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Reconhecimento de faces versus reconhecimento de objetos

Em que aspectos o reconhecimento de faces difere do reconhecimento de objetos? É importante salientar que o reconhecimento de faces envolve mais o processamento

holístico. O processamento holístico envolve uma forte integração das informações de

um objeto total focando as relações entre as características e também as características em si. O processamento holístico de rostos é mais eficiente e mais confiável do que o processamento das características. Ele é mais rápido, porque as características faciais são processadas em paralelo, em vez de uma a uma. Na verdade, ele é tão rápido que rostos familiares podem, em geral, ser reconhecidos em menos de meio segundo (Bruce & Young, 1986). Ele é mais confiável, porque as características faciais individuais (p. ex., tonalidade da pele, formato da boca) estão sujeitas à mudança.

Evidências de que o processamento holístico é mais usado com faces do que com objetos provêm de estudos sobre o efeito de inversão de faces (McKone et al., 2007; Bruyer, 2011). O efeito de inversão de faces é o achado de que faces são muito mais difíceis de identificar quando apresentadas invertidas ou de cabeça para baixo do que na vertical. Em contraste, os efeitos adversos da inversão são, com frequên- cia, muito menores com objetos e em geral desaparecem rapidamente com a prática (McKone et al., 2007). Contudo, as evidências são mistas. Diamond e Carey (1986) identificaram que especialistas em cães mostravam um efeito de inversão de tamanho comparável para fotografias de raças de cães tanto quanto para faces. Em pesquisa similar, Rossion e Curran (2010) encontraram que especialistas em carros tinham um efeito de inversão muito menor para carros do que para faces. Entretanto, aqueles com maior expertise apresentaram um efeito de inversão maior para carros do que aqueles com menor expertise.

Mais evidências em apoio à noção de que faces são especiais provêm do efeito

parte-todo, que é o achado de que é mais fácil reconhecer parte de uma face quando

ela é apresentada dentro de uma face completa do que isoladamente. Farah (1994) es- tudou esse efeito. Os participantes foram apresentados a desenhos de faces ou casas, e associavam um nome a cada face e cada casa. Então, eram apresentados a faces e casas completas ou a apenas uma característica única (p. ex., boca, porta da frente). O desempenho do reconhecimento para partes da face foi muito melhor quando a face completa era apresentada em vez de uma característica única. Esse é o efeito parte- -todo. Entretanto, o desempenho do reconhecimento para características da casa era muito semelhante quando a imagem estava completa e quando se apresentava apenas uma característica.

Mais evidências sugerindo que faces são processadas holisticamente foram repor- tadas por Richler e colaboradores (2011) usando faces compostas. As faces compostas são constituídas por uma metade superior e uma metade inferior que podem ou não ser da mesma face. Os participantes do estudo decidiam se as metades superiores de duas faces compostas sucessivas eram as mesmas ou diferentes. O desempenho foi pior quan- do as metades inferiores das duas faces compostas eram diferentes. Esse efeito da face composta sugere que as pessoas não conseguem ignorar as metades inferiores e, assim, o processamento das faces compostas é holístico.

Se o reconhecimento de faces depende fortemente do processamento holístico, podemos esperar que indivíduos que são em especial bons nesse processamento tenham habilidade superior para o reconhecimento de faces. Isso é exatamente o que Richler e colaboradores (2011) encontraram.

Em suma, há evidências que apoiam a noção de que o reconhecimento de faces e de objetos envolve processos diferentes. Entretanto, as questões são complexas e muitas outras pesquisas relevantes são discutidas a seguir. É de particular importância se as diferenças de processamento entre faces e outros objetos ocorrem, porque existe algo especial em relação a faces ou porque temos acentuadamente mais expertise com faces do que com alguma categoria de objetos.

TERMOS-CHAVE Processamento holístico

Processamento que envolve a integração das informações de um objeto total (especialmente faces).

Efeito de inversão de face

O achado de que faces são muito mais difíceis de reconhecer quando apresentadas de cabeça para baixo; o efeito de inversão é menos acentuado (ou ausente) com os objetos.

Efeito parte-todo

O achado de que parte de uma face é reconhecida mais facilmente quando apresentada no contexto de uma face completa do que isoladamente. CONTEÚDO ON-LINE em inglês Weblink: Ilusão de Thatcher

CAPÍTULO 3 Reconhecimento de objetos e faces 103

Prosopagnosia

Consideremos pacientes com lesão cerebral com processamento de faces gravemente prejudicado. Se tais pacientes invariavelmente também tivessem grande prejuízo no pro- cessamento de objetos, isso sugeriria que os dois tipos de processamento são similares. Contudo, se o processamento de faces diferisse de modo substancial do processamento de objetos, esperaríamos encontrar alguns indivíduos com lesão cerebral com processa- mento de faces gravemente prejudicado, mas não com processamento de objetos. Tais indivíduos existem. Eles sofrem de prosopagnosia, proveniente das palavras gregas para “face” e “sem conhecimento”.

Prosopagnosia é uma condição heterogênea, com os problemas referentes ao reco- nhecimento de faces e objetos variando entre os pacientes. Essa condição pode ser cau- sada por dano cerebral (prosopagnosia adquirida) ou ocorrer sem alguma lesão cerebral óbvia (prosopagnosia desenvolvimental). Observe que parece haver poucos casos (ou nenhum) de prosopagnosia pura.

Apesar de sua deficiência no reconhecimento consciente de faces, os prosopagnó- sicos frequentemente mostram evidências de reconhecimento encoberto (processamento de faces sem conhecimento consciente). Por exemplo, Simon e colaboradores (2011) mostraram faces familiares e não familiares a um prosopagnósico, PS, que apresentava

NO MUNDO REAL: HEATHER SELLERS

Até 2% da população sofre de prosopagnosia ou cegueira facial. Podemos compreender os profundos problemas que eles experimentam na vida diária examinando o caso de Heather Seller (ver foto). (Você pode assistir no YouTube: You

don’t look like anyone I know.) Ela é uma mulher norte-americana que sofre de prosopagnosia e escreveu sobre suas

experiências em um livro de 2010 intitulado You don’t look like anyone I know. Quando era criança, ela se perdeu de sua mãe em uma mercearia. Quando os funcionários da loja reuniram mãe e filha, Heather inicialmente não reconheceu a mãe. Observe, no entanto, que Heather Sellers não tem problemas relevantes com todas as formas de reconhecimento visual: a habilidade para reconhecer objetos é essen-

cialmente normal.

Heather Sellers também tem dificuldades para reconhecer a própria face. Quando criança, achava muito difícil encontrar seu rosto nas fotografias da es- cola. Como adulta, ela admite: “Algumas vezes, quan- do estou em um elevador cheio, com espelhos à volta, e uma mulher se move, tento sair do caminho. En- tão, eu me dou conta ‘oh, essa mulher sou eu’.” Tais experiências fizeram dela uma pessoa muito ansiosa.

Surpreendentemente, Heather Sellers já estava com mais de 30 anos quando percebeu que sofria de prosopagnosia. Por que isso levou tanto tempo? Em essência, ela identifica outras pessoas se baseando no corte de cabelo, no tipo corporal, no vestuário, na voz e no modo de andar. No entanto, isso não im- pediu que ela ficasse seriamente embaraçada com suas frequentes falhas em reconhecer pessoas que ela conhece bem. Ela também deixava alguns amigos zangados porque passava reto por eles. Mais surpre- endentemente ainda, ela por vezes não reconhecia o próprio marido! Segundo Heather Sellers, “não ser ca- paz de saber seguramente quem são as pessoas – dá uma sensação de fracasso o tempo todo”.

TERMO-CHAVE Prosopagnosia

Condição

preponderantemente causada por lesão cerebral na qual existe prejuízo grave no reconhecimento de faces, mas muito menos prejuízos no reconhecimento de objetos; também conhecida como cegueira facial.

104 PARTE I Percepção visual e atenção

ausência de reconhecimento consciente de faces familiares. Apesar disso, PS apresentou mais ativação em uma área cerebral associada ao processamento facial (a área facial fusiforme, discutida posteriormente) quando faces familiares foram exibidas, do que faces não familiares. Dessa forma, as faces foram processadas aquém do nível do conhe- cimento consciente.

Por que os prosopagnósicos têm reconhecimento de faces muito pobre, mas reco- nhecimento de objetos razoável? Uma explicação é que eles possuem um transtorno do reconhecimento específico para faces envolvendo lesão em uma área do cérebro especiali- zada no processamento de faces. Outra explicação é que o reconhecimento de faces é mui- to mais difícil do que o reconhecimento de objetos. O reconhecimento de faces envolve a distinção entre integrantes da mesma categoria (i.e., faces). Todavia, o reconhecimento de objetos frequentemente envolve apenas a identificação da categoria relevante (p. ex., gato, carro). De acordo com esse ponto de vista, os prosopagnósicos teriam desempenho fraco se fosse necessário fazer julgamentos perceptuais detalhados com objetos.

Achados

Busigny e colaboradores (2010b) testaram as duas explicações anteriores. O desempe- nho no reconhecimento visual de um paciente prosopagnósico do sexo masculino, GG, foi comparado ao de controles sadios para várias categorias de objetos: pássaros, barcos, carros, cadeiras e faces. Em cada ensaio, era apresentado aos participantes um estímulo- -alvo pertencendo a uma dessas categorias, seguido por dois estímulos da mesma cate- goria (alvo + distrator). Os participantes indicavam o que foi visto previamente.

Os achados desse estudo são apresentados na Figura 3.12. GG foi tão preciso quanto os controles com cada categoria não face. No entanto, ele foi substancialmente menos preciso com faces do que os controles (67% vs. 94%, respectivamente). Assim, GG parece ter mais um prejuízo específico para faces do que uma inabilidade geral para reconhecer estímulos complexos.

Busigny e colaboradores (2010a) encontraram evidências de pesquisas anteriores sugerindo que pelo menos 13 prosopagnósicos tinham níveis essencialmente normais de reconhecimento de objetos, apesar do reconhecimento de faces muito precário. En- tretanto, eles identificaram duas limitações com essa pesquisa. Em primeiro lugar, a dificuldade das decisões de reconhecimento que os pacientes tinham de tomar não era manipulada sistematicamente e era difícil de avaliar. Em segundo, a abordagem mais informativa é medir a velocidade das decisões de reconhecimento, bem como sua exati- dão. Isso não foi feito nesses estudos anteriores.

Busigny e colaboradores (2010a) eliminaram essas limitações em seu estudo de PS, uma mulher prosopagnósica. Eles manipularam a similaridade entre itens-alvo e distratores em uma tarefa de reconhecimento de objetos e registraram os tempos de CONTEÚDO ON-LINE em inglês Weblink: Prosognosia Weblink: Vídeo de um prosopagnósico 1,0 0,9 0,8 0,7 0,6 0,5 P recisão (%) 2000 1500 1000 500 0 VRs (ms) Ctr GG Ctr GG Ctr GG Ctr GG Ctr GG ** p<0,01 Sig** Precisão VRs Figura 3.12

Precisão e velocidade do reconhecimento (VR) de objetos para pássaros, barcos, carros, cadeiras e faces pelo paciente GG e por controles sadios (Ctr).

CAPÍTULO 3 Reconhecimento de objetos e faces 105

reação e os índices de erro. O aumento no grau de similaridade entre os alvos e distra- tores aumentava os índices de erro na mesma proporção em PS e nos controles sadios. Entretanto, PS teve um desempenho muito fraco em uma tarefa de reconhecimento de faces mesmo quando a tarefa era muito fácil para os controles sadios.

Suponhamos que o reconhecimento de faces e o reconhecimento de objetos envol- vam áreas cerebrais um pouco diferentes. Então, poderíamos esperar encontrar pacientes com reconhecimento de objetos prejudicado, mas reconhecimento de faces intacto. Existe algum apoio a essa expectativa. Moscovitch e colaboradores (1997) estudaram CK, um homem com agnosia para objetos (reconhecimento de objetos prejudicado). Ele teve de- sempenho tão bom quanto os controles no reconhecimento de faces, independentemente de se tratar de uma fotografia, uma caricatura ou um desenho, contanto que estivesse na vertical e as características internas estivessem nos lugares corretos.

Por que o reconhecimento de faces é tão deficiente nos prosopagnósicos? Uma explicação popular é que eles têm grande dificuldade com o processamento holístico. Busigny e colaboradores (2010b) testaram essa explicação em experimentos com o pa- ciente prosopagnósico GG em um estudo citado anteriormente. GG não apresentou os efeitos de inversão facial ou de face composta. Assim, ele não percebia faces individuais holisticamente, uma habilidade necessária para a percepção precisa das faces indivi- duais. Todavia, o reconhecimento de objetos individuais não requer processamento ho- lístico e, portanto, o desempenho de GG estava intacto em relação a esses objetos.

Evidências adicionais de processamento holístico deficiente para faces em proso- pagnósicos foram relatadas por Van Belle e colaboradores (2011). Em uma condição, os observadores podiam ver apenas uma parte de uma face por vez (p. ex., olho, boca) – isso foi feito para restringir o processamento holístico. Nessa condição, o desempenho no reco- nhecimento de faces por um prosopagnósico, GG, foi comparável ao dos controles sadios. Como era esperado, ele teve um desempenho muito pior do que os controles sadios quando a face completa estava acessível e, portanto, o processamento holístico era possível.