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DO ADOECIMENTO À HOSPITALIZAÇÃO: A DIFÍCIL TRAVESSIA

Se você encontrar uma porta à sua frente, você pode abri-la, ou não. Se você abrir a porta, você pode, ou não, entrar em uma nova sala. Para entrar, você vai ter que vencer a dúvida, o titubeio ou o medo. Se você venceu, você dá um grande passo: nesta sala, vive-se. Mas, tem um preço: são inúmeras outras portas que você descobre. O segredo

é saber: quando e qual a porta que deve ser aberta [...] Para a vida, as por- tas não são obstáculos, mas diferentes passagens (TIBA, 1998, p. 28).

A metáfora das portas usada por Içami Tiba (1998), para falar das escolhas que fazemos em nossas vidas, nos leva aos desenhos produzidos pelas crianças, durante as rodas de conversa realizadas entre as pesquisadoras, as crianças e um brinquedo-personagem, que nomeamos de Alien. Trata-se de um protocolo de pesquisa desenvolvido pelo Grupo Interdisciplinar de Formação, Autobiografia, Representação e Subjetividades (GRIFARS/UFRN/CNPq).Projeto de Pesquisa “Narrativas da Infância: o que contam as crianças sobre a escola, e os professores sobre a infância? ”, financiado pelo CNPq, e desenvolvido por uma rede de pesquisa internacional formada por pesquisadores de instituições brasileiras (UFRN, UFRGS, UFF, UNIFESP, UNICID, UFRR, UFERSA, UVA, UERN), em articulação com pesquisadores de Portugal, França e Colômbia.

O protocolo compreende globalmente três movimentos: a apresentação do “Alien” às crianças; a interação na roda de conversa entre o Alien, a criança e pesquisadora; o retorno do Alien ao seu planeta.

Adaptamos a apresentação do Alien à situação do hospital:

Este é um extraterrestre que acabou de chegar de um outro planeta, bem distante do nosso. Ele está muito curioso para saber como é o hospital, para que ele serve, o que a gente faz nele... mas, ele gostaria que uma criança contasse e não um adulto, por que ele deseja saber o que as crianças pensam do hospital. Você pode contar para ele?

Seguia-se então a interação na roda de conversa, e na medida em que as crianças iam narrando, íamos adaptando um roteiro norteador para estimular a construção da narrativa. Para finalizar a roda de conversa, anunciávamos o retorno do Alien ao seu planeta:

Agora, o Alien vai voltar para o planeta dele sabendo muitas coisas sobre o hospital. Acho até que ele vai pedir para construir hospitais para as crianças de lá que precisam. Você gostaria de deixar uma mensagem, fazer um desenho para ele levar para as criancinhas do planeta dele que precisam ir para o hospital?

Das cinco crianças participantes, três fizeram desenhos para o “Alien”. E, neles, a porta foiuma imagem recorrente. Sabemos que a descoberta de uma doença crônica, que exige hospitalizações,a- carreta mudanças significativas na vida cotidiana da criança e da família dela. A partir de então se inicia um percurso de difícil travessia, no qual abrem-se e fecham-se portas, escolhe-se entrar? ou não há escolhas? Atravessar a porta do hospital, chegar à porta da brinquedoteca, trilhar a pequenos passos os corredores do hospital pontuados de portas é sem dúvidas um caminho que as crianças não desejavam percorrer. Mas também pode ser percebido como um espaço de vida, onde elas vêm em busca da cura. Observamos que os desenhos descrevem múltiplos sentimentos, são diferentes

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O que nos contam as crianças sobre suas experiências de (con)viver com o adoecimento em seus desenhos? Miguel (10 anos), Joaquim (07 anos) e Murilo (06 anos) desenharam cenas que falam de suas passagens pelo hospital. Miguel escolheu desenhar a porta do hospital e assim explicou o seu desenho:

Desenhei o hospital. Essa é a parte da frente, é por aqui que a gente entra quando vem se internar ou passar no médico. Ele é muito grande, têm muitas salas e muita gente que trabalha, e pais também, têm muitas crianças. (Miguel, 10 anos).

Figura 1 – Desenho de Miguel.

A porta do hospital. (Miguel, 06 anos). Fonte: Acervo da pesquisa.

A fala de Miguel nos leva a pensar nos processos de significação que as crianças hospitalizadas atribuem ao momento de entrada no hospital, tão difícil para elas, pois aprendem, logo em seguida, que ao passar por essa porta pode significar ficar separado de seus familiares, deixar por trás dela uma parte de sua vida, suas brincadeiras, sua escola, seu bairro... Assim, a porta surge no desenho de Miguel como lugar de travessia “[…] é por aqui que a gente entra quando vem se internar”. Mas, em sua fala ele dá sentido a um outro tipo de passagem pela porta: “passar no médico”. Nos dois casos, a porta pode significar para Miguel o que Içami Tiba afirma: “[…] Para a vida, as portas não são obstáculos, mas diferentes passagens […]”, de esperança de restabelecimento de sua saúde? Do isolamento?

Ao contar sobre suas entradas no hospital, Miguel mostra que guarda dele a ideia de um espaço amplo, “[…] ele é muito grande […]”, com muitas salas. Mas chama a sua atenção, as pessoas que estão do outro lado da porta: “[…] tem [...] gente que trabalha e pais também, têm muitas crianças […]”. Nesse sentido, ao atravessar a porta do hospital, ele encontra um lugar de interações, convivências, descobertas e trânsito que flui no sentido de entrada e de saída, ou seja, passar por essa porta não significa somente a hospitalização, mas também o (re)encontro com o outro que comunga de seus sentimentos em relação ao adoecimento e a travessia para a alta hospitalar. As cores azul e verde, escolhidas para pintar o hospital, podem ser uma tentativa de aproximar seu desenho da imagem da instituição, já que são estas as cores predominantes na sua fachada, mas pode também representar

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alegria, esperança de encontrar nesse lugar a cura e a tranquilidade que procura para seu corpo e sua vida.

Joaquimdesenhou a porta da classe hospitalar no Centro de Onco Hematologia Infantil (COHI). Acima da porta escreveu: “Brinquedoteca”, revelando o entrelaçamento da classe hospitalar e da brinquedoteca, para ele não existia diferenciação. Quando solicitamos que explicasse o seu desenho, ele perguntou: “Você não está reconhecendo? Olhe a televisão ao lado da salinha […]”, é a brinque- doteca aqui do COHI”. Recordamos a história do Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, que ao apresentar aos adultos o seu desenho da jiboia que engoliu um elefante, precisou explicar, pois os adultos não conseguiram reconhecer, confundindo-o com um chapéu. E, disse, “[…] os adultos sempre precisam de explicações […]” (2009, p. 10). Joaquim, com seu questionamento, nos fez sentir como os adultos que não perceberam “o elefante dentro da jiboia”.

Figura 2 – Desenho de Joaquim.

Classe hospitalar: a brinquedoteca de Joaquim . Fonte: Acervo da pesquisa.

Murilo expressou o desejo de escrever muitas cartas para o “Alien”. Encontrou no recorte, colagem e na pintura a solução para isso, compreendendo que, assim, estaria enviando diversas cartas. Desenhou o brinquedo-personagem (Alien) e o carro que leva as crianças ao hospital. Embora tenha escolhido a cor verde para pintar a cabeça e os membros superiores, em sintonia com as cores do brinquedo, ele também usou outras cores alegres e vivas que nos fazem pensar nas representações positivas desse espaço, como um lugar de busca pela cura e restabelecimento da saúde.

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Figura 3 – Desenho de Murilo.

“O carro do hospital e o Extraterrestre” (Murilo, 6 anos). Fonte: Acervo da pesquisa.

Como ainda não sabia escrever, pediu-nos que escrevêssemos numa folha de papel as palavras: “extraterrestre” e “carro do hospital”. Em seguida, ele as copiou no desenho e terminou assinando abaixo do carro o seu nome. Estava pronta a sua obra!

As escolhas de Murilo evidenciam a importância que o brinquedo-personagem exerceu como um mediador lúdico no espaço de interação com as pesquisadoras, o mundo imaginário e a sua construção narrativa. A conversa com o “Alien” como dispositivo de pesquisa permitiu a estruturação da narrativa de forma prazerosa despertando na criança o desejo de se expressar livremente durante a interação com as pesquisadoras.

Os processos de significação, compreendidos na perspectiva vygotskiana, estão presentes a todo momento da vida, é por meio deles que se estabelecem as relações do humano com os objetos do mundo, seu entorno, suas ações. E é com base nessas significações que decidem suas escolhas e as decisões a serem tomadas. Como discorre Pino (2005, p. 149),

Os processos de significação concretizam-se na vida cotidiana das pessoas, nas diferentes formas de práticas sociais, uma vez que a significação é uma produção social. Eles traduzem assim a natureza semiótica e dinâmica da sociabilidade e da criatividade humanas.

Ou seja, os processos de atribuição de significação traduzem a dinâmica da capacidade humana de se relacionar com o mundo, com suas experiências no mundo, de criar e de expressar formas de ver e estar no mundo.

Ao analisar as narrativas como fonte de pesquisa e/ou como prática de formação, cabe nos interrogar sobre as maneiras de narrar, os modelos de enredo, conscientes ou não, que se encontram entrelaçados a uma base histórico-cultural de produção e de recepção dessas narrativas. Conforme já expressamos em outros estudos (ROCHA; PASSEGGI, 2012), cujas reflexões retomamos aqui, devemos considerar, para tratar de narrativas sobre o ambiente hospitalar, a existência de todo um repertório culturalmente transmitido pelos pais, professores, profissionais de saúde, que legitima, ou não, um enredo, a pessoa que narra a história, quando ela o faz, onde e para quem narra.

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Podemos nos questionar acerca do que a criança retoma desse repertório e como, eventualmente, o transforma. Pois se a cultura incide sobre os modos de narrar, o narrador pode recontextualizá-los dentro de uma margem de liberdade que lhe permite imitar reinventando. Suas escolhas são anali- sáveis enquanto indicadores de seus modos de agir e pensar e de seus modos de perceber a história, a si mesmo e a própria narração. Essa busca de interpretação se realiza, como sugere Ricoeur (1994), numa “espiral hermenêutica”, em que o sentido se reconfigura a cada (re)leitura, o que permite afirmar que não se pode “explicar” uma história, mas dar a ela várias interpretações

Essas são as grandes linhas que adotamos como princípios epistemológicos em nossas pesquisas com crianças. Eles norteiam nossos modos de provocar narrativas, recolhê-las, transcrevê-las e interpretá-las. Admitimos que as histórias, suas narrativas da experiência transformam-se em exercícios reflexivos e autopoiéticos. No entanto, pudemos perceber ao longo desses processos que esses exercícios incidem não somente sobre a criança que narra e na reinvenção delas mesmas, mas também na reinvenção do pesquisador pela reflexividade que pressupõe o ato de ouvir a criança e o ato de interpretar o que escutamos. Como afirma Passeggi (2010, p. 2), a cada “[…] nova versão da história a experiência é ressignificada […]”.

As rodas de conversa proporcionaram às crianças uma oportunidade para que contassem suas experiências no hospital, como protagonistas e autores de suas histórias. Para Kishimoto (2007, p. 263), as narrativas favorecem a

[...] intertextualidade, a criação de textos que integram elementos de várias histórias infantis. Basta respeitar condições como o protagonismo da criança que possibilita a atribuição de significados, a leitura de imagens e a mediação do adulto na oferta de ferramentas para desvendar o mundo [...].

As análises de suas falas permitem-nos extrair das histórias de cada uma delas aproximações com seus sentimentos, pensamentos, emoções, dificuldades, ou seja, suas formas de (con)viver com a doença crônica.

Nas narrativas das crianças, pudemos constatar que suas vivências, no ambiente hospitalar, não se restringem ao cuidado físico para o tratamento da doença. O olhar das crianças sobre esse lugar envolve múltiplas facetas, o que nos conduziu à construção do primeiro eixo: O hospital: que

lugar é esse? Nossas análises, voltam-se, então, para cada categoria encontrada nesse primeiro eixo.

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