• Nenhum resultado encontrado

Em 1886 Franz Boas, então com 28 anos de idade, viu-se em Nova York. Ele es­ tava a caminho da Alemanha, destinado a uma carreira acadêmica de sucesso. Ele já era doutorado por Kiel, exercia uma função acadêmica em Berlim e havia participa­ do de várias expedições etnográficas no norte e no oeste do Canadá. Boas, porém, optou por permanecer em N ova York, possivelmente porque essa era um a cidade onde ser judeu não constituía uma desvantagem maior; certamente, em parte, porque ele estaria mais perto de povos que o fascinavam, os índios norte-americanos e os inuítes. Em Nova York, Boas trabalhou inicialmente como editor de uma revista ci­ entífica, depois como professor numa pequena universidade. Em 1899 ele se tornou professor de Antropologia na prestigiosa Universidade de Colúmbia, em Nova York, onde permaneceu até sua morte em 1942. Durante os 43 anos intermediários, Boas seria professor e mentor de duas gerações de antropólogos americanos. A mensagem que passava a seus alunos era simples. Ele havia estudado com professores alemães que eram céticos com relação ao evolucionismo e viam o difusionismp com sim pa­ tia. Como muitos outros de sua geração, ele estava convencido de quç o desenvolvi­ mento da teoria geral dependia totalmente de uma base empírica sólida. Assim, a principal tarefa do antropólogo consistia em coletar e sistematizar dados detalhados sobre culturas particulares. Só então seria possível dedicar-se a generalizações teóri­ cas. Nesses e em outros aspectos Boas era um legítimo filho do humanismo românti­ co alemão segundo a interpretação de Bastian.

Na Inglaterra, a antropologia seria remodelada em antropologia social nos anos entre as duas grandes guerras - uma disciplina comparativa, de base sociológica, com conceitos nucleares como estrutura social, normas, estatutos e interação social. Nos Estados Unidos, a disciplina se tom ou conhecida como antropologia cultural.

3 . QUATRO PAIS FUNDADORES 5 3

Aqui, a definição ampla de cultura enunciada por Tyíor, substituída na Inglaterra por um conceito de sociedade, foi mantida. No sentido americano (e tyloriano), cultura é um conceito muito mais amplo do que sociedade. Se a sociedade é constituída de normas sociais, instituições e relações, a cultura consiste em tudo o que os seres hu­ manos criaram, inclusive a sociedade - fenômenos materiais (um campo, um arado, uma pintura...), condições sociais (casamento, famílias, o Estado...) c significado sim­ bólico (língua, ritual, crença...). A antropologia - a ciência da humanidade - dizia res­ peito, bem literalmente, a tudo o que fosse humano. Boas admitia que ninguém teria condições de contribuir de modo igual com todas as ramificações dessa matéria (em­ bora ele próprio fizesse tentativas heróicas para chegar a esse ponto) e por isso defen­ dia uma “abordagem de quatro campos” que dividia a antropologia em lingüística, an­ tropologia física, arqueologia e antropologia cultural. Os alunos estudavam conteúdos dos quatro campos e mais tarde se especializavam naquele que mais os atraía. A espe­ cialização, portanto, fazia parte da antropologia americana desde o início, ao passo que tanto na Inglaterra como na França prevaleceu uma abordagem generalista. Re­ flexo disso é que, já na década de 1930, existiam grupos de pesquisa constituídos que se especializavam, por exemplo, em línguas norte-americanas nativas.

Os próprios escritos de Boas abrangiam um campo vasto, embora com uma ten­ dência evidente para a antropologia cultural.

Ele havia realizado pesquisas de campo individuais entre os muites e os kwaki- utls da costa noroeste americana, mas também trabalhava com assistentes que coleta­ vam materiais sobre muitos outros povos indígenas. Durante os trabalhos de campo ele frequentemente recorria à colaboração de membros Iingüisticamente proficientes da tribo em estudo, os quais registravam, discutiam e interpretavam as palavras dos informantes. Alguns desses colaboradores, especialmente o prodigioso George Hunt, co-autor de vários livros dc Boas sobre os kwakiutls, só recentemente foram reco­ nhecidos como autoridades de pleno direito em antropologia.

O trabalho de campo realizado por Boas era em geral uma atividade de grupo, não pressupondo um indivíduo sozinho sujeito a um a “imersão” contínua e prolon­ gada no campo. A permanência no local era quase sempre curta. Normalmente ela era prolongada em outro sentido, porém, ou seja, no sentido de que as idas ao campo eram repetidas muitas vezes ao longo dos anos, ocasionalmente envolvendo pessoas diferentes, todas atuando no mesmo projeto (ver Foster et a i 1979). Essa estratégia metodológica talvez fosse perfeitamente natural, visto que, nos Estados Unidos, “o campo” estava próximo, e não no outro lado do globo, como na Inglaterra.

Boas era menos avesso às reconstruções históricas do que seus contemporâneos britânicos mais jovens (ver p. 54-62). Com efeito, manteve a antropologia física e a

arqueologia como partes do empreendimento antropológico holístico. Não obstante, ele concordava com a crítica britânica ao evolucionismo. Em substituição ao evolucio- nismo, propôs o princípio do particularismo histórico. Como sustentava que cada cul­ tura continha em si seus próprios valores e sua própria história única, em alguns casos poderia ser reconstruída pelos antropólogos. Ele via valor intrínseco na pluralidade das práticas culturais no mundo e era profundamente cético com relação a qualquer tentati­ va, política ou acadêmica, de interferir nessa diversidade. Ao escrever sobre a dança kwakiutl, por exemplo, ele diz que a dança é um exemplo da relação da cultura com o ritmo, e por isso ela não pode ser reduzida a uma mera “função” da sociedade (como pareciam preferir os antropólogos sociais ingleses). Em vez disso, é preciso perguntar o que esse ritmo é pai a a pessoa que dança, e a resposta só pode ser encontrada exami­ nando os estados emocionais que geram e são gerados pelo ritmo (Boas 1927).

Boas foi um dos primeiros e mais incansáveis críticos do racismo e da ciência ins­ pirada por ele - esta contava com defensores entre o establishment da antropologia vi­ toriana. Esses antropólogos haviam afirmado que cada “raça” tinha um potencial inato distintivo para desenvolvimento cultural. Boas respondeu que a cultura era sui generis - sua própria fonte - e que diferenças inatas não podiam explicar o volume impressio­ nante de variação cultural que os antropólogos já haviam documentado. O termo rela- tivismo cultural, a que nos referimos várias vezes acima, foi efetivamente cunhado por Boas. Mesmo atualmente, a pergunta que muitos fazem é se o relativismo deve ser compreendido como um imperativo metodológico ou moral, e a resposta mais fre­ quente é que o relativismo cultural é um método. Para Boas isso sem dúvida soaria es­ tranho, pois método e moralidade eram para ele dois lados da mesma moeda.

Boas dominou a antropologia americana durante quatro décadas, mas não deixou nenhuma grande teoria ou obra monumental que seja lida pelas gerações seguintes de antropólogos. A principal razão disso talvez seja sua desconfiança das generaliza­ ções grandiosas. Durante seus estudos com Bastian ele fora advertido contra os peri­ gos da teorização vazia, e em seus escritos ele procurou identificar as circunstâncias únicas que haviam gerado culturas particulares, em vez de ir diretamente a conclu­ sões gerais. Ele também era cauteloso com o uso da comparação, que com muita faci­ lidade estabelecia semelhanças artificiais entre sociedades que eram fundamental­ mente diferentes. Boas era assim um individualista metodológico autêntico, no senti­ do de que procurava a instância particular e não o esquema geral, o que explica seu ceticismo irredutível com relação a Durkheim.

Quase todos os antropólogos americanos importantes da geração seguinte (com algumas exceções notáveis, às quais voltaremos) foram alunos de Boas. Entre eles estavam Aifred L. Kroeber (1876-1960), que criou o Departamento de Antropologia

3. Quatropaisfundadores 55

em Berkeley, com a colaboração de Robert H. Lowie (1883-1957), historiador cultu­ ral e seu colega de longa data; Edward Sapir (1884-1939), fundador do Departamen­ to de Antropologia em Yale e da escola de “etnolingüística”; Melville Herskovits (1895-1963), fundador dos estudos afro-americanos nos Estados Unidos e profes­ sor no Departamento de Antropologia na Northwestern University; Ruth Benedict (1887-1948), sucessora de Boas na Universidade de Colúmbia e organizadora da es­ cola “cultura e personalidade”; e Margaret Mead (1901-1978) (the runt of the litter) que continuou a obra de Benedict e possivelmente se tomou a figura pública mais in­ fluente na história da antropologia.

Como mostra essa lista, a antropologia cultural proposta por Boas evoluiu em di­ versas direções durante sua própria vida (capítulo 4). Outra variação ocorreu na dé­ cada de 1950, quando Morgan foi redescoberto e quando os alunos de Radclif- fe-Brown em Chicago desenvolveram sua própria versão da antropologia-social de estilo britânico. Não obstante, o legado de Boas continua no âmago da antropologia americana até hoje.

Documentos relacionados