos. A esse propó- sito, é dito, aquando de uma exposição sobre o artista: “O acto de inspiração que levava a criar um objecto único era validado pela réplica desse objecto que permi- tia então à inspiração ou à ideia ser difundida.” (“L’atelier de Man Ray”, Pinacoteca de Paris, 2008) A sua obstinação, na década passada em Los Angeles (1940 – 1951), concretizava-se na realização de múltiplos a partir de obras únicas. Para ele, como para alguns seus contemporâneos, era a ideia, na origem da obra de arte, que era importante e não a presença física do objecto. A sua concepção de obra como uma ideia cujo princípio podia ser retido na representação fotográfica e que se poderia igualmente reproduzir à escala industrial é uma das grandes contribuições à arte do século XX.

A proposta de Benjamin tem sido problematizada desde então. Como refere Didi-Huberman, que uma imagem fotográfica possa ser reproduzida à exaus- tão não lhe retira essa origem por contacto que é marca de autenticidade: “Eis provavelmente o que Walter Benjamin não soube ver no seu famoso texto sobre a reprodutibilidade das imagens: que o elemento do contacto permaneça uma garantia de unicidade, de autenticidade e de poder – portanto de aura – para além da sua própria reprodução.” (2008: 72, 73) Assim, a partir de então, a questão foi deslocada da reprodutibilidade como desvirtuação da aura imagética para a ques- tão do contacto. Tal questão levar-nos-ia a debater as imagens virtuais, essas sim, desprovidas de ancoragem.

No documento Culturas do Eu (páginas 143-145)