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O s longos anos do reinado da rainha Vitória, que começou duas décadas depois do fim das Guerras Napoleônicas e terminou com a Guerra dos Bôeres na África do Sul, foram um tempo de relativa paz e prosperidade na Europa. Até esse momento, os avanços tecnológicos e as inovações científicas haviam sido admiráveis, os impérios coloniais francês, britânico, alemão e russo haviam se expandido, a economia fora reestruturada e crescera; houvera aumentos enormes de população e progressos im­ portantes na democracia e na educação. Nas últimas décadas do século dezenove, sob a liderança inquestionável da Grã-Bretanha, emergiu um mundo de intercâmbio intenso (e exploração global), de internacionalização cultural (e imperialismo cultu­ ral) e de enorme integração política (muitas vezes na forma de colonialismo). Nesse cenário histórico, as teorias evolucionistas poderiam parecer a expressão de um fato óbvio da natureza. Os vitorianos viam sua conquista do mundo como evidência pal­ pável de que sua cultura era mais evoluída que a de todos os outros.

No início do século vinte esse otimismo sofreu fortes abalos e pouco depois se dissipou com as atrocidades da 1 Guerra Mundial, A teoria dos sonhos e do subcons­ ciente de Sigmund Freud, publicada em 1900, e a teoria da relatividade geral (1905) de Albert Einstein podem ser vistas como passagens simbólicas para uma nova e mais ambivalente etapa da modernidade. Essas teorias investiam contra a própria substância do mundo vitoriano: Freud dissolveu o indivíduo livre e racional, o meio e o fim do progresso, em desejos subconscientes e sexualidade irracional. Albert Eins­ tein desconstruiu a física, a mais abstrata das ciências empíricas e fundamento da inovação tecnológica, em incerteza e fluxo. Em 1907, Amold Schoenberg compôs os primemos compassos da música dodecafônica e Pablo Picasso começou a fazer expe­ rimentos com a pintura não representacional, ou abstrata. O Modernismo nasceu nas artes, um movimento que - apesar de seu nome confuso - oferecia uma visão ambi­ valente da verdade, da moralidade e do progresso. Na política, os anarquistas procla-

mavam a destruição do Estado e as feministas exigiam o fim da família burguesa. M enos de duas décadas do início do novo século, uma guerra devastadora deixou a velha Europa em ruínas e a Revolução Russa estabeleceu uma nova, assustadora ou atraente versão do racionalismo moderno. Foi nesse período turbulento de decadên­ cia e renovação, desilusão e novas utopias que a antropologia se transformou numa ciência social moderna.

Um olhar retrospectivo revela que a história da antropologia até por volta de 1900 não transcorreu, definitivamente, segundo os moldes da “evolução unilinear”. Questões levantadas com convicção por pensadores iluministas e românticos do sé­ culo dezoito tardio foram efetivamente ignoradas pelos antropólogos nas décadas de 1800. Esse descaso se aplica de modo especial aos problemas do relativismo e da tra­ dução cultural, que figurariam entre as questões essenciais da antropologia ao longo de todo o século vinte. As importantes descobertas na filologia comparada alemã, particularmente a inter-relaçâo entre as línguas indo-européias, foram transformadas em especulações inconsistentes nas mãos de evolucionistas comparativos. (“Dege­ neração” era o termo dos evolucionistas para isso.) Para os autores deste livro, a an­ tropologia do século vinte parece, em sua orientação e atitude fundamental, mais afi­ nada com o pensamento liberal e tolerante do século dezoito do que com a postura autoritária, conformista e evolucionista do século seguinte. Também achamos signi­ ficativo que tanto o século vinte como o século dezoito foram épocas de guerra na Europa, enquanto o século dezenove, depois de Napoleão, foi singularmente pacífi­ co, Apesar de seus defeitos, aprendemos do século dezenove o valor do raciocínio sistemático, indutivo, o valor dos modelos e “tipos ideais” que podemos projetar no mundo real para assegurar sua forma.

A disciplina da antropologia como a conhecemos hoje desenvolveu-se nos anos em tom o da í Guerra Mundial. Sem entrar em polêmicas, descreveremos seu desen­ volvimento voltando nossa atenção para, quatro homens de destaque - dois na Ingla­ terra, um nos Estados Unidos e um na França, H á outras tradições nacionais e outros estudiosos nos países metropolitanos que pareciam tão importantes quanto esses na época, mas que não deixaram descendência intelectual suficiente para ser tratados com a mesma deferência aqui. Apenas com uma visão retrospectiva oferecida pela passagem do tempo é que podemos avaliar a importância histórica de eventos passa­ dos; a importância contemporânea deles, porém, pode ter sido diferente. Lembre, por exemplo, que Herbert Spencer foi o único intelectual europeu de notoriedade nas últimas décadas do século dezenove, do mesmo modo que Henri Bergson foi o filó­ sofo mais famoso nas primeiras décadas do século vinte. Atualmente, um século de­ pois, nenhum dos dois é considerado um jogador na Academia da Primeira Divisão.

3. QUATRO PAIS FUNDADORES 5 1

Os homens cuja obra constitui a espinha dorsal deste capítulo foram Franz Boas (1858-1942), Bronislaw Malinowski (1884-1942), A.R. Radcliffe-Brown (1881- 1955) e Marcei Mauss (1872-1950). Em conjunto, eles realizaram uma renovação quase total de três das quatro tradições nacionais analisadas no capítulo anterior - a americana, a britânica e a francesa. Na quarta tradição, a alemã, o difusionismo con­ servou sua hegemonia. Momentos nefastos estavam reservados para ela e para a tra­ dição difusionista russa. Em pouco tempo, os livros de Boas seriam queimados em Berlim, uma geração de etnógrafos russos morreria no Gulag e, depois da II Guerra Mundial, alguns etnólogos alemães seriam acusados de colaboração com os nazistas. Por essas e outras razões as antropologias alemã e russa desenvolveram-se lentamen­ te durante grande parte do século vinte e só raramente comunicaram-se com as tradi­ ções predominantes. No entanto, Boas era alemão e Malinowski polonês, e como ambos levaram consigo um conhecimento profundo da tradição alemã quando emi­ graram para os Estados Unidos e para a Inglaterra, a antropologia alemã subsistiu ao longo do século vinte, embora transplantada em formas “híbridas”.

Os nossos quatro jogadores eram até certo ponto socialmente marginalizados nos ambientes em que viviam. Mauss era judeu, Radcliffe-Brown provinha de uma clas­ se trabalhadora, Malinowski era estrangeiro e Boas era estrangeiro e judeu. Talvez previsivelmente, os quatro não tinham um programa comum. Havia diferenças meto­ dológicas e teóricas importantes entre as escolas fundadas por eles, traços das quais podem ser encontrados ainda hoje na antropologia francesa, inglesa e americana. Não havia (e não há) fronteiras precisas, corno mostra com toda clareza a influência de Durkheim sobre a antropologia britânica. Paralelamente, havia contatos pessoais significativos entre as divisões, como testemunha o acalorado debate entre Rivers e o colaborador de Boas, Kroeber, sobre o uso de modelos psicológicos e sociológicos na pesquisa antropológica. Finalmente, os nossos quatro “heróis” tinham em comum o legado intelectual do século dezenove. O consenso quase universal agora era que o evolucíonismo havia fracassado. Mas havia também um reconhecimento silencioso de que os evolucionistas, de Morgan a Tylor, haviam afinal definido alguns parâme­ tros básicos da disciplina.

A transição para uma ciência social moderna, em grande parte não-evolucionis- ta, ocorreu de modos diferentes nos três países. N a Grã-Bretanha, a ruptura com o passado foi radical. Radcliffe-Brown e Malinowski proclamaram um a revolução in­ telectual e criticaram acerbamente alguns dos seus professores. Nos Estados Unidos e na França houve uma continuidade maior. Nos Estados Unidos Boas foi o mentor respeitado por todos e o ponto de referência da antropologia acadêmica ao longo de toda a transição. Na França Mauss simplesmente continuou a obra de seu tio

da morte deste, mas enfatizando o estudo de povos não-europeus muito mais do que Durkheim o fizera.

Às vezes, antropólogos sociais ingleses, principalmente, sustentam que Radclif- fe-Brown e M alinowski, mais ou menos independentemente, criaram a antropologia moderna. Essa talvez fosse a impressão na metade do século, quando a antropologia americana se subdividira em muitas áreas especializadas e os alunos de M auss ainda não haviam se destacado. Em contraste, a “ciência do parentesco” (“kinshipology”) (capítulos 4 c 5) britânica parecia firmar-se sobre um método criado por Malinowski e uma teoria desenvolvida por Radcliffe-Brown, consolidando-se como uma “ciên­ cia da sociedade” .

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