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“Ler e comer, só quando há apetite; fora daí é uma insuportável corvée. Também não escrevo por obrigação. Escrevo quando os dedos comicham — ou quando o Benjamim me força a escrever. Neste caso é o meio de ver-me livre do Benjamim. Não tenho horas prediletas — minhas horas são as que coincidem com a disposição. Há horas em que nos sentimos extraordinariamente aptos para

A BARCA DE GLEYRE

Enildo Elias da Silva (Ifap) / Maria Teresa Gonçalves Pereira (UERJ)

pensar e tudo nos vem fácil e claro. Outras há em que estamos imaginosos, todos cheios de casulos a picarem, como povo na hora de sair o pinto. Queira você tirar o pinto antes do tempo — o pinto morre. Estômago e cérebro: duas respeitabilidades. Respeitemo-las, Rangel.

Esses nossos desalentos, esses nossos tédios interativos, esses nossos desesperos, provam a favor, Rangel, não provam contra. São reflexos da misteriosa gestação subterrânea. Como vem isso? Sempre como eco do constante processo analítico inerente à gestação. Você lê uma página genial de Hugo e a comparação inconsciente que fazes entre ele e você desnuda-te uma aparente inferioridade. Eu vejo uma cena, procuro o meio de transmiti-la por meio de palavras, não consigo e perco a confiança em mim. O Edgard sente uma sensação nova, estranha, jamais sentida por ninguém no mundo; analisa-a, não a apreende — e ei-lo de dia estragado, azedo sem saber por que. Mas esse eterno “procurar”, Rangel, é que a grande coisa que há dentro de nós e não há no Macuco. O Macuco não procura coisa nenhuma, porque está certo de que é um gênio e não precisa de coisa nenhuma.

Cansado de desanimar, eu não desanimo mais, depois que apanhei a causa dos meus desânimos. Trabalho às ocultas lá no subconsciente. Em quê? Na afinação da lira e na fixação com palavras do que ela apanha. O sonho, sabes qual é — o sonho supremo de todos os artistas. Reduzir o senso estético a um sexto sentido. E, então, pegar a borboleta!”

LITERATURA

“Tua carta é um atestado da tua doença: literatura errada. Julgas que para ser um homem de letras vitorioso faz-se mister uma obsessão constante, uma consciente martelação na mesma ideia — e a mim a coisa me parece diferente. Tenho que o bom é que as aquisições sejam inconscientes, num processo de sedimentação geológica. Qualquer coisa que cresça por si, como a árvore, apenas arrastada por aquilo que Aristóteles chamava entelequia — e que em você é o rangelismo e em mim o lobatismo. Deixa-te em paz, homem, não tortures assim o teu pobre cérebro. Andas a fazer com ele como os comilões ininteligentes que comem até adoecerem. Esqueça que há literaturas no mundo e viva aí uma vida bem natural. Ande muito a pé ou a cavalo, converse com toda gente, coma bem, namore caboclinhas nas estradas, vá aos serões do senhor Cura, arrote — e quando dormir, ronque. Verás que boa é a vida sem literatura. E também verás como fica boa a literatura quando o corpo está contente.

Ando atracado com as obras completas de Camões e volta e meia fisgo belezinhas. Não prefiro a poesia antiga à moderna, mas acho na antiga um sabor mais amável, qualquer coisa como o cheiro dos velhos casarões de fazenda que a caseira abre para nos receber. A cor e o sabor da poesia moderna são mais ricos de torturas, tem mais pensamento, denotam mais matéria cinzenta no cérebro humano e isso nos agrada, a nós complicados homens de agora. A antiga dá idéia de pés em sandálias. Veja estes versos:

Se curar não se procura Uma coisa destas tais Vem depois a crescer mais.

Camões está cheio de mimos assim — pena que seja mais cheio ainda de sensaborias e versos que nada dizem — endechas, glosas, vilancitos.”

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LITERATURA INFANTIL

“Ando com ideias de entrar por esse caminho: livros para crianças. De escrever para marmanjos já me enjoei, Bichos sem graça. Mas para as crianças, um livro é todo um mundo. Lembro-me de como vivi dentro do Robinson Crusoé do Laemmert. Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar. Não ler e jogar fora; sim morar, como morei no Robinson e n’Os Filhos do Capitão Grant.

Quem sabe pode e quer você empreitar um serviço de que precisamos? Pretendemos lançar uma série de livros para crianças, como Gulliver, Robinson, etc., os clássicos, e vamos nos guiar por umas edições do velho Laemmert, organizadas por Jansen Muller. Quero a mesma coisa, porém com mais leveza e graça de língua. Creio até que se pode agarrar o Jansen como “burro e reescrever aquilo em língua desliteraturizada – porque a desgraça, da maior parte dos livros é sempre o excesso de “literatura. Comecei a fazer isso, mas não tenho tempo; fiquei no primeiro capítulo, que te mando como amostra. Quer pegar a empreitada? A verba para cada um não passa de 300$, mas os livros são curtinhos e o teu tempo aí absolutamente não é “money”. Coisa que se faz ao correr da pena. É só ir eliminando todas as complicações estilísticas do “burro”. Se não tens por aí essas edições do Laemmert, mandarei.

Tenho em composição um livro absolutamente original, Reinações de Narizinho – consolidação num volume grande dessas aventuras que tenho publicado por partes, com melhorias, aumentos e unificações num todo harmônico. Trezentas páginas em corpo 10 – livro para ler, não para ver, como esses de papel grosso e mais desenhos do que texto. Estou gostando tanto, que brigarei com quem não gostar. Estupendo, Rangel! E os novos livros que tenho na cabeça ainda são mais originais. Vou fazer um verdadeiro Rocambole infantil, coisa que não acabe mais. Aventuras do meu pessoalzinho lá no céu, de astro em astro, por cima da via Láctea, no anel de Saturno, onde brincam de escorregar... E a pobre da tia Nastácia metida no embrulho, levada sem que ela o perceba... A conversa da preta com Kepler e Newton, encontrados por lá medindo com a trena certas distâncias astronômicas para confundir o Albert Einstein, é algo prodigioso de contraste cômico. Pela primeira vez estou a entusiasmar-me por uma obra.”

ESTILO

“Estilos, estilos... Eu só conheço uma centena na literatura universal e entre nós só um, o do Machadão. E, ademais, estilo é a última coisa que nasce num literato — é o dente do siso. Quando já está quarentão e já cristalizou uma filosofia própria, quando possui uma luneta só dele e para ele fabricada sob medida, quando já não é suscetível da influenciação por mais ninguém, quando alcança a perfeita maturidade da inteligência, então, sim, aparece o estilo. Como a cor, o sabor e o perfume duma fruta só aparecem na plena maturação. Repare no Machado. Quando lhe aparece a cor, o sabor, o perfume? No Brás Cubas, um livro quarentão. Que estilo tem ele em Helena ou Iaiá Garcia? Uma bostinha de estilo igual ao nosso. Ao Eça só o encontramos já estilizado e inconfundível no Ramires. Antes de nos vir o estilo o que temos é temperamento. Há na arte do desenho um exemplo claro disso na “estilização”, duma flor, suponhamos. A flor natural é o nosso temperamento; a flor estilizada é o nosso estilo. Enquanto esse temperamento não alcança o apogeu da caracterização, não tem estilo; usa e abusa barbaramente da “impropriedade” com o fim de irritar o Camilo Castelo Branco, o Bulhão Pato e os burgueses do Porto. Esse abuso da impropriedade, que à primeira vista parece ser a sua futura

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característica do estilo (tanto é alta a dose nas primeiras coisas), nos Ramires aparece homeopático e felicíssimo e da mesma sábia dosimetria de Machado de Assis.

Para o trabalho do estilo, a primeira empreitada é mundificá-lo, como diz você, das “maneiras” consagradas. Fugir sobretudo da maneira do Eça, a mais perigosa de todas, porque é graciosíssima e muito fácil de imitar.

E por falar em estilo: quando deixamos a ideia correr ao fio da pena, sem nenhuma pré-con- cepção quanto à “maneira” ou regra e, pois, não procuramos “fazer estilo”, é justamente quando temos estilo. Receita: Quem quiser estilo, jamais o procure.”

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REFERÊNCIAS

CAVALHEIRO, Edgard. Monteiro Lobato: vida e obra. Tomo I e II. 2 ed. revista e aumentada. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1956.

LUCAS, Fábio. O Mundo das Cartas de Monteiro Lobato. In: Letras de Hoje. Monteiro Lobato: edição comemorativa do centenário de nascimento. Porto Alegre: PUC/RS. nº 49, setembro de 1982.

______. A escrita, a crítica e a estética nas cartas de Monteiro Lobato. In

Atualidade de Monteiro Lobato. São Paulo: Mercado Aberto, 1983.

LOBATO, Monteiro. A Barca de Gleyre. Tomo I e II. São Paulo: Editora Brasiliense, 1955. ______. Memórias da Emília. Editora Brasiliense. 9ª ed. São Paulo, 1956

NUNES, Cassiano. Um visionário na intimidade. In: Caderno Mais! Folha de São Paulo: São Paulo, 28/06/1998. PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. A Barca de Gleyre: Ponto ou vírgula para o (re)

conhecimento de Monteiro Lobato. PósDoutorado. PUCRS. 2008.

A formação do leitor mirim em questão

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