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RELATIVIZANDO O PAPEL DO TEMPO-ESCOLA

No documento EDUC A ÇÃO DO CAM PO E F (páginas 185-188)

de ATER/ATES: refl exões em torno do projeto piloto da UFSM

RELATIVIZANDO O PAPEL DO TEMPO-ESCOLA

Um ponto a ser levantado refere-se à contribuição dos proces- sos formais na aprendizagem e aquisição das competências. Em geral, os depoimentos falam de vivências de sentimentos de insegurança e angús- tia. Enquanto alguns destes sentimentos são devidos a questões institu- cionais133 outros estão relacionados ao reconhecimento de um “desprepa-

ro” para o trabalho a ser exercido, gerando questionamento sobre a ade- quação da matriz curricular. Em geral, este tipo de depoimento é inter- pretado como indicador de defi ciências no aporte dos processos formais de “capacitação”. Mas este tipo de interpretação pode ser questionado.

132. O trabalho de Florêncio e Costa (2006) revela a grande diversidade de orientações das organizações prestadoras de ATES para o INCRA.

133. Atraso de bolsas e de cronograma e problemas com reconhecimento do Curso de Especialização, de modo geral.

tiona-se e percebe as contradições existentes e é sobre esta realidade que constrói suas interpretações.

Na tentativa de “sensibilizar” para a relevância da questão agrá- ria e possibilitar acesso ao conhecimento científi co acumulado em temá- ticas relevantes para as áreas de assentamento e Agricultura Familiar, o Curso recorreu à incorporação de docentes com a formação das mais diversas. Para um estudante entrevistado, algumas das difi culdades en- frentadas derivam do fato de que muitos dos profi ssionais que ministra- ram as disciplinas são do meio urbano, não tem um vínculo mais especí- fi co com o campo, não conhecem a cultura, a vivência, a complexidade que é o meio rural. Têm uma idéia fantasiosa e romântica em relação ao campo, e isso se refl ete na prática em sala de aula. Para exemplifi car tal afi rmação recorre-se à fala de um estudante entrevistado:

Do ponto de vista da extensão rural e da ATER eu vejo um deslocamen- to muito grande, acho que ele [o docente] não tem um vínculo maior com a terra ou por não conhecer o meio rural como ele se apresenta na realida- de. Eu percebo é que existe uma idéia meio fantasiosa em relação ao campo, um pouco romântica, da coisa um pouco idealista do meio rural, e isso não se concretiza no dia-a-dia, não é assim que acontece, é mais duro e precisamos estar preparados para agir (Suj 13).

Cabe salientar que se entende que estes docentes se encontram também em processo de transição, tentando reestruturar suas ações, e essa transição, muitas vezes, implica momentos de tensionamento, de contra- dições e refl exão130.

Os técnicos de campo, conforme relato dos estudantes, fre- qüentemente enfrentaram sobrecarga de trabalho por ter que cumprir planejamentos internos e demandas públicas diversas. Enfrentaram, ainda, difi culdades particulares aparentemente associadas às restrições fi nanceiras devido à baixa remuneração e constantes atrasos no pagamen- to de salários.131 É possível supor, também, que os indivíduos que têm

muitos anos de atuação no campo possuem uma leitura particular sobre a orientação a ser dada aos serviços de ATER/ATES em contextos sociais específi cos e tais concepções, não, necessariamente, são coincidentes

130. Além dos professores das disciplinas do tempo-escola, o Projeto incluiu docentes orientadores. No caso do Projeto Piloto da UFSM o Comitê de Orientação foi formado por 7 professores de diferentes áreas do conhecimento do Centro de Ciências Rurais da UFSM. A função dos orientadores foi de acompanhar e orientar o trabalho dos estudantes, sendo que cada professor orientou, no mínimo, dois estudantes. As falas dos estudantes sobre os orientadores não foram analisadas.

131. Observações de campo evidenciaram que durante o período de vigência do projeto foram freqüentes os atrasos no pagamento de salários, especialmente aos técnicos que atendem os assentamentos.

Educação do Campo e Formação Profi ssional: a experiência do Programa Residência Agrária Capítulo 5 Refl exões / Análises

de processos de “pesquisa-ação” com alternância do Tempo Comunida- de e Tempo Escola é bem freqüente, entretanto, no contexto de diversi- dade de perfi s, áreas de atuação e modelos de atuação, parece requerer uma “individualização” do processo formativo difícil de alcançar em pro- gramas formais coletivos.

Neste contexto é possível interpretar que no caso ora analisado optou-se, no Tempo Escola, pela abordagem de questões gerais que ha- veriam de ser relacionadas à sua ação a partir de um esforço individual do estudante135. A difi culdade em fazer esta inter-relação parece justifi car as

falas que solicitam maior “troca de experiências” entre eles.

A realização de programas com orientação diferenciada (cons- tituídos a partir das problemáticas vivenciadas a campo) parece enfrentar muitas difi culdades pela diversidade de temáticas e necessidades indivi- duais, complexidade do planejamento do processo formativo e elaboração de conteúdos e abordagens adequadas (deve-se considerar inclusive a possibilidade de que estes conteúdos não estejam prontamente disponí- veis) o que induz a um problema de compatibilização de ritmo da ação e da produção de conhecimento, além de problemas mais gerais relativos à hierarquização de prioridades no contexto universitário.

De modo geral, a concepção da proposta (em sua ambição de conciliar formação, pesquisa e resolução de problemas da comunidade) implica um processo muito desafi ador. A difi culdade inerente a este pro- cesso já era percebida por um estudante ao explicitar o desafi o ao ser en- frentado na Especialização:

é como conciliar que as pessoas consigam se formar na suas concepções, nas suas maneiras de interagir, nos seus métodos de trabalho, e consiga fazer isso fl uir na realidade com o avanço no processo de desenvolvimento nas comunidades que estão envolvidas (Suj.11).

Entende-se que o caso analisado remete, sobretudo, a um pro- cesso de luta e uma conquista daqueles que buscaram criar condições para uma formação diferenciada. Deste modo, o Projeto Piloto da UFSM (e por esta via o Programa Residência Agrária) oportuniza uma formação di- ferenciada, mas a mudança de “perfi l” do profi ssional é um processo mais complexo, no qual interferem fatores diversos que vão além do alcance da Universidade.

135. Cabe reconhecer que, na estrutura idealizada os técnicos de campo e orientadores poderiam contemplar o atendimento as necessidades particulares de formação.

Perrenoud (2002) esclarece que a maior parte dos estudantes é formada com uma expectativa de que a prática profi ssional consiste na reprodução de comportamentos bem sucedidos (aplicação de receitas). As difi culdades de realizar a prática profi ssional, segundo este modelo, criam angústias. Para o autor, o medo, angústia e incerteza são resulta- dos das representações sociais da profi ssão e da formação inicial, as quais perduram no decorrer de sua vida se não forem trabalhadas de forma diferenciada.

O novo profi ssional mede a distância entre o que imaginava e o que está vivenciando sem saber, ainda, que este desvio é normal e não tem relação com sua incompetência, nem com sua fragilidade pessoal, mas está ligado à diferença entre a prática autônoma e tudo que já conhecia (Consultar Perrenoud, 2002). Ou seja, para o autor, as angústias e inseguranças sentidas pelos alunos em relação ao novo podem ser justifi cadas pelo fato de que, no momento em que os estu- dantes se vêem atuando na prática de ATER/ATES, estão abandonan- do sua identidade de estudantes para adotar a de profi ssional respon- sável por suas decisões; em um contexto em que as receitas disponíveis não são sufi cientes134.

Segundo Perrenoud (2002, p.19) o profi ssional iniciante “tem a sensação de não dominar os gestos mais elementares da profi ssão, ou medo de pagar um preço muito alto por eles”. Para Perrenoud (2002, p.19):

O iniciante está em um período de transição, oscilando entre os modelos aprendidos durante a formação inicial e as receitas mais pragmáticas que absorvem no ambiente profi ssional. Ele não consegue se distanciar de seu papel e das situações.

Das colocações de Perrenoud depreende-se que mesmo que alguns elementos da matriz curricular possam ser adequados, há difi cul- dades que são inerentes à experiência em questão (ingresso no mundo profi ssional e atuação num campo complexo – de promoção do desen- volvimento sustentável) e se coloca para ele a opção de seguir um cami- nho desafi ador ou “incorporar receitas pragmáticas que absorve no am- biente profi ssional”.

Entende-se conveniente refl etir sobre alguns elementos da formação que poderiam ser repensados. A idealização de formação através

134. Ainda, talvez, o principal desafi o implicado nesta transição seja perceber, com Perrenoud (2002, p.11), que “nas profi ssões humanistas, prescreve-se menos que nas profi ssões técnicas, o que exige dos profi ssionais, de modo geral, um nível bastante elevado de qualifi cação”.

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Capítulo 5 Refl exões / Análises

As experiências que o Programa proporcionou permitem refl e- tir sobre as condições necessárias para que esse papel fundamental do conhecimento científi co se concretize em consonância às propostas do movimento da Educação do Campo.

A realização do Programa traz para dentro da Universidade pública o desafi o de constituir o diálogo transdisciplinar entre a academia e os movimentos sociais do campo, e o reconhecimento de que a cons- trução de novos paradigmas na Educação deverá acontecer em sincroni- cidade com a luta político-ideológica contra-hegemônica que esses mo- vimentos protagonizam.

Na medida em que a proposta do PRA implica em mudanças paradigmáticas no modo de produção do conhecimento científi co, as resistências e reivindicações que se manifestam na dinâmica de realização dos cursos tendem a reproduzir no interior das Universidades o modo específi co pelo qual a luta de classes se manifesta no campo brasileiro.

O Programa interfere diretamente no processo de construção do conhecimento nas Ciências Agrárias e nas Ciências Sociais ao postular a necessidade de integração entre os saberes científi co e social, e estimular a inserção do tema da Reforma Agrária e dos modelos de Desenvolvimen- to Rural na agenda de pesquisa das Universidades públicas.

O processo sócio-histórico que permite compreender a especi- fi cidade dessa experiência é o surgimento de um conjunto de políticas de Reforma Agrária que são conquistas decorrentes da luta social dos povos do campo, disputadas por dentro do Estado. Estas conquistas acontecem em sincronicidade com as correlações de forças conjunturais da luta de classes no campo, dos confl itos pela terra e do debate social por políticas públicas direcionadas aos povos do campo, nos últimos dez anos.

A consolidação desse processo contra-hegemônico deve-se também, em grande parte, à emergência teórico-ideológica do movimen- to social da Educação do Campo. Para as forças sociais em movimento no campo brasileiro neste momento histórico, o direito à Educação assume uma fundamental relevância, entendendo-se a educação não apenas como acesso à escolarização formal (da EJA à Pós-Graduação), mas num senti- do mais radical, enquanto processo de formação de sujeitos com autono- mia intelectual e visão crítica do social, enquanto possibilidade de cons- trução de um pensamento teórico-prático alimentado pelas necessidades inerentes ao modo de vida e às lutas dos povos do campo.

As experiências de formação implantadas pelo PRA são um campo privilegiado de refl exão sobre o potencial existente no contexto institucional e acadêmico das Universidades públicas como espaços sócio-

A questão camponesa e os

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