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Olhando o olhar no retrato

No documento Culturas do Eu (páginas 130-135)

DISPOSITIVOS DE MEDIAÇÃO

1. DISPOSITIVOS DE REFLEXÃO

1.7 Olhando o olhar no retrato

Jean-Luc Nancy discorre sobre a natureza do retrato partindo da reflexão de Jean- -Marie Pontévia: “O retrato é um quadro que se organiza em torno de uma figura” (2000: 13); assim também, a ausência de qualquer ornamento ou enquadramento tem por objectivo destacar a figura. Figura essa, que constitui o centro e a fina- lidade da representação, a própria configuração do sujeito, objectualizado. Quer dizer que o retrato como representação esgota-se na figura, a qual não é suposto agir, nem exprimir, mas estar. A posição do sujeito é uma posição para fora, exte- rior e, nessa medida, qualquer retrato institui-se através desse desvendamento, nessa ex-posição.

A questão que se levanta à representação do sujeito ou ao retrato como figura capaz de apresentar o sujeito é a de saber como essa exterioridade do retrato con- voca a sua interioridade, inefável, e, num jogo de mesmidade/alteridade, produz a própria identidade. Uma complexa relação se estabelece entre interior e exte- rior. A aporia do retrato, refere ainda Nancy, é que a exposição não se resume à exterioridade pura de uma quidade interior. Através do retrato como operação de relação, a interioridade dá-se precisamente no lugar da exterioridade, porque exteriorizada, se assim se pode dizer. Aquilo que o retrato consegue é justamente posicionar esse interior; expô-lo. Nancy formula assim a questão: “O retrato pinta a exposição”. Daí que, na própria mise-en-oeuvre da exposição, ele instaure o sujeito: “Nesse sentido, o sujeito é obra do retrato” (2000: 33). É que o sujeito é ainda, Nancy invoca Lacan, obra de/para um outro sujeito, um lugar resultante de uma relação, ela mesma figurada. O célebre adágio – todo o retrato é um auto-retrato – pode ler-se, para além de outras possíveis interpretações, como movimento de sub- jectivação que a pintura estabelece com o seu sujeito/objecto (tema). Ao recusar reduzir o retrato à representação de um sujeito, o próprio ou o outro, este autor concebe-o antes como sendo, de cada vez, “a execução da subjectividade ou do ser próprio enquanto tal” (2000: 34). A instauração da relação a si, a (ex)posição que é ao mesmo tempo emergência de uma singularidade, seja a do próprio seja a do outro, constitui a especificidade do retrato. Nessa medida, todo o retrato é

auto-retrato ou retrato-de-si, seja qual for o sujeito objecto de retrato, porque nele se joga essa exclusiva relação a si. A operação identitária joga-se na contemplação da imagem cumprindo a função de uma identificação idealizante. A pintura con- densará esse efeito de elevação do sujeito, conferindo-lhe um estatuto e uma inte- rioridade indesmentíveis. Porém, todo o auto-retrato exige uma operação prévia de reflexão mas que se encontra fora da representação; assim é no auto-retrato comum. Como vimos, o dispositivo especular opera essa transposição. Transpor- tar a imagem de si, a imagem reflectida, para dentro da tela exige pois duplica- ções e efeitos. Desde a época moderna que a arte usou o espelho ou o auto-retrato como dispositivo garante da identificação do sujeito, assegurando-lhe uma con- fiança identitária e fazendo dele uma comemoração do si mesmo, no sentido em que conjuga uma imagem fixa do eu, como no retrato romântico, com uma reali- dade imutável (António Rodrigues, 1994: 17-21). O sentimento que um rosto trans- porta será, para a filosofia do sujeito, a indesmentível tarefa da pintura que se esgota no auto-retrato como representação por excelência do si, particularmente na representação do rosto e do olhar como “espelho da alma”. A intencionalidade indesmentível do auto-retrato para o romantismo é a de uma consolidação da superioridade e elevação do sujeito. A reflexividade aponta assim, para um efeito de transparência que tende a reforçar a identificação (Gil, 1994)

Na verdade, se por um lado cabe à figura subsumir a representação no retrato, por outro, o punctum1 do retrato é o olhar. Poder-se-ia dizer que nele, o rosto está

para o corpo assim como o olhar está para o rosto, o que equivale a operar uma metonímia do corpo através do rosto e a centrar no olhar toda a finalidade do retrato enquanto apresentação do sujeito. Na verdade, estas deslocações dão-se por contiguidade exercendo uma função sinedóquica de tal forma que o rosto passará a estar pelo corpo, assim como o olhar estará em vez desse mesmo rosto, num regime de intensificações constantes. O olhar é, em última análise, a reve- lação do sujeito, como lugar de passagem entre a exterioridade da representação e a interioridade que nela se apresenta, seja alma, pathos, ou vida. A economia de qualquer retrato está no olhar, até porque, inversamente, tudo no rosto, tudo no corpo, concorre para intensificar esse olhar, seja a boca num sorriso, seja a pose das mãos, seja a própria postura da figura, complementam o chamado pro- cesso de subjectivação. O olhar concentra, senão mesmo condensa, todo o rosto o qual se torna ornamento, contexto desse olhar, simples lugar que dispõe um olhar. É que a representação do olhar reflui, como se a visão do mundo exterior

1 Termo criado por R. Barthes a propósito da fotografia, e curiosamente definido como picada, pequeno

pudesse des-centrar-se para ver-(se) interiormente, paradoxo da própria pintura. A representação seria assim o recentramento do mesmo, a mesmidade do mesmo captada por inteiro e no seu próprio interior. Do corpo, o rosto, do rosto, o olhar e deste a alma, assim procederia o auto-retrato para agarrar o dentro a que ele, por definição, sempre aspira. Mas, diz ainda José Gil, o dentro revela-se um fora, o máximo de exterioridade que se projecta na tela como o irredutível corpo. Daí que, auto-retarto e retrato se joguem no mesmo desafio: o de tornar o dentro do sujeito um fora e, ao representá-lo como fora, surja o dentro como sua inapare- cida transcendência.

É ainda o olhar retratado que se oferece à penetração da visão do outro, o espectador, uma vez que, paradoxalmente, toda a importância do olhar no retrato não advém da sua vocação à visão, já que olhando, a figura nada vê, mas da sua finalidade no interior da própria pintura, isto é, o olhar justifica-se para ser olhado (Nancy, 2000: 18). O olhar é, como temos vindo a demonstrar, a porta entre a interioridade e a exterioridade do sujeito. Olhar um olhar é perscrutar-lhe o indecidível universo interior, observar o que ele transporta de dentro para fora, o que desvenda. Aí reside todo o desafio do retrato. O olhar é o enigma inesgotável da pintura que a faz ao mesmo tempo tornar-se pintura e sair para fora dela (idem, 2000: 72), exceder-se enquanto tal. É um irredutível que não se trata de esgotar, na linguagem por exemplo, mas tão só de localizar. Que movimento descreve o olhar? O olhar fixa o fora, o outro ou mesmo, o vazio, e ao instituir-se como movi- mento para fora de si, instaura o sujeito nessa movência: “como é que o ser-em-si só tem lugar nesse fora-de-si, à frente de si, em que um rosto dele próprio desco- nhecido recebe o mundo em plena face?”, pergunta Nancy (2000: 75). Tudo reside aí. A subjectivação que emana da pintura não provém de uma qualquer represen- tação da interioridade mas reside nesse movimento para fora, expõe-se ao expor- -se ou, melhor, é o próprio resultado desse movimento de abertura. Um pouco à maneira de Dorian Gray, o sujeito é o retrato. Eis a especificidade da pintura que nenhuma outra linguagem, mesmo a verbal, confere.

Precisamente quando Deleuze e Guattari falam de rostidade entendem-na como um conjunto de processos de subjectivação e de significância. O olhar confere ao rosto um investimento de significância, da ordem da subjectivação. Advertem que o rosto nunca pressupõe nem um sujeito nem um significante prévios. Trata-se exactamente de um investimento de sentido contrário, isto é: é o rosto, como máquina abstracta, que vem a ser preenchido por uma semió- tica de subjectivação. (1980: 222) Quer dizer que a instauração de uma espécie de traço distintivo “humano” à condição de animalidade do corpo dá-se através do olhar e da sua intensificação. O olhar desempenha essa função de subjectivação

do corpo, do rosto. A estratégia de criação identitária consiste então em operar através do olhar uma reterritorialização do corpo. Por que é o corpo, na cultura cristã, subjectivado e pleno de sentido? Porque o corpo operou reterritorializa- ções no rosto. O rosto permite entender o investimento significante, subjecti- vante, que nele foi feito pelo cristianismo – Verónica, vero-ícone – significância, subjectividade, individuação. A contrario, a dessubjectivação do rosto permite o devir-animal como nova desterritorialização, corpo desmembrado, movimento de fluxos, intensidades singularizantes a-subjectivas. É o desafio a que se propõe a pintura contemporânea. Num movimento de desfiguração e dessubjectivação do rosto, toma o olhar como lugar de esvaziamento, de que falaremos adiante. Um tal esvaziamento do olhar, através das mais diversas formas, permite uma desantropomorfização do corpo ou, pelo menos, uma dessubjectivação da figura. É o caso do deslocamento do punctum do olhar para a boca, em O Grito de Münch. Movimento iconoclasta, este, de redução da rostidade a um jogo claro-escuro entre muros, ditos brancos, e buracos, ditos negros. Só assim é possível desdobrar o que o olhar, na pintura, sempre condensou: a vida, o humano, a subjectividade.

Como conceber então um retrato que nega o lugar constitutivo da própria subjectivação? Que suporta um corpo, um rosto, em que o olhar, garante do sujeito e também da vida, se esconde, se vela em lugar de se revelar, desvelar? O retrato mortuário, por exemplo, sempre tratou esse limiar do olhar como limiar da vida, como suspensão do movimento da visão, para, nessa ausência, expor a morte. Percebe-se essa exibição da morte através da subtracção do olhar dada pela representação do rosto de olhos fechados ou então por um olhar vago, não direccionado, que um esgar de lábios muitas vezes sublinha2. Em tais represen-

tações, está também contida a captação desse momento de transição, um estado agonizante, moribundo, entre dois estados – a vida e a morte. O. Calabrese (1997: 82) define, através do par semiótico Tensão/Relaxamento (do corpo), esse trânsito agónico da paixão de Cristo. Mas fá-lo depender de um outro par antagónico que diz respeito, justamente, à visão; a oposição – Aberto/Fechado. Através da análise que desenvolve do retrato mortuário, o autor declara que “os olhos são a represen- tação do elemento somático da vida” (1997: 92), apontando para esta posição aqui defendida de que o olhar, como fluxo de intensidades, subsume quer o sujeito, quer a vida.

2 Cf. O catálogo da exposição que teve lugar no Musée d’Orsay – Le dernier portrait – , entre 5/26 de

Título: Ecce Homo. Autor: Desconhecido. Data: c. 1570. Técnica: Pintura a óleo sobre madeira de carvalho .Dimensões: 89 cm × 65 cm. Localização: Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa

Como abordar, neste âmbito, o enigmático retrato Ecce Homo que consti- tui peça fundamental do nosso património quinhentista3? Antes de mais, Ecce

Homo é o título consagrado do retrato crístico. Título ambivalente, porque ao nomear, denega o próprio nome, uma vez que, justamente, indica um indivíduo que, por ser assim referido – O Homem –, dispensa o nome, é uma categoria. Por outro lado, o título que nomeia esta pintura é, já de si, um acto de lingua- gem, que se designa por ostensão ou mostração. Título em abismo, já que não se limita a nomear, mas nomeia através de um enunciado bíblico (João, 19, 4-6) que é ele mesmo um acto de nomeação. Para além disso, Ecce Homo é a assunção da própria singularidade – ecceidade4 – numa apresentação que reforça a presen-

tificação. Indicialidade pura, de quê ou de quem? De um homem não-nomeado, de um homem que é O Homem, dada a individuação que pelo próprio acto lhe é conferida. É que o enunciado contido neste título caracteriza-se por uma dimensão performativa, instaurando aquilo mesmo que mostra. Enquanto acto performativo, o enunciado “ecce homo” liga, num mesmo momento e lugar, o signo ao seu referente; ligação indissolúvel, já que ela fica devedora da própria referência como presença que é o seu garante. Acresce ainda o facto de aquilo que é dado como presença não ser a referência mas a sua mediação, a própria pintura como representação. Digamos que o referente do enunciado é a pró- pria representação que coincide assim, a partir do dito enunciado, com o seu referente. Isto é, o título a-presenta a representação, torna a representação na própria apresentação, vinda ao presente da figura. Por via do Verbo, da palavra (em acto-ecce-) a figura a-presenta-se, está presente, mesmo se, não totalmente visível (Nancy, 2000: 57,58).

Algumas precisões deverão ser feitas relativamente ao exemplar, aliás, aos exemplares conhecidos na pintura portuguesa, que Baptista Pereira refere. Exis- tem três óleos portugueses identificados com este título e propondo a mesma representação de Cristo: o de Setúbal, o das Janelas Verdes e o de Beja – suspei- tando-se ser o de Setúbal o mais antigo. Trata-se, em qualquer dos casos, da repre- sentação da Ostentatio Christi, tal como a relatou João (19, 4-6), apesar da ausência das figuras circundantes – Pilatos, os guardas, Barrabás e a multidão. A propósito do Ecce Homo de Jan Hey (1494), Panofsky, invocado pelo especialista português,

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