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O principal proponente da antropologia marxista, ou de influência marxista, americana (ele próprio não descreveu sua obra como marxista) foi certamente Eric W olf (1923-1999). O “ponto alto” da antropologia marxista americana mencionado acima foi a publicação de sua principal obra, Europe and the People Without Histoty, em 1982, uma pesquisa magistral sobre os complexos efeitos econômicos, culturais e políticos do colonialismo sobre os povos estudados por antropólogos. Nessa obra, como em grande parte do seu trabalho, W olf se concentra nas características da vida e da história de nâo-europeus negligenciados por gerações de antropólogos. Wolf, de origem austríaca, foi outro dos alunos de Steward e de Benedict em Colúmbia, e mais tarde ele se referiu a esses seus professores dizendo que eles, “cada um a seu modo, intensificaram o meu próprio interesse pelo modo como subgrupos e regiões se uni­ ram para formar nações” (W olf 1994: 228). Integrante do projeto de Steward desen­ volvido em Porto Rico nos fins da década de 1940, mais tarde W olf trabalhou no Mé­ xico com questões relacionadas com o campesinato e publicou uma obra de síntese

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importante, Peasanls, em 1964. Contrário à abordagem da sociedade única adotada pelas escolas de antropologia hegemônicas, durante toda sua vida W olf se dedicou à análise do modo como o destino de comunidades locais se entremeia com processos de grande escala. De maneira geral, o motor desses processos é o lucro econômico, e o resultado é acumulação de capital no centro e exploração na periferia. Mais do que qualquer outro grupo, as vitimas dessa exploração eram os camponeses. Despojados de terras e produzindo para o mercado internacional a uma remuneração freqüente- mente grotesca, eles também tendiam a viver em países pobres, cuja autonomia na­ cional era instável devido à sua integração desigual na economia mundial.

W olf não estava sozinho nesse esforço de pesquisar a fundo a teoria do sistema mundial, o imperialismo e o subdesenvolvimento durante a década de 1970; longe disso. Com Marx, a antropologia havia descoberto Lenm, cuja teoria sobre o imperi­ alismo foi um adendo lógico à própria teoria de Marx e uma alternativa a concepções predominantes (fora da antropologia) sobre os efeitos civilizadores do colonialismo. Num período em que a sociologia rural era um campo de pesquisa em rápida expan­

são, inclusive na América Latina, a economia política marxista parecia ser um instru­ mento “natural” de todo ferramental de campo do pesquisador voltado para o Tercei­ ro Mundo, especialmente quando cientistas sociais haviam começado a se envolver com questões de desenvolvimento em proporções muito maiores do que até então (ver Grillo e Rew 1985). A tentativa mais ambiciosa de uma síntese nessa direção du­ rante a década de 1970 foi o neotrotskista Immanuel Wallerstein em The Modem

World System (1974-1979), um estudo volumoso do desenvolvimento de um mundo tripartite de centros, semiperiferias eperiferias, com recursos geralmente fluindo das periferias para os centros. Numa escala menos grandiosa, os anos 1970 foram tam­ bém a década da teoria estrutural do imperialismo de Johan Galtung (1971), que mostrou como a desigualdade mundial era mantida através de alianças entre as elites dos centros e as elites das periferias.

Os anos 1970 testemunharam ainda o surgimento da teoria da dependência, pri­ ma próxima da teoria do sistema mundial. Enquanto teóricos do desenvolvimento haviam anteriormente sustentado que todas as sociedades acabariam por alcançar o Ocidente, uma posição cripto-evolucionista antropologicamente inaceitável (e, além disso, dificilmente cometa em termos empíricos), sociólogos e economistas como Andre Gunder Frank e Samir Amin, escrevendo sobre a América Latina e a África, respectivamente, procuravam demonstrar que o intercâmbio entre partes ricas e po­ bres do mundo - fossem ou não colônias de facto equivalia a acumulação de capital no norte e privação no sul. Entretanto, em geral, os teóricos da dependência não eram antropólogos, e a principal exceção, Peter Worsley, parecia simplesmente confirmar

a regra. Embora Worsley fosse aluno de Gluckman, ele trabalhava num departamen­ to de sociologia, e a maior parte de sua obra era de cunho sociológico. Não que os an­ tropólogos fossem cúmplices cínicos do imperialismo mundial, que seu relativismo cultural os tivesse levado ao niilismo moral ou que tivessem se esquecido do sofri­ mento do mundo. Pelo contrário, durante os anos 1970 (e antes) muitos antropólogos haviam feito todo o possível para ajudar “seus” povos a melhorar sua situação. Esses esforços, porém, estavam em grande parte voltados às populações indígenas, as de­ tentoras de “culturas autênticas”. Nos anos 1970 o estudo de milhões de pobres urba­ nos e de camponeses semimodemos havia se tomado solo fértil para pesquisas antro­ pológicas, mas o prestígio proporcionado pelo trabalho de campo nesses grupos não podia ser comparado ao do trabalho de campo entre culturas “autênticas”, como as representadas pelos forrageiros africanos, pelos horticultores da Amazônia ou pelos caçadores do Ártico.

O problema da relação da antropologia com as questões do neocolonialismo e da exploração do Terceiro Mundo era pelo menos quádruplo. Primeiro, como sugerido, as massas pobres dos trópicos em geral não eram consideradas dignas de atenção an­ tropológica sustentável. Elas eram “aculturadas demais”, e embora estudos etnográ­ ficos de povos modernos fossem feitos ao longo de todo o século vinte, foi somente na década de 1970 que esses estudos começaram a se tomar comuns. Mas até então a estrutura teórica para lidar com esses grupos não tivera tempo de se desenvolver. Se­ gundo, a abordagem do povo único, preferida tanto pelos boasianos como pelos in­ gleses por razões teóricas e também metodológicas, não se conciliava facilmente com um interesse pela economia política global, embora o projeto Porto Rico de Ste- ward pudesse ser visto como um caminho intermediário. Terceiro, a relação histórica da antropologia com o colonialismo havia sido de indiferença — os únicos antropólo­ gos de prestígio a incluir o horizonte do colonialismo em seus estudos antes dos anos

1960 pertenciam à Escola de Manchester. Um dos livros mais debatidos na antropo­ logia inglesa no início dos anos 1970 foi do antropólogo Talai Asad, natural da Ará­ bia Saudita, Anthropology and the Colonial Encounter (Asad 1973), onde a maioria dos colaboradores sustentava que o desenvolvimento da antropologia e do colonia­ lismo havia sido suspeitosamente semelhante em várias partes do mundo. Quarto, e não menos importante, a noção de “desenvolvimento" era - e é - um conceito difícil de digerir por parte dos antropólogos, pois eles haviam sido ensinados durante várias gerações a ser céticos com relação a idéias etnocêntricas de evolução social. Lévi- Strauss diz que, em comparação com um “terceiro-inundista”, ele se considera um “quarto-mundista”, significando com isso que defende os povos pequenos, vulnerá­ veis e únicos não apenas contra a investida da ocidentalização, mas também contra

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os esquemas de desenvolvimento de governos do Terceiro Mundo (Eribon e Lévi- Strauss 1988), Dizendo isso ele provavelmente fala em nome de uma grande parte, talvez uma maioria, da comunidade antropológica dos anos 1970.

Por difíceis que fossem, esses problemas podiam ser superados, como revelou a obra de Wolf. Anos antes Redfield havia sustentado que os camponeses “tinham sua própria cultura”, e embora a busca da “cultura autêntica” continuasse forte na antropo­ logia, não havia argumentos acadêmicos robustos para não estudar as culturas híbri­ das, mescladas, da América Latina e do Caribe, digamos. Uma combinação de traba­ lho de campo em profundidade com uma análise sistêmica e histórica mais ampla era também perfeitamente viável, embora ela não legitimasse inteiramente o uso de mate­ rial não-etnográfico. A relação com autoridades coloniais era irrelevante na década de

1970. O que permanecia, então, era o problema do “desenvolvimento”, que parecia quase tão difícil de resolver como os problemas encontrados pelos marxistas franceses com a determinação da infra-estrutura em sociedades tribais. Muitos dos antropólogos mais criativos que trabalhavam com as questões de economia política nos anos 1970 haviam enfrentado esse problema. Na maioria dos casos, fiéis aos princípios da antro­ pologia, eles sustentariam que o desenvolvimento precisava ser definido de dentro, isto é, como uma categoria “êmica” (nativa). Ao mesmo tempo, eles consideravam o fato da expansão capitalista global como uma força objetiva, homogeneizante e unificadora no mundo, e, nesse sentido, W olf e outros anteciparam uma tendência dos anos 1990 na antropologia, especificamente, o estudo da globalização.

Havia um foco regional diferente sobre o “quintal dos Estados Unidos” nas pes­ quisas antropológicas dos anos 1970 influenciadas pela economia política marxista e pela teoria do sistema mundial. Sidney Mintz (outro dos antigos alunos de Steward), da Universidade Johns Hopkins, era, com Wolf, o proponente mais importante dessa escola na década de 1970 e depois. Mintz é um caribeanista cujas obras mais elabora­ das incluem uma coleção de ensaios sobre mudança histórica no Caribe (Mintz 1974) e uma história cultural do açúcar, Sweetness and Power (Mintz 1985). À semelhança dos primeiros esforços de Steward, esse foco regional tendia a estimular a antropolo­ gia acadêmica e a sociologia rural nos países em estudo. Diferentemente da maioria dos lugares no Terceiro Mundo, países como Argentina, México e Brasil ofereciam facilidades acadêmicas promissoras, com uma disponibilidade regular de colabora­ dores “nativos” em potencial para antropólogos ocidentais, com quem eles podiam colaborar em pé de igualdade em termos intelectuais. Essas eram notícias auspicio­ sas para os muitos antropólogos ocidentais jovens e politicamente comprometidos que realizavam trabalho de campo entre camponeses latino-americanos dentro de uma estrutura teórica marxista (Melhuus 1993).

Embora o marxismo estrutural francês pareça hoje não ter saída, ele deixou uma marca indelével na profissão. Ele dirigiu vigorosamente a atenção para os complexos emaranhados locais e globais da desigualdade e do poder, da resistência e da sobrevi­ vência; ele se engalfinhou resolutamente com a mudança histórica e com a difícil re­ lação entre “desenvolvimento” e cultura. Mais importante de tudo, talvez, ele dirigiu a atenção de uma corrente predominante levemente durkheimiana ou boasiana para as condições materiais imperativas da vida. Isso ele tinha em comum com a obra tan­ to dos materialistas americanos como dos interacionistas ingleses. Podemos no en­ tanto ver na obra de Godelier e Meillassoux os inícios de uma teoria que trata dessas questões numa perspectiva mais ampla, tentando superar a distinção gerahnente feita entre o material e o ideacional.

Afirmamos acima que as fronteiras entre o marxismo estrutural e a economia po­ lítica eram praticamente intransponíveis. Mas isso nem sempre acontecia na prática, e há alguns raros exemplos de antropólogos que tiveram sucesso em ambos os lados. O antropólogo argentino Eduardo Archetti é um desses casos. Archetti graduou-se em sociologia na Argentina antes de estudar com Godelier em Paris nos fins da déca­ da de 1960, quando Mintz também ensinava em Paris. Como pesquisador, seu princi­ pal interesse voltava-se não para questões de determinação da infra-estrutura ou dos modos de produção africanos, mas para a lógica subjacente das sociedades campone­ sas e sua relação com o mundo externo. Inicialmente, ele fez uma avaliação muito bem fundamentada da obra de Chayanov. Sob a supervisão de Godelier, realizou tra­ balho de campo entre camponeses na Argentina e escreveu uma tese de doutorado sobre as teorias de subdesenvolvimento e dependência que deixavam uma impressão mais profunda do que o marxismo estrutural. Quando Archetti começou a lecionar na Universidade de Oslo, em meados dos anos 1970, o professor que o contratou lembra que “nós o contratamos porque precisávamos de alguém que ensinasse as últimas no­ vidades do marxismo estrutural francês” (A.M. Klausen, comunicação pessoal). De­ vemos sempre lembrar-nos de que as trajetórias intelectuais raramente são simples e que as fronteiras raramente são claras.

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