urbana, Aids e craque. O som do The Cure saindo de um walkman, descendo pela rua, passando pelo jovem pálido na esquina com seus spikes e cabelo moicano doura do. Ou as adolescentes em slacks justos desmaiando histéricas diante de Michael Jackson e dançando até o dia amanhecer — enquanto os primeiros, toscos, computa dores pessoais chegam ao mercado doméstico e a lua descorada brilha do alto de um céu que agora contém buracos de ozônio e gases de estufa - fenômenos estranhos, que um antropólogo arguto logo chamará de híbridos. Outro híbrido é enterrado num sarcófago inominável perto da pequena cidade de Chemobyl, na Ucrânia. Reagan e Thatcher; Nicarágua e Afeganistão. índira Gandhi assassinada; Saddam Hussein elei to. O lof Palme assassinado. M ikhail Gorbachev eleito. Na m etade da década, m er gulhadores de águas profundas localizam o Titanic no fundo do Atlântico Norte, e planos são feitos para resgatar partes do enorme e luxuoso naufrágio. Mas então a União Soviética anuncia sua glasnost t perestróica, redução unilateral de armas e li berdade de expressão; e o mundo observa a grande superpotência comunista camba lear e desabar sob seu próprio peso. Em 1989 o Muro de Berlim é demolido e vendido aos pedaços para indivíduos e empresas em todo o mundo. A democracia e o capita lismo triunfam. Nelson M andela é libertado.
Os anos 1980 trouxeram desdobr amentos políticos domésticos que deixaram des contentes muitos acadêmicos da área das ciências sociais e humanas. O setor público ficou debilitado e as universidades foram reestruturadas para se tomar mais eficientes. Os recursos futuros destinados a disciplinas “inúteis” como a antropologia se tornaram mais incertos do que nunca. A competição e o individualismo foram proclamados das tribunas e instituídos nas universidades. Depois da vida acadêmica expansiva, agressi va dos anos 1970, os anos 1980 pareciam contidos: claustrofóbicos ou ensimesmados.
A desilusão era geral entre uma geração de antropólogos que até recentemente pensava que podia mudar o mundo. Pelo fim da década, alguns pareciam acreditar que “a antro pologia como a conhecemos” estava (ou devia estar) morta e enterrada, enquanto ou tros continuavam com suas pesquisas, enviando alunos a trabalho de campo e manten do as instituições em funcionamento - organizando conferências, editando revistas, re visando monografias, trabalhando em projetos aplicados, etc.
Até 1980, a antropologia havia se tomado uma disciplina diversificada e dinâmi ca, com inúmeras tradições de pesquisa claramente delineadas. Apesar dos recentes sobressaltos causados pelos m arxistas e outros sublevadores, e a despeito da qua se constante autocrítica que antropólogos haviam praticado durante uma década ou mais, os principais teóricos ainda inspiravam interesse e respeito. Eles constituíam a geração que havia adquirido experiência e conhecimento em departamentos dirigi dos por pessoas como Kroeber, Redfield e Herskovits, Firth, Evans-Pritchard e Gluckman durante os primeiros anos do pós-guerra. A estrela ascendente da antropo logia americana era Geertz, que havia se mudado de Chicago para Princeton em 1970, dois anos depois que Tum er/ò/ para Chicago e ali assumiu sua cátedra de pro fessor. Até então Geertz estava consolidado como o antropólogo simbólico mais eminente, admirado por suas interpretações eloqüentes e sutis. Seu contemporâneo, I Sahlins, chegou em Chicago em 1973. Sahlins havia abandonado o neo-evolucionis-
mo e aderido ao marxismo boasiano (se isso é possível!), mas em pouco tempo pas saria a desenvolver sua própria linha de estruturalismo. Todas as três fases de sua obra tiveram seus admiradores. Schneider, também em Chicago, logo proclamaria (1984) que o conceito de parentesco era tão bom quanto era sem sentido; e Wolf, que publicaria seu magnum opus sobre o impacto local do colonialismo em 1982, teve um séquito numeroso na City University de Nova York. Harris passaria de Colômbia para a Universidade da Flórida em 1982, depois de publicar seu manifesto teórico so bre materialismo cultural em 1979 - o mesmo ano em que Bateson, perseguindo seus interesses interdisciplinares na Califórnia, terminou sua primeira e única grande obra de síntese, Minei and Nature.
Entre os antropólogos britânicos, vários partiram para os Estados Unidos - Mary
J
Douglas, Frederick Bailey, Victor Turner e outros. Douglas continuou a realizar um trabalho importante nas fronteiras entre o estruturalismo e o estrutural-funcionalis mo - alguns consideram o pouco conhecido Cultural Bias (1978) seu melhor livro desde então. Na década seguinte, ela publicaria How Institutions Think (1987), uma defesa notável do estrutural-funcionalismo num tempo em que, aos olhos da maioria, ele estava seguramente relegado às brumas da história. Na Inglaterra, Needham e Ardener tiveram seus adeptos em Oxford; Needham com sua versão de estruturalis-8 . O F IM D O M O D E R N IS M O ? 165
mo mais holandesa do que francesa e um foco etnográfico no Sudeste Asiático; Ardener, o africanista, com sua preocupação “pós-estruturalista” pela linguagem e a cognição. Em Cambridge, presidiam Leach e Goody: Leach continuando a atrair a atenção por suas idéias teóricas, influenciadas em quase igual medida por Malinowski e Lévi-Strauss; Goody trabalhando persistentemente em suas grandiosas compara ções. Enquanto isso, Ernest Gellner (1925-1995), um filósofo tcheco natural de Paris que havia aderido ao funcionalismo malinowskiano durante sua permanência na LSE e que havia se convertido à antropologia e publicado seu primeiro e único estudo de campo sobre santos marroquinos (Gellner 1969), integraria o departamento de antro pologia de Cambridge no início dos anos 1980. Barth, um pesquisador de campo in cansável, havia terminado estudos na Nova Guiné e em Omã e estava planejando um novo período de trabalho em Bali. Na metade da década de 1970 ele havia se mudado de Bergen para o Museu Etnográfico em Oslo - e passado do seu antigo interesse por economia, ecologia e política para estudos do conhecimento. Em 1987 ele publicou Cosmologies in theMaking, um estudo regional de tradições do conhecimento nas Ter ras Altas da Nova Guiné, abordadas de uma perspectiva processual e generativa.
N a França todos os caminhos ainda pareciam levar a Paris, onde Lévi-Strauss de sempenhava suas funções. Ele havia testemunhado a ascensão fenomenal do estrutu- ralismo durante os anos 1950, e depois o implacável ataque contra essa escola lança do pela geração mais jovem, capitaneada por Foucault e Derrida. Lévi-Strauss conti nuou a escrever novos livros, apesar de ter poucos novos alunos por essa época. Bourdieu havia se mudado de Lille para Paris no começo dos anos 1960, e se tomou uma figura internacional com a tradução para o inglês, em 1977, de Outline o f a The- ory o f Praclice.iDumont, cuja reputação como antropólogo estivera aumentando desde que Homo Hierarchicus foi publicado em inglês em 1970 (até então, fora da França, ele era considerado como um “mero” sul-asianísta), continuara a escrever obras instigantes sobre hierarquia e valores, individualismo e coletivismo, “o Oci dente” versus “o Oriente”, e atrairía um séquito bastante substancial durante a déca da de 1980.
Até 1980 não era mais possível dizer que a pesquisa antropológica estava limita da a certas “regiões centrais” ou a estudos de culturas exóticas, não ocidentais. Na es teira da revolução metodológica dos anos 1970, o trabalho de campo em países oci dentais havia se tomado corriqueiro, e os anos 1980 veriam uma produção considerá vel de publicações nesse gênero, inclusive Kitchen-Table Society( 1984), de Marian- nc Gullestad - um estudo da mulher da classe operária urbana da Noruega; e Falling Jrom Grace (1988), de Katherine Newman - um estudo da mobilidade descendente entre a classe média americana no governo Reagan. A antropologia urbana, iniciada
pelas escolas de Chicago e Manckester, havia se consolidado como um empreendi mento absolutamente respeitável.
A geração mais velha de antropólogos entrou na década de 1980 com emoções contraditórias. Para alguns o recuo com relação ao compromisso político parecia uma traição a tudo o que era sagrado para a antropologia. Outros viram uma oportu nidade de voltar ao trabalho, depois de uma década de debates políticos tempestuo sos. Para outros ainda foi a oportunidade longamente esperada de livrar-se da antiga idéia da antropologia como ciência natural e de instituir um novo humanismo. Um exemplo deste último foi Victor Tumer, que, em sua obra póstuma The Anthropology o f Performance, escreve a respeito da “desumanização sistemática dos sujeitos de estudo humanos” nos relatos antropológicos, “considerando-os como os portadores de uma “cultura” impessoal ou [como] cera a ser impressa com “padrões culturais”, ou conforme determinado por “forças,” “variáveis” ou “pressões” sociais, culturais ou psicológico-sociais de várias espécies” (Turner 1987: 72). Tumer havia percorri do um longo caminho desde seus anos de estudante com Gluckman. Nesse livro ele propõe uma antropologia experimental, alegre, uma antropologia voltada para o ser humano pleno, como um corpo que vive, respira e tem emoções. Turner recebeu bem o pós-modemismo (apesar de não gostar do rótulo) porque o pós-modernismo, pelo menos em algumas de suas formas, dava liberdade com relação a sistemas abstratos e modelos formais, fossem eles orientados para o ator ou estruturais, sociológicos ou culturais. Modelos formais obscureciam a exuberância, a criatividade e o humor da vida humana e colocavam a mente científica acima das pessoas reais.
Há um paradoxo nisso, que explicaremos rapidamente. Por um lado, um li nha-dura teórico como Bourdieu parece estar dizendo quase a mesma coisa que Tur-j ner. Seu conceito fundamental, habiíus, tem o propósito expresso de mostrar a rique za da interação humana - concentrando-se no corpo - que é precisamente o que Tur ner recomenda. Por outro lado, todo o projeto de Bourdieu, com suas ambições tota- lizantes e seu argumento formal e intrincado, parece contradizer inteiramente as in tenções de Tumer.
Também entre a geração mais jovem as idéias e interesses eram variados. Para convencer-se disso, basta examinar algumas monografias produzidas por eles. Tome Medusa 's Hair (1981), de Gananath Obeyesekere, uma análise de inspiração psica- nalítica e médica da possessão por espírito no Sri Lanka; ou Sound and Sentiment (1982), de Steven Field, que pode ser descrita como um ensaio estruturalista anima do sobre música, som natural e emoção em Papua Nova Guiné; ou Transylvanian
Villagers (1983), de Katherine Verdery, reconstituindo três séculos de mudanças po líticas, econômicas e étnicas numa comunidade camponesa romena; ou Space, Text
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and Gender ( 1986), de Henrietta Moore, um estudo - inspirado por Ricoeur e Marx - do gênero, simbolismo e poder entre os marakwets quenianos. From Blessing to Vio lence (1986), de Marc Bloch, a última e mats importante tese estrutural marxista, aborda a história e o poder conforme são expressos através de um ritual de iniciação em Madagascar; enquanto Legends o f People, Myths o f State (1988), de Bruce Kap- ferer, mergulha nos fundamentos cognitivos dos nacionalismos do Sri Lanka e da Austrália, baseando-se consideravelmente nas idéias de hierarquia de Dumont e na teoria do desempenho ritual de Turner.
Poderíamos continuar nesse veio indefmidamente, mas já vimos o suficiente para ter uma idéia da grande variedade de questões e lugares que foram analisados nessas etnografias. Mas devemos prestar atenção também ao ecletismo teórico que as impreg na. A influência do marxismo e do feminismo aparece freqüentemente; e observa-se uma tendência a enfocar o corpo, o poder e o ritual - mas os autores parecem mais dis postos do que antes a acrescentar uma pitada de Lévi-Strauss sem deglutir toda sua perspectiva, ou a aplicar uma análise de rede baseada na ação em estudos de integração social essencialmente durkheimianos. O estudo de Steven Feld, transitando à vontade pela paisagem teórica, talvez seja o melhor exemplo disso no grupo. O pós-modcmis- mo proclamou a “morte da grande narrativa”, “desconstruiu” os grandes projetos de síntese, deixando os fragmentos espalhados pelo chão. Assim, os individualistas vi vem dias felizes, tanto na antropologia como em outras áreas, e todo antropólogo que se respeite parece criar uma caixa de ferramentas analítica particular, indisponível para ser reciclada por quem quer que seja, a não ser em fragmentos.
Um relance sobre algumas obras mais explicitamente teóricas da década parece confirmar essa impressão. Tome The Symbolic Construction o f Comrnunity (1985), de Anthony P. Cohen, um livro pequeno sobre identidade local baseado em dados de Shetland e no modelo de etnicidade de Barth - em contraste com The Gender o f lhe Gift (198 8), de Marilyn Straíhem, uma obra enorme e intrincada sobre troca e gênero entre os hagens da Nova Guiné, envolvendo-se com um a grande variedade de teóri cos, inclusive Mauss e Lévi-Strauss; ou tome Symbols that Standfor Themselves (1986), de Roy Wagner, um excurso neo-lévi-straussiano sobre criatividade simbóli ca na filosofia européia e na etnografia papuana - em contraste com The Social Life ofThings (1986), obra editada de Arjun Appadurai, uma discussão das transforma ções do consumo e do valor em sistemas econômicos globais, com base nas teorias do valor dc Marx e de Simmel.
Todos esses projetos variados e incompatíveis aconteceram sobre o pano de fun do de um movimento acadêmico mais geral. Idéias freqüentemente denominadas “pós-estruturalistas” estavam se difundindo. Michel Foucault estava se tomando um
nome familiar entre os antropólogos. Controvérsias intensas giravam em tomo de questões de representação, reflexividade e a própria possibilidade de uma ciência an tropológica. Se os anos 1970 foram uma década de compromisso, os anos 1980 fo ram uma época de dúvida. E - em parte como resultado do próprio individualismo e ecletismo que observamos acima - essa dúvida também afetou a integridade das vá rias tradições nacionais na disciplina. Suas fronteiras de um século de idade começa vam a tomar-se indefinidas.
O fim do Modernismo?
Até a metade dos anos 1980 muitos antropólogos mais jovens, especialmente americanos, falavam sobre uma crise na antropologia, uma crise relacionada ao modo como os antropólogos descreviam - ou “representavam” - os povos que eles estudavam (ver, por exemplo, Fabian 1983; Clifford e Marcus 1986). Em graus di versos, eles acusavam a disciplina de “exotificar” o “outro”, de manter uma “distin- ção sujeito-objeto” entre o observador e o observado, que, diziam, continuava o pro jeto de “alterizaçâo” do colonialismo conservando uma “distinção” assimétrica, in
defensável, entre “Nós” c “Eles”.
Jargões à parte, a crise teve muito a oferecer no cenário dos anos 1980. Muitos antropólogos e pesquisadores de outras áreas haviam sustentado que o Ocidente, e especialmente a tradição ocidental científica e intelectual, tende fortemente para o controle, representado em sua forma mais visível pelas “circunstâncias controladas” dos laboratórios de física (Latour 1991). Como ciência, é claro que a antropologia também tem essa “disposição” (como Bourdieu poderia chamá-la) para controlar seus objetos de estudo. O simples planejamento de um projeto de pesquisa supõe isso. E é evidente que se deve ter muito cuidado em todas as etapas do projeto de pes quisa para manter ao mínimo a dose de - bem - “alterizaçâo”.
Mas o movimento pós-modemista foi menos direto do que isso. De fato, po der-se-ia muito bem perguntar se se deve considerá-lo um movimento propriamente dito, uma vez que seus principais proponentes muitas vezes defendiam idéias opos tas. Havia de fato muitos diferentes matizes de “pós-modernismo” (situação perfeita mente coerente com o espírito do “pós-modernismo” em si). Vejamos o panorama histórico de alguns desses matizes.
Na década anterior ó marxismo e o feminismo haviam preparado consistente mente o caminho para a crítica pós-modema da antropologia. Eles haviam mostrado que o conhecimento e o poder estavam interligados e que as visões de mundo nunca eram ideologicamente neutras. Entretanto, os próprios marxistas e feministas supos
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tamente se situavam em algum tipo de m etanível de onde podiam, com segurança e criticamente, observar e analisar o mundo. Remova esse m etanível, o que resta é pós-m odernism o, E algo como se alguém tirasse a autoridade da observação e da descrição cientificas dos boasianos e malinowskianos. Tudo o que restaria seria um número indefinido de versões do mundo.
O termo “pós-modemo” foi definido primeiramente na filosofia pelo filósofo francês Jean-François Lyotard em sua La Condition postmoderne (1979; The Post- modern Condition, 1984). Para Lyotard a condição pós-modema era uma situação em que não havia mais nenhuma "grande narrativa*1 abrangente que pudesse ser in- vocada para dar sentido ao inundo como um todo. Diferentes vozes competiriam por atenção, mas nunca se integrariam. Q livro, um best-seller inesperado, propunha-se originalmente a ser uma crítica do efeito da padronização e “achatamento” dos siste mas de recuperação de informação computadorizada sobre o discurso intelectual. Ele descrevia uma situação histórica específica no Ocidente (a que outros se referiram de formas variadas como “sociedade de informação”, “sociedade de consumo” ou mes mo “sociedade pós-industrial”), em que o domínio era exercido por novas tecnologi as, por novas relações de poder e por ideologias. Mas o pós-modemismo era ele pró prio uma ideologia, uma perspectiva analítica e uma estética que descrevia o mundo (seja o mundo do periodo pós-modemo em si ou qualquer outro mundo) como des- continuo e fragmentado - um mundo de muitas vozes locais e individuais, mais do que um mundo de escolas e ideologias hegemônicas. A arquitetura, o cinema, a lite ratura e a arte abraçaram essa atitude com entusiasmo, o que resultou num grande nú mero de produções ecléticas, ao modo de colagens, muitas vezes explorando ironica mente evocações saudosistas de estilos e modas do passado. Na antropologia a mes ma atitude foi rapidamente associada ao relativismo cultural intransigente, indo mui to além do relativismo de Boas, digamos. Todos os mundos e visões de mundo eram iguais - desde que não tentassem dominar uns aos outros. Cada mundo era constituí do por um “jogo de linguagem” independente (um termo que Lyotard emprestou do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein), e nós somos condenados a viver em dife rentes mundos, sem nenhuma língua comum que possa nos unir. Visões de democra cia ou de direitos humanos universais eram, como certos marxistas também haviam afirmado, parte inerente de uma ideologia específica da cultura ocidental e não podi am ser de valor neutro. Esse cenário nos lembra a crítica de.Herder a Voltaire ( capítu- lo l); nesse contexto o papel de Voltaire é representado principalmente pelo sociólo go alemão Jürgen Habermas i 1929-), que desenvolveu uma teoria de ação comunica tiva herrschafftfrei (democrática, “livre de autoridade”) nos anos 1970.
O impacto direto de Lyotard sobre a antropologia foi limitado. De maior impor tância para a nova geração de antropólogos foi Michel Foucault (1926-1984) que, no
entanto, nunca se considerou um pós-modemista. Filósofo e teórico social crítico, as principais obras de Foucault tratam em parte das condições do conhecimento (Fouca ult 1966), em parte da história da mentalidade (Foucault 1972), e em parte, como vi mos, do poder e do corpo no mundo moderno (Foucault 1975). Através de estudos his tóricos do tratamento do desvio (insanidade, criminalidade e sexualidade) na Europa, Foucault mostrou como as estruturas consideradas como pressuposto natural para compreender e agir sobre o mundo mudaram historicamente. Ele adotou o termo dis curso para delinear essas estruturas. O termo “discurso” havia sido usado por lingüis- tas duiante anos, mas no emprego de Foucault ele significava especificamente uma troca pública de idéias, em que certas questões, agendas e definições - os assim cha mados “objetos discursivos” - se desenvolveram como resultado de lutas de poder en- tre os participantes do discurso e se impuseram sobre o corpo humano sensual. Em sua prosa implacável e intensamente bela, frequentemente baseada era analogias milita res em suas descrições do poder discursivo e da disciplina corporal, Foucault falou do discurso como o responsável pela implantação de um regime de conhecimento.
À primeira vista essa teoria pareceria não representar um desafio para a antropo logia da corrente hegemônica, relativista, mas antes confirmar sua importância, em contraposição à ciência social quantitativa. Entretanto, antropólogos leitores de Fou cault, especialmente Paul Rabinow (1989), destacaram que a. antropologia era ela própria um regime de conhecimento. O ataque de Foucault ao poder, portanto, não somente atingiu as culturas que os antropólogos estudavam, mas a própria antropolo gia. Conseqüentemente, os cursos de história da antropologia não podiam mais des- crevê-la como um acúmulo de conhecimento e de experiência de valor neutro, mas deviam vê-la como uma genealogia de objetos discursivos (“cultura” ou “atores”)