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Nilo Carlos Pereira de Souza

INTRODUÇÃO

O pensamento de Paulo Freire (1993) demonstra que a experiência de uma leitura crítica de mundo conduz a uma leitura mais reflexiva do texto escrito. Na mesma esteira de Freire, Marisa Lajolo argumenta dizendo que “Em nossa cultura, quanto mais abrangente a concepção de mundo e de vida, mais intensamente se lê, numa espiral quase sem fim, que pode e deve começar na escola, mas não pode (nem costuma) encerrar-se nela” (LAJOLO, 1993, p. 9). De fato, a relação texto-mundo é algo necessário para a construção de uma leitura crítica do sujeito, consciente de seu lugar no mundo. Nesse caso, a formação de leitor exige uma reflexão mais ampla e complexa, e as relações que envolvem o leitor com o mundo-texto são interpostas por outros elementos que geralmente são deixados de lado pela Teoria da Leitura.

Um desses elementos é o mediador, elo de experiências e estratégias que direciona o processo e organiza o espaço. Segundo Hans Robert Jauss (1994), existe entre o leitor e o texto todo um horizonte de expectativas. Jauss entende que os laços do leitor com o texto se encontram nas amarras de uma construção histórica que faz da leitura um conjunto de signos relativamente estáveis que compõem a visão geral de um determinado período.Mais contundente que Jauss, Wolfgang Iser apresenta outra perspectiva da Recepção, a teoria do efeito, na qual o leitor ganha autonomia e suas especulações se tornam tão relevantes quanto à estrutura da obra, ou quanto os grilhões do espírito de época, pois são resultados de um efeito estético provocado no momento da leitura individual:

Nossa discussão se concentrou sobretudo nos dois pólos na situação de comunicação, o texto e o leitor. Agora se trata de analisar as condições que originam tal comunicação. Sendo uma atividade guiada pelo texto, a leitura acopla o processamento do texto com o leitor; este, por sua vez, é afetado por tal processo. Gostaríamos de chamar tal relação recíproca de interação (ISER, 1996, p. 97).

Contudo, mesmo o pensamento de Iser não se aprofunda nos processos de mediação que, direta ou indiretamente, também estão envolvidos no fenômeno da leitura juntamente com o autor, o texto, o leitor e o contexto. Enquanto a teoria de Jauss estabelece o princípio do ato de ler na percepção coletiva de um tempo histórico, a teoria de Iser concebe ao indivíduo a fonte primária para todas as outras dimensões que irão promover o sentido. Em outras palavras, a teoria do efeito, tal qual sugere o nome, aborda os efeitos que uma obra literária exerce no leitor, privilegiando a experiência do

1 Graduada em Letras pela UFPA e Especialista em Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa e Literatura. E-mail: danironasci@gmail.com.

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indivíduo perante o texto e elevando a consciência ativa – um jogo textual, no qual se desenvolveria uma espécie antropologia literária. Escapa a essa perspectiva a atuação do mediador motivando e potencializando a leitura. Com isso, o jogo não garante – como entende o teórico alemão – a cobertura de toda a operação existente no processo de leitura.

Mesmo sem um estudo específico para a construção de um conceito de mediação ou de mediador, é possível encontrar ao longo das muitas abordagens teóricas sobre a leitura alguns indicativos que podem nos auxiliar. Vygotsky (1997) aponta para os elementos de mediação como instância basilar no processo psicológico da formação do sujeito. Primeiramente quando entende a linguagem como arco mediador entre o sujeito e o mundo – superando a concepção naturalista do olhar e introduzindo o signo linguístico como representação do mundo. Por conseguinte, Vygotsky deixa claro que o desenvolvimento humano passa a ser mediado pelo outro que orienta, esclarece e insere sentido à realidade. Neste caso, em se tratando de formação de leitor, o jovem leitor se apropria do funcionamento do sistema textual, do comportamento e das práticas culturais leitoras através de um leitor experiente, ou seja, do mediador:

(...) uma coisa é certa – o desenvolvimento da linguagem escrita nas crianças se dá, conforme já foi descrito, pelo deslocamento do desenho de coisas para o desenho de palavras. De uma maneira ou de outra, vários dos métodos existentes de ensino de escrita realizam isso. Muitos deles empregam gestos auxiliares como um meio de unir o símbolo falado ao símbolo escrito; outros empregam desenhos que representam os objetos apro- priados. Na verdade, o segredo do ensino da linguagem escrita é preparar e organizar adequadamente essa transição natural (VYGOTSKY, 1997, p. 77).

Vygotsky chama de Zona de Desenvolvimento Proximal3 para o processo em que a criança consegue alcançar determinados conhecimentos com o auxílio de outras pessoas. Tanto a aprendizagem, quanto o desenvolvimento estão ligados à cultura; eles se constroem historicamente através das relações interpessoais com sujeitos mais experientes. É nesse ponto que podemos falar em mediação no pensamento de Vygotsky.

Sendo a linguagem o elemento básico na representação do mundo, o modo como se dá essa relação – entre indivíduos experientes e iniciantes – implica diretamente em um maior ou um menor grau de afinidade. Para exercer a leitura de forma autônoma, o leitor necessita passar pela fase de motivação e de instrumentalização no campo da linguagem escrita. Tal fase é sempre uma etapa de conquista e sedução que só pode ser realizada dentro de uma relação subjetivamente afetiva com o mediador. Segundo Michele Petit (2008), o mediador pode ser um professor, uma namorada, um biblio- tecário, etc. E quando Petit nos fala de uma “intervenção” capaz de “permitir” uma “mudança” tão significativa que transforma não-leitores em leitores, ela se refere a um tipo de relação baseado num alto grau de afetividade que gera confiança e encanto. Confiança porque é preciso sentir-se seguro para acompanhar o outro, e encanto porque é preciso estar envolvido emocionalmente para querer seguir. Não é de hoje que os teóricos da educação vêm falando que a base de todo ato educacional é o amor que se deve ter pelo outro. Amar no sentido vocacional, tal qual nos define Rubem Alves:

3 Com relação à ZDP, muitos trabalhos vêm sendo produzidos nos últimos anos. A título de referências, indicamos para aprofundamento do tema: Ângela Mara de Barros Lara (2000), Leila Leane Lopes Leal (2003), Altina Abadia da Silva (2008), Cristiane Amorim. Martins (2009), Ida Carneiro Martins (2009) e Sônia Regina Santos Teixeira (2009). No tocante ao conceito de ZDP, Teixeira argumenta que o termo “proximal” não corresponde exatamente à ideia de uma função psicológica emergem do sujeito que pode (ou não) se tornar um processo de desenvolvimento. Para substituir, Teixeira

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Educadores, onde estarão? Em que covas terão se escondido? Professores, há aos milhares. Mas professor é profissão, não é algo que se define por dentro, por amor. Educador, ao contrário, não é profissão; é vocação. E toda vocação nasce de um grande amor, de uma grande esperança (ALVES, 1980, p. 11).

Esse encontro amoroso entre educador e educando, de que nos fala Alves, foi profundamente teorizado por Henry Wallon (1995) quando na elaboração de sua tese, onde defendeu que a inteligência está intimamente ligada ao grau de afetividade que sentimos ao longo da vida. Para Wallon a formação intelectual depende diretamente de como se dá a evolução da afetividade das crianças. O autor não coloca em dois planos distintos “razão” e “emoção”, mesmo quando estabelece predominância de um sobre o outro em determinada fase do processo de formação. Porém, em nenhum instante as atividades cognitivas se desatrelam dos aspectos emocionais.

Apesar das diferenças entre Wallon e Vygotsky, os dois teóricos dão fundamental importância às emoções. Para Wallon, a origem do processo cognitivo atravessa o campo motivacional – instância que perpassa além das necessidades, das pulsões, dos interesses, engloba também os afetos e toda espécie de emoção. Vygotsky defende a ideia de que a psique-humana é formada por uma dinâmica relação entre intelecto, afetividade e interação com o outro. Em outras palavras, as possibilidades que o meio oferece refletem o tipo de relação que se tem com outros indivíduos e suas receptividades afetivas. Assim, os aspectos emocionais se manifestam e se transformam mediante as relações sociais. Mas como esse tipo de relação pode servir à formação de novos leitores? Qual o papel do afeto nas estratégias de mediação de leitura? É possível realizar a mediação sem a construção de uma relação afetuosa? As pesquisas desenvolvidas pelo Grupo de Estudos Literários na Amazônia e Formação de Leitor (GELAFOL) nos levam a algumas possibilidades de entender melhor o fenômeno da mediação e refletir sobre a afetividade conduzindo o ato de ler. É o que passaremos a discorrer.

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