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Abordamos primeiro a situação na Inglaterra. O interesse pelo significado não estava totalmente ausente da corrente predominante da antropologia social britânica. Um exemplo que comprova esse fato foi o artigo seminal de Jack Goody e do teórico literário Ian Watt, “The Consequences o f Literacy” (Goody e Watt 1963) [As conse-

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qüências da literariedade], onde eles sustentavam que a escrita muda de modo irre­ versível tanto a estrutura social como a estrutura de raciocínio (ou estilo cognitivo) da sociedade. O artigo, que desencadeou um debate com ramificações complexas, - em parte porque cruzava com a concepção elaborada de “ação como texto” proposta pelo filósofo francês Paul Ricoeur (ver Ricoeur 1971) - entra definitivamente na questão do significado, mas trata das funções sociais do significado, não do significa­ do em si. Os interesses de Evans-Pritchard eram mais radicais do que isso.

Evans-Pritchard podia dar-se ao luxo de ser radical. Quando ele sucedeu Radclif- fe-Brown como professor em Oxford em 1946, ele já havia escrito duas monografias muito influentes e co-editado um livro-A frica n Political Systems - que definiam a agenda predominante de pesquisas da Inglaterra para duas décadas. O volume com­ panheiro, African Systems ofKinship and Marriage, editado por Radcliffe-Brown e Forde, teve muito menos impacto. Apesar de Firth na LSE e Fortes em Cambridge, Evans-Pritchard foi sem dúvida nenhuma o antropólogo social mais influente da época. Quando, em sua Marett lecture sobre “Antropologia Social: Passado e Pre­ sente” em 1950, ele repudiou o estrutural-funcionalismo e se afastou do seu profes­ sor, o fato chegou a ser manchete e tomou-se conhecido de toda a comunidade antro­ pológica. Na palestra, Evans-Pritchard afirmou, por um lado. que seria um con­ tra-senso acreditar que estudos sincrônicos podiam produzir percepções da mesma profundidade que estudos históricos; por outro, que em termos de método a antropo­ logia social tinha mais em comum com a história do que com as ciências naturais. Com isso, ele estava rejeitando dois dos principais sustentáculos do estrutural-funcio­ nalismo. Em sua obra posterior Evans-Pritchard abandona a busca das “leis naturais da sociedade” e, com mais realismo, procura compreender o significado de institui­ ções sociais particulares. Seu segundo livro sobre os nueres, Kinship and Marriage atnong the Nuer (1951 b), foi muito mais descritivo e menos ambicioso teoricamente do que The Nuer. Por outro lado, ele contém menos idéias contestáveis. Em boa me­ dida, foram os modelos elegantes, mas simples, de The Nuer que levaram à “revolu­ ção” descrita no capítulo anterior.

Em 1958 o filósofo Peter Winch publicou The Idea o f a Social Sciente andltsRe- lation to Philosophy, um livro que subseqüentemente exerceria considerável influên­ cia sobre o discurso antropológico relacionado eom a tradução íntercultural.

No livro Winch dizia que é impossível estabelecer conhecimento objetivo, “tes- tável” sobre fenômenos culturais, uma vez que o significado desses fenômenos é de­ finido pelo universo cultural de que eles fazem parte. Ele adotou uma posição forte­ mente relativísta, sustentando que não existe posição privilegiada, “independente do contexto” a partir da qual comparar e avaliar outras culturas, exceção feita às nossas

experiências comuns de processos corporais universais, como “nascimento, cópula e morte” (o próprio Winch cita Eliot nesse ponto). Na visão de Winch, a antropologia social era uma esquisitice cultural ocidental em pé de igualdade com a instituição da feitiçaria entre os azandes, e não tinha o direito de ver seu acesso ao conhecimento como privilegiado, Winch usou a monografia sobre os azandes como o principal exemplo de uma posição filosoficamente insustentável, visto que Evans-Pritchard apresentava uma explicação “científica” da crença “obviamente errônea” em bruxas. E o que dizer se as posições fossem invertidas? Como podemos julgar se uma expli­ cação “feiticeira” da crença “obviamente errônea” na ciência seria menos verdadei­ ra? O livro de Winch foi o ponto de partida de um longo e importante debate sobre ra­ cionalidade e tradução cultural, ao qual tanto filósofos como antropólogos deram sua contribuição (B. Wilson 1970; Hòllis e Lukes 1982; Overing 1985).

E interessante observar que Evans-Pritchard parece ter chegado a uma posição semelhante independentemente de Winch. O terceiro volume da trilogia sobre os nu- eres, Nuer Religion (1956), é mais interpretativo do que explicativo; no início, o au­ tor declara que sua principal ambição é compreender a visão de mundo nuer, e não explicá-la sociologicamente. Nisso, ele está afinado com seu colega de Oxford e co­ laborador próximo num período mais recente, Godfrey Lienhardt, cuja obra poste­ rior sobre os vizinhos dos nueres, os dinkas, era igualmente interpretativa (ver Lie- nhardt 1961). Compreensão e tradução haviam se tomado agora uma tarefa mais ur­ gente do que explicação e procura de “leis” gerais. Por outro lado, também é verdade, como diz a aluna de Evans-Pritchard, Mary Douglas (1980), que toda sua produção se caracterizava pela continuidade - do livro sobre os azandes em diante. Mesmo The Nuer, que muitas vezes é descrito como o arquétipo da ortodoxia, é de fato um livro evocativo, poético até.

Enquanto o foco renovado sobre mudança na antropologia britânica é freqüente- ménte descrito como uma transição da estmtura para o processo, a mudança de posi­ ção de Evans-Pritchard foi um movimento da função para o significado. Especial­ mente dois de seus descendentes intelectuais cumpririam, nas décadas seguintes à Marett lecture, a promessa de combinar uma microssociologia voltada à integração com um método interpretativo voltado ao significado simbólico.

O primeiro foi o aluno de Gluckman, V ictorTum er (1920-1983). Durante as dé­ cadas de 1950 e 1960 ele desenvolveu uma perspectiva sobre os símbolos e a coesão social que se tomou crescentemente influente desde então. Diferentemente de Leacfi, Tumer interessava-se principalmente pelo ritual, não pelo mito; e enquanto Leach via o germe da desagregação social nos mitos, Tum er em última análise via os rituais como fatores de coesão (embora não imutáveis). Como Durkheim havia sugerido,

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eles constituíam um material excelente para o etnógrafo, pois expressavam os valo­ res centrais e as tensões de uma sociedade numa fonna intensamente concentrada. O modo de Tum er abordar os rituais, um modo orientado cada vez mais para os símbo­ los e não para a integração social, procurava no entanto combinar um-mteresse pelo significado simbólico com uma noção de coesão durkheimiana subjacente. Numa das monografias britânicas mais influentes dos anos 1950, Schism and Continuity in an African Society (Tumer 1957), ele introduziu o conceito do drama social. Como a maioria dos seus escritos sobre o ritual, seu foco etnográfico está sobre os ndembus da Rodésia do Norte (Zâmbia), e o principal problema é uma questão clássica, espe­ cificamente, como sociedades matrilineares (como a dos ndembus) resolvem o pro­ blema da integração. Enquanto sucessão, herança e participação no grupo estão sob um único princípio entre povos patrilineares, diferentes direitos e deveres se baseiam em diferentes critérios entre grupos matrilineares. No drama social, que tende a ser um nto de passagem, normas subjacentes são dadas como expressão simbólica, e o ritual contribui assim para a integração da sociedade.

Embora a m onografia fosse estrutural-funcionalista em seus pressupostos bási­ cos, ela sugeria que a mudança estava em andamento. Tumer desenvolveu sua influ­ ente teoria da comunicação ritual numa série de artigos escritos nos fins da década de

1950 e inícios dos anos 1960, e publicados em 1967 com o título The Ritual Process. Em “Betwixt and Between: The Liminal Period in Rites-de-Passage”, ele introduziu o conceito de liminaridade, mais tarde um conceito básico em estudos antropológi­ cos do ritual (e, às vezes parece, em quase tudo o mais). Aproveitando a indicação de uma obra anterior sobre ritos de passagem, de van Gennep, Turner considera o ritual, e de modo particular o ritual de iniciação, como um processo de transformação pelo qual o iniciando passa de um estado definido a outro, com um período intermediário de incerteza e crise.

É esse estado de crise - o estágio liminar - que constitui o foco do ritual, que pro­ cura controlar e impor os valores da sociedade sobre o indivíduo vacilante que, por um período breve mas crítico, não está aqui nem ali. Nesse “interstício” entre status sociais não se aplicam regras antigas nem novas, e o indivíduo é compelido a refletir sobre sua situação, sobre seu lugar na sociedade e na verdade sobre a existência da sociedade em si. Assim, liminaridade é tanto um “estado de ser” crítico como criati­ vo, c a mudança parece um potencial de qualquer ritual. E todavia, no fim, o iniciado é quase sempre reintegrado na sociedade.

Em outras palavras, a obra de Tum er dá continuidade tanto aD urkheim quanto a Gluckman, mas ela se distingue pelo destaque dado ao indivíduo, pela preocupação com o significado dos símbolos e pelo foco sobre fases críticas no processo social.

Tum er também enfatizou a multivocalidade ou múltiplos significados dos símbolos, implicando que os símbolos em si mesmos poderiam ser um a fonte de mudança re­ pleta de tensão e que símbolos idênticos poderiam significar coisas diferentes para diferentes pessoas, criando assim um senso de comunidade entre pessoas que de ou­ tra forma seriam diferentes. No prazo de outras duas décadas, essa última idéia seria adotada por estudantes do nacionalismo.

Outro africanista de descendência estrutural-funcionalista que daria à antropolo­ gia social um impulso decisivo para o estudo dos símbolos em seu contexto social foi Mary Douglas (1921-). Aluna de Evans-Pritchard, Douglas estudou os leles do Ka- sai, Congo Belga, no final da década de 1950. Esse estudo a aproximou da antropolo­ gia francesa e belga, e ela acabou sendo mais influenciada por Durkheim do que por Radcliffe-Brown. Sua obra inicial mais influente não foi à monografia que resultou do trabalho de campo, mas um estudo teórico e comparativo das fronteiras simbóli­ cas e da classificação, Purity andDanger (1966), O livro combina um estrutural-fun­ cionalismo quase ortodoxo com uma análise simbólica altamente sofisticada apoiada tanto em impulsos estruturalistas como psicanalíticos. De enorme sucesso tanto den­ tro como fora da antropologia, Purity andDanger é, de certo modo, uma contraparti­ da inglesa a Patterns o f Cuhure. Em ambos os casos o foco são a identidade e os va­ lores grupais; Benedict, porém, não vai além dos aspectos simbólicos da cultura, ao passo que Dpuglas-relaciona coerentemente símbolos com instituições sociais, ao modo durkheimiano clássico. Na visão de Douglas, símbolos são meios de classifi­ cação social que distinguem entre várias categorias de objetos, pessoas ou ações e as mantêm separadas. A ordem do sistema classificatório reflete e simboliza a ordem social, e os fenômenos “intermediários”, “inclassificáveis” representam portanto um a ameaça à estabilidade social. Seipentes (animais sem pernas) e substâncias que entram e saem do corpo são consideradas problemáticas. Alimentos são muitas vezes organizados em hierarquias de “puro” e “poluído”, o que não tem nada a ver com seu valor nutricional. O resíduo do coipo é universalmente poluidor e potencialmente perigoso, um a vez que simbolicamente desafia a ordem existente. Onde Barth, por exemplo, veria uma pessoa não ortodoxa, inclassificável como empreendedor poten­ cial, como alguém que poderia produzir mudança, Douglas veria a mesma pessoa como uma anomalia classificatória. Esse contraste indica as diferenças entre pers­ pectivas sistêmicas e centradas no ator, como apareciam na antropologia inglesa na década de 1960.

Tanto Douglas como Tum er aperfeiçoariam e expandiriam suas perspectivas no decorrer das décadas seguintes. Douglas, que continua ativa atualmente, realiza­ ria por fim um trabalho pioneiro sobre consumo econômico (Douglas e Isherwood

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1979), percepção de risco, tecnologia moderna e antropologia institucional. Tumer, que se mudou para os Estados Unidos em 1961, desenvolveria suas idéias de limina- ridade numa teoria geral de desempenho ritual (Tumer 1969, 1974, 1987). Tumer morreu em 1983, mas sua influência continuou aumentando nas décadas de 1980 e 1990, quando seu interesse pelo jogo performativo e pela reflexividade seria bem acolhido pelo movimento pós-modemista na antropologia e por antropólogos envol­ vidos com estudos sobre experiência corporal, sobre emoções e sobre as dimensões simbólicas do poder (capítulo 8). Embora seu itinerário intelectual passasse assim de um estrutural-funcionalismo bastante ortodoxo a um foco radical voltado à estética e à performance, ele continuou essencialmente um durkheimiano - mas de uma linha durkheimiana radicalmente diferente da seguida por Radcliffe-Brown.

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