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Embora a escola materialista emergente na antropologia americana fosse explí­ cita em seu antiboasianismo, vários dos próprios colaboradores e alunos de Boas es­ tavam mais próximos das novas idéias do que poderia parecer. Em Berkeley, Kroe- ber era pelo menos cauteloso, e seu colega, Lowie, podia inclusive expressar simpa­ tia pelo projeto evolucionista, apesar de seu livro mais famoso. Primitive Society (1920), conter uma crítica mordaz ao Ancient Society, de Morgan. Como o próprio Boas, Lowie era acima de tudo um cientista cauteloso, de orientação empírica, com um profundo respeito pelos fatos. Ele era também um historiador cultural esclareci­ do que rejeitava as idéias do “caráter nacional”, defendidas por Benedict, por consi­ derá-las vagas e especulativas, e via o difusionismo como explicação mais convin­ cente da mudança cultural do que o evolucionismo, pois seus pressupostos eram mais simples e fáceis de testar em confronto com os fatos. Mas Lowie não rejeitou o evolucionismo totalmente. Embora se recusasse a generalizar sobre o tema, parece que ele aceitava a idéia de que culturas, em alguns casos, evoluem segundo os mes­ mos princípios gerais, uma visão oposta ao particularismo histórico de Boas. Lowie foi também o primeiro a usar o termo evolução multilinear, um conceito em geral atribuído ao seu aluno Julian Steward. Contrapondo-a à evolução unilinear típica da antropologia do século dezenove, Lowie sustentava que a evolução poderia seguir diferentes caminhos. Entre esses caminhos existiam certas semelhanças básicas, mas também variações consideráveis. Mais tarde, quando Steward iniciou seu projeto de evolucionismo modernizante, ele pôde assim buscar inspiração e apoio -p e lo menos tácito - em seu professor.

Como mostra Jerry Moore (1997: 166), perspectivas históricas e evolucionistas eram aceitas mais facilmente nos Estados Unidos do que na Inglaterra, onde a antro­ pologia social a essa altura passara a significar estudos sincrônicos, exclusivamente. A mudança social não era uma questão em pauta na Inglaterra nem na França, onde ela só seria introduzida na antropologia nos anos 1960 através do trabalho do africa­ nista Georges Balandier e seus alunos. Com exceção da obra de Daryll Forde sobre os yakõs e um único mas notável capítulo em The Nuer, a ecologia também estava

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praticamente ausente da antropologia inglesa - ela surgiria timidamente apenas na década de 1980.

Quando o neo-evolucionismo entrou em evidência nos Estados Unidos dos anos 1950, isso aconteceu em grande parte devido à obra de dois homens: Steward e Les- lie White. Diferentemente da m aioria dos seus contemporâneos, Leslie W hite (1900- 1975), professor durante 40 anos na Universidade de M ichigan (1930-1970), rejeitou a idéia cultural relativista de que as culturas não devem ser classificadas segundo uma escala de desenvolvimento, embora ele também rejeitasse enfaticamente as co­ notações m orais que os evolucionistas vitorianos haviam associado a essas classi­ ficações. W hite estava interessado em descobrir leis gerais de evolução cultural. Como Malinowski, ele defendia um a visão funcionalista da cultura, mas, na perspec­ tiva dele, a função da cultura não era assegurar a satisfação de necessidades indivi­ duais, mas garantir a sobrevivência do grupo. Assim, seu projeto apresentava certas semelhanças com o programa de Radcliffe-Brown, mas White não acreditava no principio durkheimiano de que as sociedades eram entidades autônomas com sua própria dinâm ica auto-suficiente. As sociedades eram estreitamente integradas com seu entorno ecológico. White fazia distinção entre aspectos tecnológicos, sociais e ideológicos da cultura (mais tarde ele acrescentaria “aspectos emocionais ou atitudi-. nais” - uma tendência na direção de Benedict). A dimensão tecnológica era crucial; de fato, ele sustentava que a dimensão tecnológica determinava os aspectos sociais e ideológicos da vida social (White 1949).

A originalidade da teoria de W hite era modesta, embora seu determinismo tecno­ lógico categórico fosse frequentemente expresso de modos originais, como quando, em The Science o f Culture (1949), ele definiu o nível de desenvolvimento cultural como a quantidade de energia utilizada por cada habitante, m edida através da produ­ ção e consumo. Essas ambições quantitativas não haviam feito parte do evolucionis- mo do século dezenove, mas em pouco tempo se tornariam importantes entre os no­ vos materialistas americanos.

As idéias de W hite encontraram resistência considerável. Mais de uma vez ele foi identificado como um possível comunista na paranóica era de M cCarthy da déca­ da de 1950. Entre antropólogos culturais consagrados, a ambição de White de trans­ formar a antropologia num a ciência exata da evolução cultural e dos efeitos sociocul- turais da tecnologia era vista corno descabida e irrelevante. No entanto, White desen­ volveu um excelente departamento em M ichigan, e entre seus alunos estão luminares como Marshall Sahlins (que m ais tarde estudou em Colúmbia), um a das grandes fi­ guras da antropologia americana nas últimas décadas do século vinte.

Lowie, o criptoevolucionista, fazia fortes restrições ao determinismo tecnológi­ co de White, mas incentivou Steward a perseguir uma versão do evolucionismo m a­ terialista que, embora menos determinista, tinha muitos elementos em comum com o de White. O próprio Steward, depois de concluir o seu doutorado em Bcrkcicy - um estudo-padrão do "‘nativo americano” no estilo cultura e personalidade - trabalhou como arqueólogo durante anos antes de se mudar para Washington, DC., onde diri­ giu o Instituto de Antropologia Social na prestigiosa Smithsonian Institution e editou o Handbook o f South American Indians, em sete volumes. Steward aprimorou sua perspectiva teórica durante os anos 1930 e 1940, e quando foi para a Universidade de Colúmbia em 1946 ele levava consigo um a teoria madura que provocou seus colegas e inspirou seus alunos. Durante sua permanência de seis anos em Colúmbia (que co­ incidiu quase exatamente com os anos de Karl Polanyi na mesma universidade, ver p. 103-105), Steward supervisionou um grupo realmente impressionante de pós-gra- duandos que em pouco tempo imprimiriam na antropologia americana a m arca in­ delével do novo materialismo que promoviam. Elman R. Service, Stanley Diamond, Morton H. Fried, Eric R. Wolf, Sidney W. Mintz, Eleanor B. Leacock, Marvin Harris, Robert F. M urphy, Marshall Sahlins, Andrew P. Vayda, Roy A. Rappaport e outros; todos estudaram sob a orientação de Steward (ou de seu sucessor, Morton Fried) e vários deles participaram dos seus projetos.

Steward estava insatisfeito com a falta de ambição teórica entre os seguidores de Boas, e, como White, viu um a chave para a generalização no estudo da tecnolo­ gia e das condições ecológicas. Como Lowie, porém, ele não se entusiasmou com as teorias da evolução cultural unilinear. Além disso, onde W hite distinguia três subsistemas culturais, Steward opunha o “núcleo” cultural ao “resto da cultura”. O núcleo consistia na tecnologia e na divisão do trabalho - o que corresponde exata­ mente à definição de inlfa-estrutura de M arx, uma influência que Steward, como W hite, não tom ou pública. Os alunos dele e de W hite é que por fim tornariam ex­ plícito o vínculo com o marxismo.

A influência de Steward pode ter sido ainda mais forte na arqueologia do que na antropologia, mas pelo menos três de suas contribuições tiveram um impacto duradou­ ro, especialmente sobre a antropologia americana. Primeúo, Steward fundou a ecolo­ gia cultural moderna. Embora também White incluísse fatores ambientais em suas ex­ planações, Steward considerava a totalidade de uma sociedade e seu entorno biológico mais ou menos do mesmo modo como um ecologista considera um ecossistema. Ele via a sociedade em grande parte com os olhos de um ecologista. Adaptação era um conceito essencial para Steward, que procurava instituições que promovessem concre­ tamente a sobrevivência de uma cultura num dado ecossistema. Algumas dessas insti­

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tuições eram fortemente determinadas pela ecologia, pela tecnologia e pela densidade populacional; outras quase não eram afetadas pelas condições materiais.

Segundo, baseado em evidências arqueológicas, históricas e etnográficas, Ste- ward desenvolveu uma teoria da evolução multilinear. Ele sustentava que, sob con­ dições específicas, como agricultura de irrigação em regiões áridas, o núcleo cultural se desenvolveria aproximadamente nos mesmos moldes em diferentes sociedades. Limitando suas generalizações a alguns aspectos importantes das culturas que estu­ dava e restringindo o escopo de sua teoria a sociedades com precondições naturais análogas, ele conseguiu estruturar um evolucionismo que não levava a generaliza­ ções especulativas que poderiam ser facilmente falsificadas. Nem Steward nem Whi- te consideravam todos os aspectos da superestrutura ou reino simbólico como mate­ rialmente determinados, diferentemente de alguns de seus predecessores e também sucessores, fossem eles marxistas ou não marxistas.

Terceiro, com Redfield (cuja orientação era definitivamente não materialista) Steward foi um importante pioneiro nos estudos do campesinato. Os camponeses (definidos como agricultores de subsistência em sociedades complexas parcialmente integrados numa economia não local) constituem a maior categoria populacional no mundo. A total falta de interesse por essa categoria por parte da antropologia do pe­ ríodo anterior à guerra confirma que a disciplina ainda estava à procura do exótico, muitas vezes às custas do típico. As pesquisas de Steward sobre o campesinato che­ garam a um ponto alto durante o projeto Porto Rico, de grande amplitude, que ele or­ ganizou no final da década de 1940. O projeto foi um dos primeiros estudos de área na antropologia e foi inédito na época por integrar análise local e regional. Aqui, pra­ ticamente pela primeira vez na antropologia moderna, o Estado-nação e o mercado mundial figuram ativamente na análise. Os alunos de Steward continuariam e aperfei­ çoariam o interesse do mestre pelas sociedades camponesas nas décadas seguintes e dariam contribuições decisivas para direcionar a atenção da antropologia predomi­ nante para o Caribe e para a América Latina nos anos 1960 e 1970.

O resultado mais importante dos esforços teóricos de White e Steward não foi seu evolucionismo, mas seu interesse na relação entre sociedade e ecossistema. A es­ cola emergente de ecologia cultural tem sido ffeqüentemente descrita como apenas outra forma de funcionalismo, onde o ecossistema substitui o todo social como impe­ rativo funcional principal. Mas essa crítica se justifica apenas parcialmente. Os eco­ logistas culturais estavam interessados na mudança cultural e, com o passar do tem­ po, desenvolveram um modelo mais sofisticado de sociedade do que seus predeces­ sores ingleses. Nisso eles foram favorecidos pelos grandes avanços da ecologia (bio­ lógica) durante a década de 1950, especialmente como resultado da aplicação de mo-

delos cibernéticos a problemas de adaptação. Nos anos 1960 a ecologia cultural se m ostraria uma fonte diferente de inspiração entre os antropólogos. Gregory Bateson se baseou em modelos e idéias de ecologia cultural em suas contribuições à teoria ge­ ral dos sistemas. Clifford Geertz - depois conhecido por sua obra interpretativa sobre o sim bolism o-publicou Agricultura!Involution em 1963, um livro sobre aposse de terra em Java fortemente influenciado por Steward. M arshall Sahlins, que mais tarde também se voltaria para a antropologia simbólica, começou sua carreira com vários livros que elaboravam os interesses de Steward (e de White) e, num famoso artigo sobre liderança política no Pacífico, ele viu o contraste entre os líderes melanésios e os chefes polinésios sob uma luz evolucionista, baseando-se num a análise de econo­ mia doméstica para explicar variações políticas. O mais coerente (e persistente) dos sucessores de Steward e de White foi Marvin Harris que, durante a década de 1960, desenvolveu sua própria versão de evolucionismo materialista, ao qual ele se referia como materialismo cultural (Harris 1979).

O ponto alto da ecologia cultural foi, talvez, a monografia de Roy Rappaport, Pigsfor the Ancestors (1967), que logo se tomou um clássico. Rappaport, aluno de Fried em Colúmbia e amigo e parceiro de Bateson, realizou trabalho de campo entre os tsembaga maríngs nas temas altas da Nova Guiné no início da década de 1960. Ele estava especialmente interessado em compreender um complexo ciclo ritual que en­ volvia tanto situações de guerra como o massacre em massa de porcos domesticados. Aplicando ao ritual uma análise ecológica de inspiração cibernética, ele demonstra as estreitas relações existentes entre a adaptação dos tsembagas ao seu entorno (natu­ reza, mas também grupos humanos vizinhos) e sua visão de mundo. Começando com a prem issa de inspiração whiteana de que a disponibilidade de fontes de energia de­ termina a adaptação cultural, ele termina com uma análise arguta (e não-determinis­ ta) da linguagem estética por meio da qual os tsembagas conceituaiizam o mundo em que vivem. Os críticos viram essa análise como uma espécie de estrutural-funciona­ lismo ecológico que deixava pouco espaço para as próprias motivações da pessoa e para a dinâmica cultural independente, uma crítica a que Rappaport replicou num longo posfácio à edição do livro de 1984.

Outro ponto alto da ecologia cultural, que foi também uma manifestação de sua grande amplitude e escopo, foi o simpósio “Man the Hunter”, organizado na Univer­ sidade de Chicago cm 1966 (Lee e DeVore 1968). Concentrando-se principalmente em caçadores e coletores modernos, a maioria dos conferencistas, em grande parte antropólogos culturais americanos, via a cultura principalmente em termos de adap­ tação ecológica, Eles sustentavam que, por ter sido a caça a forma de subsistência original da humanidade, toda teoria geral da sociedade e da natureza do Homem de­

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veria pressupor um conhecimento profundo do modo de vida do caçador. Além de pôr em relevo a conhecida tensão entre explicações culturalistas e materialistas da cul­ tura e da sociedade, o simpósio mostrou até que ponto partes da antropologia cultural americana haviam se distanciado de Boas e Benedict até esse momento.

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