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A MEDIAÇÃO DE LEITURA SOB O SIGNO DO AFETO

Ao considerar a afetividade elemento fundamental na construção da vida psíquica e, por conseguinte, no desenvolvimento da aprendizagem, a relação eu/outro passa a ser a fonte primária na formação de novos leitores. Na verdade, as práticas de leitura se devem às relações que as crianças estabelecem com leitores já formados – sociabilidade necessária para promoção da sensibilidade com o outro. Quando o sujeito se encontra fora do campo cultural de práticas de leituras sistematizadas é o grau de atração que sente com o sujeito mediador que fará o convite para o ato de ler.

O campo emocional tem sido entendido historicamente como sendo o lado oposto à razão, muitas vezes assumindo o papel sombrio da natureza humana, de onde nunca sabemos exatamente o que esperar e que, portanto, é o responsável direto pelos males que nos importunam. Neste caso, caberia à razão o controle sobre a emoção, para que o indivíduo permaneça a salvo de eventuais riscos provocados pelo desequilíbrio emocional.

Contrariando o dualismo razão/emoção, a concepção monista (monismo: do grego μόνος, que significa sozinho, único) afirma que assim como corpo e mente são uma coisa só, pensar e sentir faz parte de um mesmo processo, no qual o homem vivencia simultaneamente. Na verdade, as relações que as emoções possibilitam impulsionam os meios expressivos na construção da sociabilidade. Nesse mesmo plano, é possível dizer que o dualismo inteligível-sensível perde o sentido, pois toda subjeti- vidade se entrecruza com a realidade objetiva dos fatos. Contrariando tal perspectiva, os currículos

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e os programas educacionais centram suas concepções e ações numa dimensão racional-cognitiva, em detrimento da dimensão afetiva.

Na concepção de Wallon (1995), o percurso emocional se ampara na composição do caráter humano, aprofundando as reflexões e moldando as atitudes. Desta feita, os sentimentos liberados em uma relação interpessoal – medo, raiva, tristeza, alegria, compaixão, etc. – podem induzir a uma maior ou menor aproximação com as matérias que envolvem tal relação. Uma correspondência subjetiva que libera motivação necessária para intensificar a criação de sentido.

Durante o processo de formação de novos leitores, tão importante quanto garantir a inteligibi- lidade junto ao texto é provocar a ressonância do sentido na memória afetiva do leitor, como elemento transformador do texto em carne. Facilitadora da interação entre os sujeitos, a afetividade modifica também o intercâmbio com o lido, garantindo a prolongamento das vibrações provocadas pelos efeitos da leitura. Como resultados, a construção de sentido acontece a partir de fatores orgânicos e sociais.

De fato, se consideramos a afetividade como sendo o momento em que somos afetados pelo mundo e pelas pessoas (WALLON, 1995), implicando em mudanças que abrangem os estados de prazer e de mal-estar, podemos dizer que a dimensão afetiva faz parte de qualquer processo de aprendizagem. No caso da formação de novos leitores, o desenvolvimento do gosto pelo ato de ler, marcado pelas relações com o mediador, necessita duplamente do envolvimento emotivo: primeiramente porque as nossas relações carecem de fluidez entre um estágio e outro da vida psíquica; em segundo lugar, porque a leitura envolvente é aquela que resulta de um conjunto de sentimentos e emoções em sua recepção.

Entendendo que a ação do professor não corresponde apenas na tarefa de trocar conhecimentos, o mediador de leitura precisa despertar valores e sentimentos que possam auxiliar as decisões dos mais jovens. Paulo Freire definiu essa relação quando destacou as peculiaridades do educador que tem a afetividade como estratégia de ensino:

o bom professor é o que consegue, enquanto fala trazer o aluno até a intimidade do movimento do seu pensamento. Sua aula é assim um desafio e não uma cantiga de ninar. Seus alunos cansam, não dormem, cansam porque acompanham as idas e vindas de seu pensamento, surpreendem suas pausas, suas dúvidas, suas incertezas (FREIRE, 1996, p. 96).

Decerto que o contrário também é verdadeiro. Em estudos desenvolvidos em seu grupo de pesquisa, Sérgio da Silva Leite considera que quando não há afetividade movimentando as relações nos espaços educacionais, nos dirigimos a “um processo muito conhecido e intensamente estudado, identificado na literatura como o fenômeno do fracasso escolar” (LEITE, 2012, p. 362). Em outras palavras, isso se evidencia com frequência nos altos índices de repetência e evasão escolares. Mas na visão de Leite, boa parte desses casos corresponde a uma mediação pedagógica marcada por uma relação sem qualquer traço de afetividade. O pesquisador ainda acrescenta que o tipo de atividades propostas em sala de aula também tem relação com o menor ou maior grau de envolvimento afetivo que se pode alcançar entre educador e educando:

A escolha das atividades de ensino está ligada às relações que, efetivamente, vão ocorrer na sala de aula [...]. São, pois, as relações observáveis, geralmente com efeitos imediatos identificados na própria situação, que devem ser adequadas aos objetivos propostos. Neste sentido, é inegável a implicação da dimensão afetiva em cada atividade planejada e desenvolvida. Atividades bem escolhidas e adequadamente desenvolvidas, sem dúvida, aumentam as chances do aprendizado com sucesso por parte do aluno e a consequente

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Nesse caso, forma e conteúdo se alinham para garantir carga de afetividade. Pelas relações interpessoais entre professores e alunos, se chega ao processo de aprendizagem eficaz. São pequenos traços de envolvimento que vão compondo o relacionamento afetivo, tais como: posturas, tonalidade de voz, olhares, aproximações, acolhimento, demonstração de carinho, etc.

Ao estabelecer um elo de afetividade com o aluno, o mediador de leitura consegue encontrar as aberturas emotivas necessárias para frequentar a subjetividade do sujeito, ao mesmo tempo em que oferece sua própria subjetividade como contrapartida. Temos mais do que um jogo entre leitor e texto, instaura-se um transitar por experiências múltiplas rompendo com pré-estabelecido e provocando um diálogo com emoções alheias. O leitor iniciante, envolvido duplamente, pela figura do mediador e pela estética do texto, aprofunda os significados do texto ampliando seus efeitos.

Na verdade, quando falamos de um efeito da leitura provocado pelas emoções advindas da afetividade, não nos referimos apenas a sentimentos agradáveis ou amenos. Mesmo partindo de uma relação afetuosa, o ato de ler não discrimina os sentimentos que venham a ser despertados no leitor. Raiva, medo, angústia, inveja e outros sentimentos – muitos compreendidos como negativos, passives de serem evitados – são traços da natureza humana que podem ser acionados. A leitura, mais especificamente a leitura literária, ajuda o sujeito a trabalhar tais sentimentos no campo da ficção – nesse sentido, ajuda a nos conhecer e nos prepara para saber lidar com as emoções diante de situações reais. As mais recentes concepções de inteligência levam em consideração as emoções em meio ao processo cognitivo de compreensão do mundo. Daniel Goleman, ao falar de inteligência emocional,4 diz que, diante de uma tarefa, o ser humano pode experimentar o tédio, ou a ânsia. Nos dois casos, o sujeito não desenvolve a tarefa com seu maior potencial. Goleman entende que isso se dá porque não há uma moderação entre o tédio e a ansiedade, coisa que só deve ser alcançada com a experiência de fluxo, adquirido depois de certo equilíbrio emocional:

Pode-se dizer que o domínio num ofício ou aptidão é estimulado pela experiência do fluxo — que a motivação para se aperfeiçoar cada vez mais em alguma coisa, seja tocar violino, dançar ou separar genes, é pelo menos em parte estar em fluxo quando a realizando (GOLEMAN, 2011, p. 130).

Edgar Morin (2000) entende que qualquer processo cognitivo possui sua margem de erro e ilusão. As perturbações e os ruídos que acontecem naturalmente em qualquer situação de transmissão de conhecimento devem ser considerados no momento da composição dessa mensagem. No entanto, Morin reconhece a importância da afetividade na construção do raciocínio diminuindo a possibilidade de equívocos latentes:

Poder-se-ia crer na possibilidade de eliminar o risco de erro, recalcando toda afetividade. De fato, o sentimento, a raiva, o amor e a amizade podem-nos cegar. Mas é preciso dizer que já no mundo mamífero e, sobretudo, no mundo humano, o desenvolvimento da inte- ligência é inseparável do mundo da afetividade, isto é, da curiosidade, da paixão, que, por sua vez, são a mola da pesquisa filosófica ou científica. A afetividade pode asfixiar o conhecimento, mas pode também fortalecê-lo. Há estreita relação entre inteligência

4 Sabemos das controversas que há nas ideias de Goleman, principalmente a incapacidade de aprofundar questões sugeridas de forma superficial e de natureza pouco científica. Além disso, é notório algumas afirmações que favorecem a alguns preconceitos, como quando afirma que “Crianças que, na primeira e segunda séries, são agressivas e difíceis de lidar, já apresentam um protótipo de violência e criminalidade” (GOLEMAN, 2011, p. 285). Contudo, uma coisa é importante referendar em seus argumentos: a ideia de conceber o ser humano dentro de sua complexa unidade permite que a perspectiva dicotômica, e tudo que dela provém, seja deixada de lado no momento de pensarmos o desenvolvimento educacional dos indivíduos – inclusive possibilita uma visão mais plural da realidade.

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e afetividade: a faculdade de raciocinar pode ser diminuída, ou mesmo destruída, pelo déficit de emoção; o enfraquecimento da capacidade de reagir emocionalmente pode mesmo estar na raiz de comportamentos irracionais (MORIN, 2000, p. 20).

Se as teorias sobre o ato de ler partem da relação entre leitor e texto sem considerar a ação de um mediador, acaba deixando de lado também as aberturas subjetivas por onde as experiências do fluxo atravessam. No entanto, como indica Morin, todo e qualquer produto ou ação provenientes da descarga afetiva só se configura em “erro” mediante um contexto ou associações incompatíveis com transformações sociais. No fundo, a ideia de incompatibilidade entre afetividade e racionalidade já vem sendo refutada desde Spinoza. Para o pensador alemão:

A maior parte dos que escreveram sobre os afetos e sobre a forma de viver dos homens, não parecem tratar de coisas naturais que se seguem das leis comuns da natureza, mas de coisas que estão fora da natureza. Eles parecem conceber o homem na natureza como um império dentro de um império. Pois eles crêem que o homem parece mais perturbar do que seguir a ordem da natureza, ter uma potência absoluta sobre suas ações e só ser determinado por si mesmo (SPINOZA, 2008, p. 38).

Há de se ressaltar que mesmo tratando do campo político ou ético, Spinoza faz da instância afetiva uma ponte entre o homem e uma sociedade mais justa. O momento da mediação de leitura é também uma ação solidária, na qual o aluno apoia suas carências e fragilidades. Spinoza nos lembra que o desenvolvimento de um perfil ético e solidário só se estabelece na medida em que nossa corpo- reidade é aferida pelo afeto:

Portanto, o conhecimento do bem e do mal nada mais é do que a ideia de alegria ou de tristeza que se segue necessariamente desse afeto de alegria ou de tristeza. Ora, essa ideia está unida ao afeto da mesma maneira que a mente está unida ao corpo, isto é, ela não se distingue efetivamente do próprio afeto, ou seja, não se distingue da ideia da afecção do corpo senão conceitualmente. Logo, o conhecimento do bem e do mal nada mais é do que o próprio afeto, à medida que dele estamos conscientes (SPINOZA, 2008, p. 158).

O amparo na construção de sentido, auxiliando no preenchimento de lacunas, ganha ares de afabilidade – uma espécie de carinho que se faz a alguém que nos importamos, pois dedicamos um precioso tempo. Esse espaço de respeito mútuo, criado durante a mediação de leitura, envolve a mudança tanto do conteúdo, quanto da recepção. Somente isso já é um fator essencial para envolver o jovem leitor, e anular o caráter competitivo que em geral se tem em um sistema educacional baseado na meritocracia.

Vygotsky, por seu turno, aponta para um comportamento mediado, ele não se baseia na ideia de estímulo-resposta. Ao contrário, a mediação é antes de tudo uma modificação das circunstâncias estimuladoras em resposta às formas superiores do comportamento humano. Tais modificações sugerem a ação efetiva de forças relacionais que mantém vínculo com as reais necessidades do leitor em potencial:

Se ignoramos as necessidades da criança e os incentivos que são eficazes para colocá-la em ação, nunca seremos capazes de entender seu avanço de um estágio do desenvolvi- mento para outro, porque todo avanço está conectado com uma mudança acentuada nas motivações, tendências e incentivos (VYGOTSKY, 1997, p. 67).

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Percebe-se, nesse caso, que a transformação provocada pelo campo da afetividade, observada por Spinoza, está ligada ao avanço no desenvolvimento do sujeito de que nos fala Vygotsky. A mediação é, portanto, uma das camadas que envolvem o sistema de signos e reverbera a cada instância da construção de sentido. Se o sistema de escrita muda as estruturas do pensamento humano, os traços de afetividade transformam completamente o tipo de relacionamento entre os sujeitos. Com isso, as dimensões das ações mediadoras também são afetadas, provocando alteração na leitura e nas práticas de convivência. Usando os termos de Vygotsky, a pré-história da leitura se configura no bojo das relações afetivas de uma mediação.

Já no pensamento walloniano, a conexão estabelecida entre indivíduos é tanto mais fortes quanto são as manifestações subjetivas e seus respectivos componentes orgânicos. Em outras palavras, as ações de afetividade são propriedades contagiosas, que, ao contagiarem o outro, tem a capacidade de refletir organicamente seus sinais.

É nesse ponto que a afetividade se torna o elemento fundador da mediação de leitura. Enquanto dispositivo orgânico, a afetividade envolve vivências e expectativas do sujeito que são trabalhadas pelas representações simbólicas da realidade. A leitura, especialmente de obras literárias, aguça os processos cognitivos de representação simbólica que, por sua vez, envolvem a recepção dos senti- mentos pelo leitor. Desenvolver um efeito de leitura no outro é cambiar experiências que geram signos-sensações.

A mediação de leitura, enquanto relação social concreta a ser desenvolvida entre um sujeito experiente e outro menos experiente, se orienta do externo para o interno, e vice-versa, ressig- nificando tanto as relações interpessoais, quanto as intrapessoais. Levando a cabo o processo de mediação de leitura, é possível dizer que as subjetividades dos sujeitos envolvidos prolongam-se de um plano individual-biológico, para um plano simbólico-interativo. Do ponto de vista do leitor, o ato de ler é um processo complexo que exige o uso de mecanismos desconhecidos, difíceis de serem concatenados à realidade. Da perspectiva do mediador, a leitura torna-se uma busca por interlocução, pois todo mediador no fundo tem a necessidade de trocar experiências de leitura. De fato, o prazer proporcionado pela leitura só se reanima no momento em que compartilhamos com o outro as nossas impressões. Esse secreto desejo de interação do mediador é também uma de nossas mais antigas estratégias de socialização, que nos mantêm seres com necessidade do outro. Morin compreende essa necessidade como um circuito indivíduo-sociedade-espécie, que se revela um movimento ao mesmo tempo contínuo e contingente:

Os indivíduos são produtos do processo reprodutor da espécie humana, mas este processo deve ser ele próprio realizado por dois indivíduos. As interações entre indivíduos produzem a sociedade, que testemunha o surgimento da cultura, e que retroage sobre os indivíduos pela cultura (MORIN, 2000, p. 54).

Desta feita, a mediação de leitura nasce de um íntimo apelo do ser humano de se instalar no outro como estado de representação simbólica, já que nenhum conhecimento pode ser entendido como um espelho do mundo (MORIN, 2000). A leitura – enquanto representação de ideias e sensações – é tradução e reconstrução de percepções cerebrais que se delineiam por estímulos externos. A construção de sentido, por sua vez, ultrapassa a captação de sinais, ela é um fenômeno que repercute no sujeito, revelando como cada um é afetado pelos acontecimentos da vida.

As experiências de leitura colocam à prova as relações sociais em uma mediação: as que marcam a vida humana são as que formam um sentido afetivo e que, posteriormente, são retomadas pela memória. O neurobiólogo Ivan Antonio Izquierdo esclarece que “As memórias adquiridas em estado

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de alerta e com certa carga emocional ou afetiva são melhores lembradas que as memórias de fatos inexpressivos ou adquiridas em estado de sonolência” (IZQUIERDO, 1989. p. 97). Se de fato somos aquilo que lembramos, como afirma Izquierdo (1989), a leitura mediada dentro de uma relação afetiva se torna a reminiscência de um contexto de interação. Os indivíduos que passam pelo momento de leitura mediada incorporam ações que se estabilizam em sua personalidade como traços positivos. A leitura, nesses casos, surge como um momento de aproximação entre as pessoas que se abrem para uma composição, ao mesmo tempo, coletiva – porque parte da interação – e individual – porque resulta em um sentido particular.

Diferentemente da emoção – forte manifestação subjetiva de natureza orgânica – a afetividade constituindo-se ao longo de uma relação interpessoal faz parte do desenvolvimento das experiências do sujeito. A afetividade pode resultar em fortes emoções, mas é um traço humano essencialmente complexo, que se desdobra em assimilações de representações culturais – não se resume a um efeito orgânico, mas se estende à aquisição de conhecimentos a partir de ações que atinge diretamente a corporeidade do indivíduo. Ainda não é possível compreender as muitas camadas de um ato mediador, mas sem dúvida as dimensões afetivas fazem parte desse complexo processo de desenvolvimento que é a mediação.

As pesquisas desenvolvidas pelo GELAFOL vêm observando as muitas peculiaridades do ato mediador e seus aspectos mais relevantes. Em seguida, passaremos a discorrer sobre alguns dos resultados preliminares aos quais chegamos durante o desenvolvimento do projeto de pesquisa “Mediação de leitura: teoria e prática”.

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