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Até 1950, graças à expansão institucional e às aposentadorias, as pessoas que des­ pontariam como figuras eminentes na antropologia social britânica do pós-guerra esta­ vam quase todas firmemente estabelecidas em instituições acadêmicas importantes: Firth conseguiu sua cátedra na LSE em 1944; DaryllForde tornou-se professor no Uni- versity College London em 1945; Evans-Pritchard em Oxford em 1946; Gluckman em Manchester em 1949 (alguns anos depois de deixar o Rhodes-Livingstone Institute); Fortes em Cambridge em 1950 e Schapera na Universidade de Londres em 1950. Le­ ach foi nomeado para o cargo de professor assistente em Cambridge em 1953.

Havia nuanças importantes entre os integrantes dessa elite, que no entanto deve ter parecido um clã muito unido quando observada de fora, de modo especial do di­ versificado campo da antropologia americana. Fortes, Evans-Pritchard e Forde con­ tinuaram ligados ao estrutural-funcionalismo, não obstante os dois últimos terem es­

colhido caminhos alternativos - Evans-Pritchard rejeitou os ideais da ciência natural e Forde manteve seu interesse na antropologia ecológica dos seus tempos de aluno em Berkeley. Firth, Richards e Leach desenvolveram diferentes tipos de funcionalis­ mo malinowslciano. Finalmente, Gluckman e Schapera representavam uma espécie de campo intermediário. Eles eram estrutural-funcionalistas autodeclarados, mas seus interesses temáticos estavam mais próximos dos de Leach e de Firth que, como eles, interessavam-se essencialmente pelo estudo da m udança social. Dessas figuras de proa, Leach e Evans-Pritchard empenhar-se-iam mais diretamente para mudar a natureza da antropologia social britânica. Apesar desses esforços, porém , essa antro­ pologia foi vista como um a seita conservadora durante vários anos do pós-guerra. Num debate com Firth em 1951, George P. Murdock acusou os bretões de cerrarem fileiras e de se recusarem a envolver-se no discurso da antropologia global (que tal­ vez ele entendesse ser a americana). Ao mesmo tempo, porém, M urdock confirmou que a antropologia social britânica desfrutava de forte influência junto aos antropólo­ gos americanos mais jovens (Stocking 1995:43s), fato que ele não via como despro­ vido dem érito.

As décadas de 1950 e 1960 testemunharam grandes transformações na antropolo­ gia britânica. Algumas das mais importantes, especialmente a mudança de foco de “es­ trutura” para “significado”, será tratada no próximo capítulo. Pelos padrões, porém, as pesquisas realizadas no Rhodes-Livingstone Instituíe (depois em Manchester), que se concentravam na urbanização no sul da África, foram pioneiras em seus métodos e te­ mas, e em boa medida foram responsáveis pela derrocada do estrutural-funcionalismo - ironicamente, talvez, visto que o principal teórico dessa escola era Gluckman, fiel discípulo de Radcliffe-Brown, Entretanto, havia tensões internas no estrutural-funcio­ nalismo que foram se tornando cada vez mais difíceis de resolver. Como Malinowski, Firth e vários antropólogos americanos haviam mostrado ainda antes da guerra, uma fraqueza do estrutural-funcionalismo era seu pressuposto explícito de que as socieda­ des tendem a reproduzir a si mesmas. Esse pressuposto criou dificuldades para explicar a mudança, mas a idéia seria viável se - e somente se - as sociedades estudadas pelos antropólogos não mudassem. A validade dessa condição, porém, estava sendo questio­ nada dia após dia. Em parte, era evidente que as sociedades colonizadas, na África e em outras partes do mundo, estavam mudando rapidamente. Em parte, havia uma cres­ cente compreensão do fato de que mesmo grupos primitivos “intocados” (por exemplo na Nova Guiné) estavam num estado de fluxo constante. A mudança, de fato, parecia ser um componente essencial da condição humana.

Por isso, nada mais natural que os primeiros antropólogos ingleses a abordar efe­ tivamente esse problema estivessem envolvidos em estudos de grupos humanos que

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passavam por mudanças rápidas, imprevisíveis e irreversíveis. Os antropólogos liga­ dos ao Rhodes-Livingstone Institute, muitos deles mais tarde na Universidade de Manchester, realizaram trabalhos de campo prolongados em regiões caracterizadas pela urbanização, pela migração em busca de emprego e pelo rápido crescimento po­ pulacional. Esses estudos, muitas vezes voltados para as cidades mineradoras da Ro­ désia do Norte (Zâmbia), mostraram como formas sociais tradicionais, como o pa­ rentesco, podiam ser mantidas e mesmo fortalecidas em situações de mudanças rápi­ das - “voltando à vida” no mundo moderno, gestando novo significado. Um estudo famoso nesse gênero foi The Trumpet Shall Sound, de Peter Worsley (1968[ 1957]), uma análise dos cultos da carga messiânicos na Melanésia*. Esses cultos eram movi­ mentos religiosos que combinavam elementos de uma cultura tradicional fragmenta­ da com elementos de um a modernidade pouco compreendida (personificada pelas tropas americanas estacionadas na área durante a II Guerra Mundial), chegando a sínteses simbólicas e organizacionais novas e criativas. Worsley, que era membro do Partido Comunista Inglês, não conseguiu, por razões politicas, autorização para rea­ lizar sua pesquisa, sendo obrigado a basear seu estudo na literatura existente.

Quase todos os estudos provenientes desse meio, porém, tinham a África, e na maioria dos casos o sul da África, como base etnográfica. Sob a liderança sucessiva de Godfrey Wilson e Gluckman, o Rodhes-Livingstone Institute iniciou vários novos campos de pesquisa relacionados com a mudança social. A transformação da vida tribal em decorrência da migração e do trabalho assalariado foi estudada a fundo - muitos pesquisadores fizeram trabalho de campo nos mesmos grupos tribais tanto na cidade como em seus ambientes tradicionais. Eles estudaram a etnicidade ou a “retri- balização” (Mitchell 1956; Epstein 1958). Eles investigaram as relações raciais em cidades mineradoras numa época em que grande parte da antropologia predominante ainda considerava a discriminação racial como domínio da sociologia. Eles também se envolveram com pesquisa aplicada, que nos departamentos metropolitanos era em parte desconhecida e em parte objeto de escárnio.

Os métodos que empregavam eram igualmente inovadores. Os problemas rela­ cionados com o estudo da vida social em cidades mineradoras caóticas e turbulentas precisavam ser resolvidos, e o trabalho de campo magistral de Malinowski sobre as diminutas Ilhas Trobriand oferecia poucas idéias. Alguns começaram a fazer experi­ mentos com métodos quantitativos, pouco comuns em antropologia. Mitchell, Epstein

* N. do revisor: esses cultos consistiam numa celebração ritual do saque de cargas de produtos alimen­ tícios e industriais trazidas em navios e aviões e ocorreram em diversas datas: 1870, 1914 e 1967.

e Elizabeth Colson usaram todos eles estatística e análise regressiva na tentativa de obter dados precisos sobre distância social e estruturas de rede. A análise de rede, in­ troduzida por John Bames (1990 [1954]), tinha o objetivo de rastrear a mudança de relações entre pessoas que não tinham residência fixa. Jaap van Vclsen (1967) pro­ pôs o “método de caso alargado”, um método de pesquisa em que um único evento dramático ou uma série de eventos era isolado e estudado em contextos sucessiva­ mente mais amplos, possibilitando assim observar “de baixo” estruturas sociais de grandes dimensões, como países, por exemplo, impossíveis de abranger com a ob­ servação participante tradicional.

As semelhanças com a Escola de Chicago são consideráveis, e as pessoas na Ro­ désia conheciam o trabalho desses pesquisadores. Mas eles ainda eram principal­ mente antropólogos sociais britânicos. O sucesso da Escola Salisbury-Manchester ti­ nha como premissa e base o fato do colonialismo e as possibilidades por ele propor­ cionadas para alianças entre departamentos de universidades metropolitanas e pe­ quenos institutos de pesquisa na periferia (um acordo semelhante existia entre a Uni­ versidade de Cambridge e o Instituto Africano Oriental de Pesquisa Social em Make- rere, Uganda, dirigido sucessivamente por Aidan Southall e Audrey Richards). O de­ partamento em Manchester, onde Gluckman trabalhava desde 1949, podia oferecer bolsas de pesquisa por três anos para muitos de seus alunos no instituto em Salisbury. A relação entre as duas instituições só se desfez com a declaração unilateral de inde­ pendência de Ian Smith em 1966.

O que os antropólogos de M anchester demonstraram, acima de tudo, foi que a mudança não era um simples objeto de estudo. Não era possível, como os estrutural- funcionalistas às vezes supunham, compreender a mudança simplesmente descre­ vendo a estrutura social como ela existia antes e depois da mudança e postulando al­ gumas regras transfonnacionais simples, que “explicariam” o que havia ocorrido no período intermediário. Gluckman e seus colegas mostraram que quando os efeitos locais de processos globais são investigados empiricamente, eles se dissolvem em redes complexas de relações sociais que estão em constante mudança e influenciam umas às outras. Essa era a idéia por trás da “teoria de rede” de Bames, um conceito mais dinâmico do que o de “estrutura social” de Radcliffe-Brown. A idéia de que a mudança podia ser compreendida como transformações simples, regidas por leis, en­ tre dadas condições sociais foi assim aos poucos substituidapor uma idéia de mudan­ ça como fundamentalmente imprevisível - porque resultava de relações individuais sem conta, cada uma delas sendo reflexiva e variável. Essa idéia por si só representa­ va um desafio fundamental para o estrutural-funcionalismo - índependentemente do fato de que o próprio Gluckman sempre professou sua lealdade a Radcliffe-Brown e nunca tentou desenvolver um a teoria alternativa.

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Gluckman havia feito seu doutorado em Oxford sob a orientação de Evans-Prit- chard e Fortes, e foi para o Instituto na Rodésia em 1939, onde exerceu a função de diretor de 1942 a 1947, ano em que voltou para a Inglaterra. Grande parte de suas pesquisas no sul da África relacionava-se com a lei, com a política e com conflitos e sua solução (ver Gluckman 1965). Apesar de mudar-se para Manchester, a liderança indireta de Gluckman continuou durante toda a década de 1950, e os vínculos entre Manchester e o Instituto continuaram fortes. As origens e os antecedentes de Gluck­ man, como judeu natural da África do Sul e com tendências esquerdizantes, não lhe angariaram muito apoio por parte do sistema acadêmico britânico, e foi evidente­ mente graças a Evans-Pritcharde Fortes que ele conseguiu seu posto em Manchester. (Seu arquirrival Leachpode ter pensado que o posto devia ter sido dele. ) De qualquer modo, Gluckman manteve-se leal ao esquema geral do estrutural-fiincionalismo, e certa vez comentou a respeito de Malinowski que “seus dados eram complexos de­ mais para trabalho comparativo” (Goody 1995). Apesar desse desdém - típico - pela etnografia de Malinowski, existiam (como assinalamos acima) semelhanças marcan­ tes entre os interesses de pesquisa de Gluckman e os dos alunos de Malinowski. Em sua história da antropologia social britânica Kuper (1996) observa que as duas linha­ gens pratícamente convergiam nos últimos anos da década de 1950, através do traba­ lho notavelmente semelhante de Frederick Bailey e Fredrik Barth (ver p, 112-113). Co­ mo Firth, Gluckman se interessou pelo tema da mudança desde o início de sua carreira. Já em sua contribuição ao African Potítical Systems, ele chamava a atenção para as tensões entre o sistema político tradicional dos zulus e a administração colonial que lhes havia sido imposta.

O interesse de Gluckman pelo conflito social foi inspirado por seu radicalis­ mo político e em última análise por Marx, mas diferentemente de Marx (e como Evans-Pritchard), ele via o conflito como um processo que por fim levava à integra­ ção. Para Gluckman, a integração social sempre implicava encontrar um equilíbrio entre interesses de grupos: conflitos podiam ser subcomunicados através de acordos entre líderes políticos, ou as tensões subjacentes da sociedade podiam ser canaliza­ das através de uma “válvula de segurança” para uma saída inofensiva, como acusa­ ções de feitiçaria (Gluckman 1956) - reduzindo assim a pressão sem provocar o sis­ tema. Diferentemente de muitos de seus contemporâneos, Gluckman tinha consciên­ cia aguda da natureza conflituosa da maioria das sociedades, que só se mantinham unidas imperfeitamente e através de muito trabalho.

Outra abordagem à questão da mudança social foi iniciada por Godfrey Wilson, cujo Essay on the Economias o f Detribalization in Northern Rhodesia (1941-1942) analisava a questão da “aculturação”. Wilson predisse que o colonialismo por fim re-

sultana numa mudança cultural profunda e na “destribalização”. Essa idéia foi retoma­ da mais tarde por Philip M ayer que, num estudo da política urbana na África do Sul, afinnou que os “sindicatos transcendem as tribos” (Mayer 1960). No entanto, vários antropólogos eminentes na Rodésia se opunham à idéia de Wilson, afirmando que o efeito da vida urbana sobre a identidade era a retribalização (Mitchell 1956; Epstein 1958), uma vez que o novo ambiente complexo lembrava continuamente aos migran­ tes sua identidade como membros de um grupo em oposição a outro. Essa perspectiva se mostrou útil mais tarde em estudos de etnicidade e nacionalismo (capítulo 7).

O interesse de Gluckman por tensões e crises também levaria a importantes pes­ quisas num campo que em geral não se associa à Escola de Manchester, a saber, o ri­ tual. A idéia de que o ritual pode abrandar o conflito e fortalecer a coesão social é do­ minante já na sociologia da religião de Durkheim. N a obra de Gluckman, e mais acentuadamente na do seu aluno Victor Tum er (1920-1983), essa idéia básica serve como moldura elástica para o estudo do ritual como processo social dinâmico. Mas como a obra de Tum er foi importante para deslocar a ênfase da antropologia social britânica da coesão social para o significado simbólico, ela será apresentada no pró­ ximo capítulo.

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