Em 1984, Sherry Ortner, que havia contribuído com o volume de Rosaldo e Lamphere dez anos antes, publicou o artigo “Theory in anthropology since the sixti- es" (Teoria em antropologia desde os anos sessenta). Aqui ela postula que um para digma teórico novo e abrangente estivera aflorando na antropologia durante as duas décadas anteriores, por ela denominado “teoria da prática”. Segundo Ortner, a teoria da prática era o desdobramento de várias tendências dominantes na disciplina, mais particularmente da antiga controvérsia entre a abordagem orientada para o ator e a orientada para a estrutura da década de 1950 e da obra marxista e feminista dos anos 1970. Essa tendência nova, definida elasticamente, abrangia uma variedade de pro gramas de pesquisa diferentes, mas um interesse metateórico comum a todos era o de unificar o individualismo metodológico e o coletivismo e de analisar o papel do cor po humano situado num mundo material como o principal lociis de interação social. Embora as referências de Ortner fossem principalmente a antropólogos americanos, mas conclusões também descreveram tendências importantes na ciência social euro péia contemporânea.
A idéia de um a teoria social que pudesse unificar a orientação para o ator e a ori entação para a estrutura, como também perspectivas sociológicas e culturais signifi cativas, não era nova. Com efeito, o próprio termo prática (ou práxis), do modo como foi empregado pelos teóricos mencionados por Ortner, deriva de Marx, cuja descri ção do corpo humano como simultaneamente explorado pelo poder e resistente ao ooder deriva da sua teoria do valor e constitui uma das afirmações mais vigorosas nas
ciências sociais. Além disso, as feministas, com sua ênfase no poder e no gênero, também impeliram o corpo para o foco da atenção analítica, do mesmo modo que o impulsionou a subdisciplina recém-instituída, a antropologia médica, que se tomaria uma das especializações de mais rápido desenvolvimento na antropologia na década de 1980.
Alguns desses interesses acabariam se expressando num rapprochement hesitan te da antropologia e da biologia durante a década de 1990 (capítulo 9). Durante os anos 1970, porém, eles atraíram a atenção de várias das principais luzes da teoria so cial européia, duas das quais serão tratadas brevemente aqui; abordaremos a terceira principalmente no próximo capítulo.
Em 1979 o sociólogo Anthony Giddens (1938-), descrito como “o cientista so cial inglês mais conhecido desde Keynes”, publicou CentralProblems in Social The- oiy, uma coleção de ensaios com forte tendência para Marx e Altkusser, mas também citando teóricos da interação, como Goffman e Barth. O objetivo explícito de Gid dens era unificar essas duas dimensões da vida social a que ele se referia como estru tura e agência, respectivamente. Em seu chef-d ’oeuvre, The Constitution o f Society (1984), Giddens abrange grande parte do mesmo campo que Bourdieu; em vez de distinguir entre doxa e opinião (ver abaixo), ele distingue entre razão discursiva e prática, acrescentando o subconsciente como um terceiro nível; e reitera o contraste entre agência e estrutura como uma tensão fundamental na vida social.
Chegando quase ao mesmo resultado que Bourdieu num nível teórico, a obra de Giddens era mais pobre em ilustrações empíricas e, em parte por causa disso, ela foi avidamente lida por antropólogos, mas menos utilizada nas pesquisas propriamente ditas. Pode-se dizer que sua obra se envolve mais diretamente com a história da filo sofia do que com dados etnográficos e sociológicos. Ela cataloga uma série de dico tomias perenes na ciência social (materialista-idealista, poder-resistência, indivi dual-coletivo, consciente-inconsciente, etc.), organiza-as num sistema de pensamento abrangente e logicamente coerente e estabelece uma série de princípios gerais impor tantes de pesquisa sociológica que eram também relevantes para os antropólogos.
O conceito de agência, que na obra de Giddens evocava um ator estratégico cons ciente, atuando dentro de restrições estruturais impostas pelo poder sobre seu corpo, é quase idêntico ao conceito de “prática" de Ortner. Prática é também o termo prefe rido para o mesmo fenômeno na obra do sociólogo e antropólogo francês Pierre Bourdieu (1930-). Nascido numa familia de classe média baixa numa cidade provin cial na França, Bourdieu estudou em Paris (com Michel Foucault e Jacques Derrida; ver capítulo 8), e realizou trabalho de campo entre os kabyles, um grupo berbere na
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Argélia, durante a Guerra da Independência argelina nos anos 1950. Ele foi profun damente influenciado por M arx e Lévi-Strauss, Mauss, Durkheim e Weber, e seu projeto tem sido o de unificar todas essas influências num instrumento simples mas sensível para o estudo das sociedades humanas. Bourdieu escreveu sobre uma gran de variedade de temas, inclusive classe, esportes, arte, gosto, arquitetura, poder, gê nero e troca, e sua influência sobre a antropologia tem sido ampla e profunda. Sua obra m ais influente até o momento, Esquisse d ’une théorie de la pratique (1972; On dine o f a Theoty o f Practice, 1977; cf. tam bém B ourdieu 1990), é basicam ente um a m editação teórica constante sobre a relação entre normas coletivas, poder so cial e agência individual, como esses se expressam através do corpo humano e pelo corpo humano.
Dois aspectos da teoria de Bourdieu nos interessam aqui. Primeiro, a idéia de ha bitus, que ele empresta de Mauss e do teórico alemão Norbert Elias (1897-1990). Em termos gerais, habitus é a intemalização perm anente da ordem social no corpo huma no. O corpo habita um mundo material, um mundo de poder e um mundo de outras pessoas. As restrições estruturais inerentes nesse mundo se imprimem no corpo, for mando disposições permanentes: esquemas de percepção e pensam ento, extrema mente gerais em sua aplicação, como os que dividem o mundo de acordo com as opo sições entre masculino e feminino, leste e oeste, futuro e passado, em cima e embai xo, direita e esquerda, etc., e também, num nível mais profundo, na forma de postu ras e posições coiporais, modos de ficar de pé, de sentar, olhar, falar ou caminhar (Bourdieu 1977: 15).
Habitus é assim um estilo estético de ação imprégnante que determina o ator ao modo de uma dança - não se pode sair dela sem que haja perda do encanto. Ao mesmo tempo o estilo, como a dança, pode ser praticado com maior ou menor habilidade, pode ser usado criativamente e abre possibilidades infinitas para variação e improvisação. Voltando a Bateson, e além dele a Benedict, o conceito de habitus parece dar realidade tangível à idéia vaga e geral de ethos, ligando-a ao poder e ao mundo material.
Na segunda parte do livro Bourdieu desenvolve um modelo de cultura simbólica no qual ele distingue doxa e opinião corno duas formas básicas de conhecimento. Doxa se refere ao que é considerado como fato consumado, que está além de qual quer discussão e que, em muitos casos, não pode nem sequer ser articulado por mem bros da sociedade. Opinião, ao contrário, se refere àqueles aspectos da cultura que estão abertos ao escrutínio, à discussão e à divergência.
Um terceiro teórico a exercer um impacto profundo sobre a pesquisa antropoló gica relacionada com práticas envolvendo o corpo, a quem voltarem os no próximo capítulo, foi o filósofo e historiador francês Michel Foucault (1926-1984). Em 1975
Foucault publicou um estudo muito elogiado sobre o surgimento do sistema prisional moderno na Europa, com bases muito sólidas sobre o conceito de disciplina. Disci plina, como habitus, é estrutura e poder que foram impressos no corpo, formando disposições permanentes. Foucault, porém, enfatiza a violência dessa “impressão” com mais intensidade do que Bourdieu e dá uma idéia mais vívida do custo da mo dernização para quem quer que esteja sujeito a ela. Esse aspecto da obra de Foucault teve uma influência fundamental sobre os estudos antropológicos do poder e da vio lência que apareceram durante as décadas de 1980 e 1990 (capítulos 8 e 9).
Em suma, os teóricos da prática abriram todo um novo campo de investigação para a antropologia, concentrando-se no corpo humano como fato central de toda existência social. Esse interesse os ligou - direta ou indiretamente - a outro grupo de pesquisadores que estivera explorando a interface entre biologia e sociologia. Esse grupo incluía Turner, cuja obra mais recente sobre performance e ritual continha uma forte orientação para o corpo. Incluía Bateson, que (com Mead) havia trabalha do sobre a linguagem do corpo em Bali e inspirado antropólogos como Ray Bird- whistell (1918-1994), que realizou um trabalho altamente técnico sobre comunica ção não-verbal. Esse interesse voltou-se também para a obra de psicólogos, lingüis- tas e antropólogos cognitivos que haviam analisado aptidões lingüísticas e percepti- vas congênitas ou profundamente impressas (ver capítulo 9). Finaimente, ele se ligou à obra de um grupo de biólogos e antropólogos físicos que criaram um impulso im portante na disciplina no fim da década de 1970 através de uma tentativa de redefini ção da antropologia como ura ramo do estudo da evolução (E.O. Wilson 1975).
A forte resistência entre antropólogos da comente dominante a essa obra é ilus trada pelo fato de que quando a obra póstuma de Victor Turner, Body, brain and cul- ture, foi publicada em 1987, seu editor julgou necessário prefaciá-la com uma longa introdução, explicando que Turner, em sua senilidade, não havia se tornado um so- ciobiólogo.