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ENTRE APUPOS E CAÇA ÀS PALAVRAS: LOBATO NA MIRA DA ARGUMENTAÇÃO E DA PERSUASÃO

O valor de uma obra literária não se mede por causa de suas evidências, inserções, tendências ou correntes, mas por sua consciência literária, cujo corpo verbal e adequação de seu conteúdo renovado mais atuante em seu momento de produção. Segundo os estudos realizados por Perelman e Tyteca (2000), que constam na obra Tratado de argumentação: a nova retórica, a argumentação compreende o processo que visa à adesão dos interlocutores ao que é apresentado, na qualidade de tese. Nesse processo, constituem componentes básicos: aquele que argumenta, que pode ser definido como locutor; a opinião colocada para convencer; e aquele a quem é dirigida a argumentação, tradi- cionalmente conhecido como auditório, podendo se tratar de uma pessoa ou conjunto de pessoas, até mesmo o próprio orador, quando essa busca se auto persuadir.

Perelman e Tyteca (2000) identificam como condição fundamental para que haja argumentação o fato de os indivíduos estarem de acordo sobre a formação da comunidade de espírito e sobre o fato de se argumentar uma dada questão, uma vez que argumentar pressupõe interação social e cognitiva (PERELMAN;TYTECA, 2000).Essa interação envolve uma dinâmica pautada, essencialmente, em duas etapas. A primeira corresponde ao estabelecimento de “acordos prévios”, construídos a partir dos conhecimentos partilhados entre locutor e interlocutores acerca da questão argumentada. Essa etapa consiste na criação de vínculos entre os “acordos prévios” estabelecidos e a tese a ser argumentada, tendo em vista a mudança de perspectiva dos interlocutores que integra o auditório, como afirma Breton (1999). É esse o fio condutor de muitas discussões presentes no livro Fábulas(1972). Desse modo, a leitura é também encarada como um desafio, como uma aventura estimulante para os pequenos habitantes do Sítio, promovendo a criação do fio argumental presente na obra Fábulas (1972).

MONTEIRO LOBATO, NO PAÍS DAS FÁBULAS Alyne Maciel Morais da Silva

Esse percurso de busca pelo conhecimento é importante salientar que sempre se dá de forma lúdica e regida pelo imaginário — onde não faltam os elementos mágicos, com viagens e aventuras, e sempre de forma concreta, isto é, através da vivência das crianças e dos demais personagens. Nesse mundo da linguagem não se descartam o coloquial, as gírias, os provérbios, e promovem-se as práticas argumentativas. As várias possibilidades de manifestação da língua que cruzam no tecido narrativo contribuem para silenciar a voz autoritária do escritor e propiciam o estabelecimento do diálogo com o leitor e autor. Por sua vez, a pluralidade argumentativa inserida no livro Fábulas (1972) pode ser notada nas discussões e posições das personagens, as quais assinalam uma diversidade de concepções de mundo, o que apresenta ao leitor um horizonte diverso do habitual, oferecendo-lhe outros pontos de vista e permeando o fio argumental e persuasivo ao longo das discussões apresentadas no livro.

Grize (1990) ressalta o caráter funcional, intersubjetivo e onipresente da argumentação, e nos indica que a adesão depende não apenas da eficácia do orador, mas também da interpretação do Outro, implicando em um processo de ação e reação nas possíveis argumentações e ações/reações do locutor e auditório. A argumentação é vista, então, como a “lógica da linguagem”, entendendo-se esta como um conjunto de regras internas ao discurso, as quais comandam o encadeamento dos enunciados que constituem esse discurso. Para Lobato, os seus livros imaginativos têm o poder de despertar no leitor a curiosidade, a pesquisa, o desejo de apossar-se do desconhecido.

Nas palavras de Carvalho (1985), o autor cria, estrategicamente, um clima de apelo à curiosidade intelectual, e esse apelo responde, evidentemente, a uma carência de conhecimentos que se torna um desafio para as pequenas personagens do Sítio do Picapau Amarelo. Há sempre uma harmonia entre o jogo argumentativo, a fantasia e a persuasão do leitor presente nas discussões empreendidas pelos personagens.

Como observa Bakhtin (1997): “cada gênero literário, nos limites de uma época e de um movimento, se caracteriza por sua concepção particular do destinatário da obra literária, por uma percepção e uma compreensão particulares do leitor”. Lobato não confirma a visão de criança dos textos literários em circulação na época, para quem era reservado um espaço restrito e passivo. Ao contrário, seus textos se reportam a um leitor dinâmico, apto a interagir com o dito e o não-dito do texto literário.

A valorização do ato de ler e argumentar oriundas de sua prática está presente na própria representação das personagens lobatianas. A boneca de pano e o sabugo de milho possuem carac- terísticas leitoras bem definidas. Emília adora ouvir e contar histórias, Dona Benta senta-se em sua velha cadeirinha de pernas serradas, os ouvintes escolhem posições confortáveis e começam a leitura, partilhada de forma coletiva pelo grupo.

Outra característica destacada no livro Fábulas (1972), e que não aparece em outras narrativas, é a fórmula adotada pela narradora de promover a argumentação durante as discussões. Dona Benta narra as fábulas e tenta elucidar a distância temporal dos fatos narrados, promovendo situações argumentativas e persuasivas empreendidas após as leituras das fábulas.Esse conjunto de narrativas dá-nos uma pequena amostra do processo de escrita de Monteiro Lobato: um discurso voltado para a especificidade dos leitores crianças, empenhado em conquistá-los para o mundo da leitura. Se a interação com o leitor aparece de forma implícita nesse processo, não se pode dizer o mesmo quando Lobato extrapola o espaço do texto e entra em contato direto com o leitor infantil através das trocas argumentativas.

Ao elaborar o registro da linguagem escrita pela incorporação da oralidade, o autor apaga as marcas de infantilismo e pieguice inerentes à produção literária para crianças de seu tempo, do mesmo modo que ofusca o brilho da “língua culta”, promulgada por seus antecessores. Rompe,

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instaura o coloquialismo em confronto aos textos “empoleirados”. A linguagem desempenha um papel fundamental no fazer literário lobatiano, não se restringindo somente à questão estética, mas também à ideológica, na medida em que, através da língua, a ideologia também se manifesta.

Vejamos um trecho de discussão do livro Fábulas:

- Bravos vovô! – aplaudiu Narizinho. A senhora botou nessa fábula duas belezas bem lindinhas.

- Quais, minha filha?

- Aquêle “ouviu latir ao longe o perigo”, em vez de ouviu latir ao longe os cães; e aquêle “pastou a benfeitora” em vez de pastou na moita. Se tia Nastácia estivesse aqui, dava à senhora uma cocada.

- Pois essas “belezinhas” são uma figura de retórica que os gramáticos xingam de sinédoque...

- Eu sei o que é isso – berrou Emilia. É “sem” com um pedaço de bodoque. Ninguém entendeu. Emília explicou:

- Sine quer dize “sem”. Quando o visconde quer dizer “sem dia marcado”, ele dizsinedie. É um latim. É “doque” é um pedaço de bodoque...

Parece que sim, mas, não é Emília – explicou Dona Benta. Sinédoque é a synedoche dos gregos e quer dizer compreensão. (1972, p.51)

Os argumentos possuem uma espécie de conteúdo proposicional, eles são vazados em asserção: apresenta-se uma tese que convoca uma justificação. O interlocutor pode, em qualquer momento do diálogo, pedir esclarecimentos quanto às justificações sobre a tese proposta, como fez a personagem Narizinho à boneca Emília no trecho citado. Os argumentos usados pelas personagens demostram que eles pertencem a um campo específico, ou seja, a articulação de elementos discursivos que dese- nham o esquema argumentativo configura uma relação entre dados, mostrados no diálogo entre os personagens do livro.

A argumentação visa a obter ou aumentar a adesão de outrem (PERELMAN;TYTECA, 2000). Assim, o processo argumentativo persiste na preocupação com a relação entre o orador e o auditório, apontando esta preocupação para o fato de que o primeiro busca o assentimento do segundo através da utilização de técnicas retóricas. Desta forma, a argumentação se dá como negociação, concebida nos discursos e que resulta em adesão ou repulsa dos argumentos apresentados.

Vejamos outro trecho de discussão:

E para que serve isso? – perguntou Narizinho. - Para enfeitar o estilo.

Mas a senhora mesma não disse que o estilo muito enfeitado fica feio e de mau gosto, mas se aparece discretamente enfeitado fica bem bonitinho. Se você vai à vila com uma flor no peito, fica linda como uma sinédoque. Mas se se enfeitar demais fica apalhaçada e revela mal gosto. Tudo na vida depende da justa medida; nem mais, nem menos; antes menos do que mais.(1972, p.51)

As figuras de retórica não são consideradas apenas “ornamentos” sobrepostos à língua rela- cionada à velha noção de retórica, como uma técnica de estilo “florido e vazio”, mas são formas diferentes de falar, de acordo com finalidades específicas.

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O que se observou nesse segundo trecho de discussão foi a utilização de estratégias argu- mentativa de incompatibilidade com a ideia antes exposta e defendida por Dona Benta, segundo o pronunciamento de Narizinho: “Mas a senhora mesma não disse que o estilo muito enfeitado fica feio e de mau gosto, mas se aparece discretamente enfeitado fica bem bonitinho”. Nessa situação, é demonstrada a falta de coerência entre duas opiniões: a opinião apresentada no momento da discussão e a assumida anteriormente. Esse tipo de argumentação incide em julgamentodas incompatibilidades e, por sua vez, de ajustamento entre os interlocutores, podendo-se considerar a negociação entre os sujeitos no processo argumentativo.

Observemos o terceiro trecho de discussão:

– E que tem a compreensão com essas duas belezinhas?

– Tem que falando “em “perigo” em vez de cães, e em” benfeitora” em vez de moita, toda a gente compreende a troca de palavras – e fica a tal belezinha que você achou. A sinédoque troca as partes pelo todo, como quando dizemos “velas” em vez de “navios”; troca o gênero pela espécie, como quando dizermos “os mortais” em vez de “os homens”; troca uma coisa pela qualidade da coisa, como quando dizermos “perigo” em vez de cães e “benfeitora”em vez de “moita”.(1972, p.51)

Reconhecemos que não há discurso isento de intencionalidade, inclusive no campo da argu- mentação. Dessa forma, a intertextualidade pode ser identificada pela presença de argumentos de autoridade, presente no discurso. A partir do reconhecimento do leitor, o texto passa a ter uma dimensão dialógica, desconsiderando a leitura isolada e acatando a relação com demais textos. Terminadas as exposições das histórias no livro Fábulas (1972), abre-se um espaço para que o auditório presente possa dialogar e refletir sobre questões referentes à leitura das narrativas, desencadeando situações de argumentação.

Segundo PERELMAN; TYTECA(1996), o orador deve considerar a presença do auditório, em relação ao qual o princípio básico é o de adequação, tendo-se como finalidade não apenas convencer pelos raciocínios, mas persuadir com base na emoção, nas crenças e na ideologia. Assim, para persu- adir, há que se considerar objetos de acordo para a adesão: os valores, as hierarquias e os lugares do preferível. PLANTIN (1996) afirma que, como a argumentação procura agir sobre os comportamentos, ela vai lidar com interesses, valores e subjetividade do alvo a ser persuadido, aspectos evidenciados no trecho de discussão em foco. É esta característica que, segundo PERELMAN (1987, p.239), permite distinguir entre os discursos que tendem a persuadir isto é, os que propõem à adesão de um auditório particular, e o discurso que visa a convencer o receptor acerca de dada verdade, como o filosófico e o científico, que visam a convencer, isto é, os que procuram a adesão de um auditório universal.

A presença de diálogos, debates e comparações é uma preocupação do autor em facilitar os meios pelos quais as crianças possam argumentar. Nesse diálogo percebemos como se dava a relação locutor/interlocutor. Emília reclama das mudanças ortográficas existentes na gramática. Em contrapartida, Lobato propõe o uso da imaginação e da criatividade a favor do ensino e das práticas persuasivas para determinar a classe dos argumentos a que os diálogos pertencem, enquanto a combinação de elementos vai apontar para combinações sintagmáticas e encadeados. Ora, todos os operadores fazem parte da gramática, da língua portuguesa.

Observemos outro trecho de discussão:

São coisas do latim minha filha. Nessa língua havia duas palavras parecidas: pena e penna. A primeira virou em nossa língua “pena” - pena de dor; e a segunda ficoupenna mesmo – a das aves.

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E depois a penna das aves perdeu uma perninha e virou pena com um n só, igual à pena-dor. Concluiu Emília: e está aí, está ai....

Está aí o que Emília?

Está ai um grande embrulho...(1972, p.75)

Qualquer argumento com esta forma é dedutivamente válido. Sabemos que um argumento é dedutivamente válido se, e só se, é impossível que as suas premissas sejam verdadeiras e a sua conclusão falsa. Estamos, pois, perante dois argumentos dedutivamente válidos que, em conjunto, resultam num diálogo ente os personagens. Em ambos os casos, quem não aceitar a conclusão, não aceitará a premissa. Só quem está já de acordo com a conclusão é que estará de acordo com a premissa. Como poderia ser de outro modo? Afinal, cada um dos argumentos apresentados limita-se a repetir a conclusão que tinha já se estabelecido na premissa; e isto é, como os lógicos costumam dizer, uma petição de princípio.

Uma dedução é um argumento que, dadas certas coisas, algo além dessas coisas necessaria- mente se segue a elas. Como formas de raciocínio, Emília apresenta a forma indutiva (permitindo a inferência a partir de um caso particular), evidenciando o modo de argumentar infantil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Lobato em sua produção literária desempenhou função crucial na construção da literatura infantil brasileira, onde fomentou a produção literária infantil de seu tempo, difundiu-a e ativou sua circulação, exercendo papel fundamental na formação de um público leitor que referendasse o estatuto desse novo gênero que se anunciava.

A procura por envolver o leitor de forma prazerosa na leitura está muito presente no seu projeto literário. Por sua vez,esse projeto,realizado na obra Fábulas(1972), apresenta processos argumenta- tivos e persuasivos empreendidos por seus personagens que contribuem paradiscussão a respeito da produção desse autor, sobretudo sobre suas técnicas de argumentação. Justifica-se, então, nosso estudo, pois tratar das origens da literatura infantil requer também uma abordagem argumentativa, que ligue, notadamente, as áreas de literatura e argumentação.

Abordamosa literatura infantil brasileira e as inovações de Lobato em sua produção literária, mais propriamente na obraFábulas (1972).Assim, tornou-se relevante considerar seus procedimentos de discussão textual, os quais pressupõem argumentação. Esta, por sua vez, demanda uma dinâmica de interação específica, pautada no estabelecimento de “acordos prévios”, construídos a partir dos conhecimentos partilhados entre locutor e interlocutor acerca do tema discutido, e na criação de vínculos entre os argumentos estabelecidos e a tese, tendo em vista a mudança de perspectiva dos interlocutores, como afirma Breton (1999).

Na análise da obra Fábulas (1972), pudemos notar que o escritor criacondições favoráveis para a existência da argumentação entre as personagens, pois elas expõem livremente em âmbito social suas opiniões e o fazem de forma interativa, dialética, cognitiva.SegundoPERELMAN; TYTECA (2000), são justamente essas as características que permitem entre os indivíduos a existência da argumentação.

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REFERÊNCIAS

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