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A DISCUSSÃO DE PÓS-LEITURA

Propor, na sala de aula, a leitura e a discussão do conto “Um garoto chamado Rorbeto” (PENSADOR, 2005), com foco em como a diferença é encarada, propiciou interações fecundas entre a professora-pesquisadora (PP) e as crianças (sujeitos participantes), como podemos exemplificar no trecho abaixo:

(160) PP: gente, e se acontecesse aqui na sala, se chegasse um aluno novo e vocês descobrissem que ele tinha seis dedos, como vocês reagiriam?

[...]

(164) PP: Priscila acharia estranho, Vinícius acharia legal e Ítalo Gabriel acharia que ele era um alienígena, mas como vocês tratariam ele quando ele chegasse? (165) Ítalo Gabriel: eu ia brigar com ele.

(166) PP: por que você brigaria com ele? (167) Ítalo Gabriel: porque ia dar vontade. (168) PP: por que ia dar vontade?

(169) Ítalo Gabriel: porque quando um novato chega, ele tem que apanhar. (170) PP: vocês concordam com o que Ítalo disse?

(171) ASRJ: nã:::o:::.

(172) Priscila: isso é falta de educação. (173) Keylla: é tipo bullying.

(174) Ângelo: professora, se o menino fizesse isso com ele, ele não iria gostar. (175) Ítalo Gabriel: eu meto o pau, eu meto o pau. Tô de boa.

(176) PP: mas você acha que é legal bater em um garoto só porque ele é novato ou porque ele tem uma diferença?

(177) ((Ítalo Gabriel ficou calado. Não quer responder)).

(178) Ângelo: não, professora. André ((referindo-se ao colega de turma que possui o espectro autista)) é diferente, mas todo mundo trata normal, só pede para que ele pare de bater palmas quando atrapalha a aula. (Transcrição, 2018).

No diálogo, percebemos as diferentes maneiras que os sujeitos participantes – neste texto identificados com pseudônimos – se posicionam sobre a reação que teriam diante da diferença de um colega. Observamos, no turno (164), que há divergências no modo como cada um encararia o novo integrante da turma.

Priscila e Ítalo Gabriel demonstram que o fato de o colega ter seis dedos os incomodaria de algum modo, em virtude da característica incomum, enquanto Vinícius olharia tal diferença positi- vamente, identificando-se com os colegas de Rorbeto na história. Ainda no turno (164) a PP estimula os discentes a falarem sobre o tratamento que seria dado ao sujeito “diferente”, fazendo emergir novamente conflitos entre as respostas dos alunos. Ítalo Gabriel é o primeiro a se posicionar expondo em seu discurso uma razão para agredir o outro. Tal justificativa “porque ia dar vontade” se assemelha

A RECEPÇÃO DE CRIANÇAS À LEITURA DE LITERATURA PARA A DISCUSSÃO SOBRE O BULLYING NA SALA DE AULA Lívia Cristina Cortez Lula de Medeiros (IFPB)

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violência. Frente as respostas de Ítalo – turnos (165), (167) e (169) – e novamente no intuito de incitar à discussão, a PP busca conhecer a opinião dos demais alunos sobre a fala do colega.

Nos turnos (172), (173) e (174) destacam-se as argumentações sobre a discordância em relação ao posicionamento adotado por Ítalo. Priscila demonstra em sua resposta que não considera o compor- tamento do colega adequado. Keylla faz uma relação entre o seu conhecimento sobre bullying e a ação que Ítalo praticaria, caso a situação da história ocorresse na sala de aula deles. Ângelo destaca a necessidade de se ter empatia pelo outro, o que nos remete a questão do respeito que deve existir e ser cultivado no ambiente escolar. Além disso, frente a resposta de Ítalo – turno (175) – Ângelo faz a relação texto literário x realidade – turno (178) –, exemplificando a questão do respeito ao afirmar que a turma “trata normal” o colega diagnosticado com o espectro autista.

Nesse breve episódio fica evidente que os sujeitos têm confiança para exporem suas opiniões, seja de aceitação ou não ao ser “diferente”. É, portanto, por meio desse conflito de ideias que os indivíduos têm a oportunidade de refletirem e (re)construírem suas percepções diante de práticas de violência, como o bullying.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisando os achados iniciais da pesquisa, este artigo aponta para a identificação dos sujeitos participantes com situações e ações da personagem Rorbeto presente na história, levando-os a se posicionarem diante da diferença, o que potencializa as possibilidades de transformação de valores e construção de novas percepções de vida no leitor e, em decorrência, de mudanças de atitudes no contexto escolar.

Desse modo, a literatura se afirma como importante território discursivo para a compreensão, o debate e o enfrentamento do bullying, uma vez que desenvolve o pensamento argumentativo e crítico por meio de uma experiência vicária imaginativa, sensível e formativa com desdobramentos promissores.

A RECEPÇÃO DE CRIANÇAS À LEITURA DE LITERATURA PARA A DISCUSSÃO SOBRE O BULLYING NA SALA DE AULA Lívia Cristina Cortez Lula de Medeiros (IFPB)

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SOBRE OS MODOS DE PENSAR A FORMAÇÃO

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