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Vários colaboradores e alunos mais próximos de Boas tiveram interesses dife­ rentes dos de Benedict e Mead. Um exemplo relevante disso foi Kroeber, filho de uma família judia alemã, de classe média alta de Nova York, e primeiro aluno de Boas. Depois de criar um dos grandes departamentos de antropologia americanos em 1901 e de fundar um dos museus etnográficos mais importantes do mundo, Kroeber continuou a trabalhar na Universidade da Califórnia em Berkeley até 1946. Como Boas, Kroeber era um faz-tudo antropológico, mas seu principal interesse era a histó­ ria cultural, e ele escreveu vários estudos históricos volumosos sobre civilizações eu­ ropéias e não-européias. Seu colega de longa data em Berkeley, Lowie, também se dedicava a essa área, mas acrescentou-lhe uma pitada de evolucionismo materialista, o que em pouco tempo inspiraria o aluno de maior evidência de ambos, Julian Ste- ward, a conclusões mais polêmicas.

No decorrer de sua longa carreira acadêmica Kroeber coletou uma enorme quan­ tidade de dados sobre os indígenas norte-americanos. Seu Handbook ofthe Indians o f Califórnia (1925) é um volume etnográfico de 1.000 páginas, e em sua obra poste­ rior, Cultural and Natural Areas ofNative North America (1939), ele ressalta a im­ portância da história para uma compreensão das culturas nativas. Essas preocupa­ ções estavam naturalmente ausentes da antropologia britânica na época. Ainda num estágio inicial, Kroeber havia manifestado sua insatisfação com o método comparati­ vo traço a traço que os evolucionistas haviam introduzido e que ainda estava em uso,

especialmente na antropologia alemã (embora o próprio Boas o aplicasse às vezes). A comparação traço a traço era uma abordagem superficial. As culturas eram todos orgânicos (num sentido quase durkheimiano) que não podiam ser decompostos em suas partes componentes sem perder seu significado. Kroeber se referia ao todo cul­ tural como o superorgânico, um sistema integrado que era mais do que biológico, e no entanto parecia ter sua própria dinâmica interna, quase viver sua própria vida. Com efeito, Kroeber é muitas vezes considerado um coletivista metodológico extre­ mo. Assim, em seu artigo “The Superorganic” (1917, reimpresso em Kroeber 1952), ele mostra que muitas vezes inovações são produzidas independentemente por pes­ soas distintas em lugares diferentes. Essa constatação, diz ele, evidencia que as cul­ turas têm dinâmica própria, autônoma, independente dos indivíduos.

Embora Boas tivesse trabalhado com idéias semelhantes ainda em 1896, tanto ele como vários outros colegas próximos achavam que Kroeber estava indo muito longe. A cultura não era um objeto independente dos seres humanos. Ela não pode ser reificada. Kroeber deve ter levado essa crítica a sério, pois sugeriu algumas con­ cessões pelo fim de sua longa carreira.

N a década de 1950 Kroeber colaborou em vários projetos (com Parsons e outros) e sua última contribuição para a antropologia americana foi um grande projeto de pes­ quisa interdisciplinar em que os antropólogos estudariam a “cultura” e os sociólogos estudariam a “sociedade”. Esse projeto incluía dois jovens entre seus participantes, David Schneider e Clifford Geertz, apresentados mais detalhadamente no capítulo 6.

-> Etnolingüística

Outro ramo do tronco boasiano foi a síntese entre lingüística e antropologia reali­ zada por Edward Sapir. Sapir era mais um imigrante judeu-alemão nos Estados Uni­ dos, embora chegasse ainda criança. Ele estudou várias línguas indígenas americanas, passou 15 anos trabalhando no Museu Nacional do Canadá em Ottawa e foi responsável pelas coleções etnográficas na Universidade de Chicago. Depois ele se mudou para a Uni­ versidade de Yale, onde fundou e dirigiu um novo departamento antropológico até sua morte prematura. Sapir é considerado o pai da etnolingüística moderna e sua principal obra, Language (1921), ainda é ponto de referência na lingüística antropológica.

Com seu aluno e depois colega, Benjamin Lee W horf (1897-1941), Sapir desen­ volveu a assim chamada hipótese Sapir-W liorf sobre a relação entre língua e cultura. Segundo Sapir e Whorf, as línguas diferem profundamente em sua sintaxe, gramáti­ ca e vocabulário, e essas diferenças implicam distinções profundas no modo como os usuários dessas línguas percebem o mundo e nele vivem. Assim, um falante hopi per­

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ceberá um mundo diferente daquele percebido por um europeu de língua inglesa. A língua hopi é pobre em substantivos e rica em verbos, favorecendo uma visão de mundo rica em movimento e processo, mas pobre em coisas. As línguas européias, em contraposição, têm mais substantivos e menos verbos, fato que as orienta para uma visão de mundo voltada para objetos. A hipótese Sapir-W horf recebeu muitas críticas ao longo dos anos, algumas reminiscentes das críticas à “mentalidade primi­ tiva” de Lévy-Bruhl. Ainda assim, como notou Bateson, o maior problema pode ser que a hipótese não pode - em um nível ou outro - não ser verdadeira. Obviamente, a língua influencia o pensamento; a única questão é até que ponto e de que modo essa influência se expressa.

Durante muitos anos o estudo da língua e da cultura continuou sendo uma especi­ alização puramente americana, mas desde a guerra, e especialmente desde a década de 1980, o campo se expandiu de modo extraordinário. A hipótese Sapir-Whorf pas­ sou a fazer parte da antropologia inglesa no início dos anos 1960, durante o assim chamado Rationality Debate (Debate da Racionalidade), quando filósofos e antropó­ logos discutiram os problemas da tradução intercultural (capítulo 6).

Sapir concebia a cultura de modo diferente de Kroeber e também de Benedict e Mead. Kroeber via a cultura como um superorganismo, quase possuindo vida pró­ pria. Mead e Benedict a viam como um padrão coletivo de valores e práticas reprodu­ zido por socialização. Sapir não negava que a cultura deixa sua marca nos valores e nas visões de mundo, mas a considerava como menos monolítica e integrada do que seus contemporâneos. A grande maioria das idéias é contestada, observou ele, e por isso podemos ver a cultura como fonte de divergências, mais do que de consenso. O que chamamos de cultura são regras subjacentes, tidas como naturais, que tomam a divergência possível. Anos mais tarde idéias semelhantes exerceram um papel im­ portante nos grandes debates sobre teoria da cultura que começaram nos anos 1970 e chegaram ao auge (temporário) no início dos anos 1990. A circunstância de Sapir ser muito pouco citado nesses debates só pode ser entendida como um caso grave de am­ nésia coletiva.

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