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A nova sociologia

2 VITORIANOS, ALEMÃES E UM FRANCÊS

fundamente por questões morais e sempre se empenhou em promover reformas so­ ciais e educacionais. Em 1887 foi nomeado professor assistente de pedagogia e so­ ciologia na Universidade de Bordeaux, tomando-se o primeiro cientista social fran­ cês a exercer uma função acadêmica. Durante esse período, que se prolongou até sua mudança para Paris em 1902, Durkheim escreveu duas de suas obras mais importan­ tes, De la division du travail social (1893; The division o f labour in society, 1964) e Le suicide ( 1897; Suicide, 1951). Ele também fundou a influente revista L 'Année So­ ciologique, que continuou a editar depois de transferir-se para Paris. Como professor na Sorbonne, de 1906 até sua morte em 1917, a influência de Durkheim sobre a socio­ logia francesa posterior e sobre a antropologia foi enorme. Com seu'sobrinho e su­ cessor intelectual Marcel Mauss ple escreveu extensamente sobre povos não europe­ us; uma obra notável nesse sentido é Classification primitive ( 1900; Primitive classi­ fication, 1963), um estudo das origens sociais dos sistemas de conhecimento, basea­ do em dados etnográficos, especialmente da Austrália. Esse livro, que postula uma ligação intrínseca entre classificação e estrutura social, ainda é ponto de referência para estudos antropológicos de classificação.

Diferentemente tanto de difusionistas como de evolucionistas, Durkheim não ti­ nha um interesse particular pelas origens. Ele procurava mais explicações sincrôni- cas do que diacrônicas.

Como os difusionistas, mas diferentemente dos evolucionistas, ele estava profun­ damente empenhado em fundamentar sua reflexão de cunho antropológico em dados observáveis, em geral quantificáveis. Diferentemente dos difusionistas, porém, cie es­ tava convencido de que as sociedades eram sistemas lógicos, integrados, em que todas as partes eram dependentes umas das outras e trabalhavam juntas para manter o todo. Nisso ele se aproximava dos evolucionistas que, como ele, faziam analogias entre os sistemas funcionais do coipo e a sociedade. De fato, Durkheim freqüentemente descre­ via a sociedade como um organismo social. Como Tönnies e Maine, mas diferente­ mente de Marx e Morgan, Durkheim admitia uma divisão dicotômica de tipos sociais - deixando de lado toda essa questão de “estágios” e “evolução”, ele justapunha socieda­ des tradicionais e modernas sem postular que as primeiras evoluiriam para as segun­ das. As sociedades primitivas não eram “sobreviventes” de um passado nebuloso nem “passos” em direção ao progresso, mas organismos sociais que mereciam ser estuda­ dos por seu valor intrínseco. Finahnente, diferentemente de Bastian e da escola Völker­ kunde, Durkheim estava interessado, não com a cultura, mas com a sociedade, não com símbolos e mitos, mas com organizações e instituições. "

O livro sobre a divisão do trabalho concentra-se no estudo da diferença entre orga­ nizações sociais simples e complexas. Na visão de Durkheim, as primeiras se baseiam

na solidariedade mecânica. As pessoas apoiam a ordem social existente e umas às ou­ tras porque têm a mesma vida em comum dia após dia, realizam as mesmas tarefas e se percebem semelhantes. Nas sociedades complexas, por outro lado, prevalece a solida­ riedade orgânica. Aqui, sociedade e compromisso mútuo são mantidos pela percepção que as pessoas têm umas das outras como diferentes, com papéis complementares. Cada uma realiza uma tarefa diferente que contribui para o todo. Durkheim acrescenta que as duas formas de solidariedade devem ser compreendidas como princípios gerais de interação social mais do que como tipos sociais. A maioria das sociedades tem ele­ mentos de ambas. Além disso, a distinção faz mais do que postular um contraste entre “nós mesmos” e o “outro”. Tanto Durkheim como muitos de seus sucessores, até Louís Dumont (ver capítulo 6), estavam impressionados com as complexidades da sociedade indiana tradicional e sustentavam que o sistema de castas dessa sociedade expressava uma forma avançada de complexidade orgânica.

A última obra de Durkheim, talvez a mais importante, Les Formes élémentaires dela vie réligieuse (1915; The Elementary Forms ofReligious Life, 1995), foi publi­ cada dois anos antes de sua morte. Aqui, ele tenta apanhar o sentido de “solidarieda­ de” em si, da força mesma que mantém a sociedade. A solidariedade, afirma Dur­ kheim, surge das representações coletivas - um termo polêmico na época e também nos dias atuais. As representações são “imagens” simbólicas ou “modelos” de vida social comuns a um grupo. Essas “imagens” se desenvolvem através de relações interpessoais, mas adquirem um caráter objetivo supra-individual. Elas constituem uma realidade totaiizante, virtual, “socialmente construída” que ecoa Kant e Hegel, e que para as pessoas que vivem na sociedade são tão reais quanto o mundo material. Mas elas não são imagens objetivas desse mundo, e sim entidades morais, com poder so­ bre as emoções. A religião se toma um objeto de pesquisa importante para Durkheim, porque é aqui, mais do que em qualquer outra parte, que se estabelece e fortalece o apego emocional dos indivíduos a representações coletivas. Esse apego se forma principalmente no ritual, no qual a religião é expressa através da interação física e a solidariedade se toma uma experiência direta, corporal. O ritual se separa da vida diária profana, traçando um círculo mágico protetor em tomo do seu próprio domí­ nio sagrado, proibido. Essa demarcação permite que a experiência do ritual seja in­ tensificada até que uma união quase mística seja alcançada. Trazendo a lembrança dessa experiência de volta à vida diária, nós lembramos como o mundo é realmente.

A religião e o ritual atraíam de longa data o interesse dos antropólogos, que os haviam documentado numa grande variedade de formas empíricas. O problema da compreensão da integração social em sociedades sem Estado fora uma preocupação importante (embora em geral implícita) no evolucionismo, E a perplexidade diante

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dos símbolos e costumes exóticos dos “outros” foi o ponto de partida de toda pesqui­ sa antropológica. Agora Durkheim parecia oferecer um a ferramenta analítica que in­ tegraria todos esses interesses. “O exótico” podia ser compreendido como um siste­ m a integrado de representações coletivas cuja função era criar solidariedade social. E a religião, o fenômeno mais mistifícante e “exótico” de todos, acabou se transfor­ mando no dínamo racional propulsor de todo esse processo.

Quando antropólogos ingleses aderiram a Durkheim no início do século vinte (capítulo 3), eles descobriram um sem-número de aplicações da teoria durkheimiana ao estudo da religião, dos sistemas legais e do próprio parentesco. Assim, Durkheim é freqüentemente descrito como o fundador do estrutural-funcionalismo, embora este seja de fato uma escola puramente britânica, desenvolvida por Radcliffe-Brown e seus alunos. Mas Durkheim e a “Escola Inglesa” concordavam em que os fenôme­ nos sociais e as representações coletivas que os acompanham eram entidades com existência objetiva. No seu Règles de la méthode sociologique (1895; Rui es ofSocio- logical Method, 1982), Durkheim sustenta que os fenômenos sociais devem ser estu­ dados “como coisas” {comine des choses) - e descreve os indivíduos mais como pro­ dutos da sociedade do que como seus produtores. Seu contemporâneo Max Weber, o último grande sociólogo clássico com lugar no panteão antropológico, encarna uma posição contrária em vários aspectos.

Weber

M ax W eber cresceu no seio de um a família prussiana próspera e autoritária, foi educado nas universidades de Berlim, Heidelberg e Gõttingen e projetou-se rapida­ mente no mundo acadêmico alemão. Ele foi nomeado professor com 31 anos de ida­ de (em 1895) e no decorrer de alguns anos publicou obras de erudição sobre temas tão diversos como a queda do Império Romano e problemas agrícolas na Alemanha Oriental do seu tempo. De sua mãe, educada numa família calvinista rígida, ele her­ dou ideais de ascetismo e de disciplina rígida no trabalho, o que pôs em prática em sua vida acadêmica. Em 1898, depois de apenas três anos de atividade, ele sofreu um colapso mental, e só conseguiu retom ar ao trabalho cinco anos mais tarde. Imediata­ mente após sua recuperação, W eber escreveu o livro que muitos consideram o me­ lhor: Die protestantische Ethik und der "Geist" der Kapitalismus (1904-1905; The Protestant Ethic and the Spirit ofCapitalism, 1976). Trata-se de uma obra de história cultural e econômica que analisa as raízes da modernidade européia. W eber afirma que os calvinistas (e outros cristãos puritanos dos séculos dezesseis e dezessete) for­ mularam uma visão da vida que correspondia proximamente à imagem do capitalista perfeito. Os calvinistas acreditavam que a vida humana era predestinada, que uns

poucos eram escolhidos por Deus para a salvação, mas que era impossível para os se­ res humanos compreender quem seria escolhido ou por que as coisas deviam ser as­ sim. O Deus de Calvino era frio e intolerante. Ele exigia obediência, mas nâo expli­ cava suas razões. Segundo Weber (e acreditamos que aqui ele possa estar falando por experiência pessoal), essa ambigüidade, associada a uma doutrina implacável, criou uma tensão insuportável na vida dos calvinistas. Na busca de soluções, descobriram que só o trabalho árduo somado a um estilo de vida frugal podena aproximá-los da graça de Deus. Eles eram estimulados a produzir resultados, mas proibidos de sabo­ rear os frutos do seu esforço. Em vez disso, reinvestiam seus ganhos em sua “empre­ sa”, gerando uma espiral de lucros cada vez maiores para a “glória de Deus”.

A questão de Weber não é necessariamente que o cal vinismo era a causa do capi­ talismo. As razões da ascensão do capitalismo eram muitas, e o reinvestimento não era de modo algum invenção de Calvino, A questão era antes que o calvinismo (e num sentido mais amplo, o protestantismo como um todo) formulou uma ideologia explícita afinada com a ética capitalista.

Na Alemanha de Weber, as humanidades ou, literalmente, “ciências do espírito” (Geisteswissenschaften), gozavam de grande prestígio, e a hermenêutica era consi­ derada um componente natural de uma educação refinada. E foi a hermenêutica, a ciência que tem como objetivo compreender e inteipretar o ponto de vista de uma cultura, pessoa ou texto desconhecidos, que inspirou Weber a pesquisar as motiva­ ções por trás das ações, a maneira como determinado modo de agir podia fazer senti­ do aos indivíduos;1 Nessa perspectiva, Weber é um dos primeiros representantes do que mais tarde se chamariaide individualismo metodológico.!Interessa-lhe não o sis­ tema ou o todo, mas o fato de que, quando indivíduos fazem coisas, eles têm razões para fazê-las. Por isso, ^sociologia de Weber está associada à palavra alemã Verste- hen (compreensão). É uma sociologia da “compreensão”^ da “empatia” que procura “pôr-se nos sapatos do outro”, apreendendo os motivos desse outro, as escolhas com que ele se defronta e as respostas que seriam naturais para ele em face das circunstân­ cias concretas de sua vida. Em outras palavras, Verstehen implica um foco sobre [o que o mundo significa para os índividuos e que tipo de significado ele tem.

O que o próprio Weber procurava compreender, porém, era acima de tudo o po­ der. O poder foi um tema dos mais importantes também em Marx (o relevo é menor em Durkheim), mas ambos atribuíam à palavra sentidos bem diferentes, para Marx, a base do poder era o controle dos meios de produção, e por isso estava associado à propriedade. O poder sofre contestação, é subvertido, e a sociedade se transforma - até aqui Marx e Weber concordavam perfeitamente.; Mas de acordo com Marx a mu­ dança não surge de indivíduos que buscam valores e se esforçam por objetivos, mas

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de conflitos estruturais de movimento lento nos abismos do sistema social. Marx via o poder como uma força anônima que esconde sua face verdadeira atrás do véu da ideologia, Weber concentrava-se nos efeitos das estratégias individuais para alcan-

Como seus contemporâneos, os difusionistas, Weber se opunha a esquemas teó­ ricos abstratos, “distantes da experiência”. O que importava era a coincidência parti­ cular, histórica. Weber não via nada irrazoável em supor que poder e propriedade muitas vezes estavam ligados, mas ele se recusou a generalizar além disso. 0_poder, conforme definido por ele, é a habilidade de levar alguém a fazer alguma coisa que,- de outro modp^elejiãp faria. Poder (ou autoridade) legítimo é o poder baseado num mínimo de coerção física e violência, considerado como legal, moral, natural ou fato da vida produzido por Deus, e aceito por uma população que foi ensinada a acreditar que as coisas são assim. Em sua segunda grande obra, Wirtschaft und Gesellschaft (publicada postumamente em 1922; Economy and Society, 1968), Weber descreve três tipos ideais de poder legítimo. O “tipo ideal” é outro neologismo weberiano im­ portante: refere-se a modelos simplificados que podem ser aplicados ao mundo real para revelar aspectos específicos do seu funcionamento —assim, os “tipos ideais” em si não têm realidade empírica. Os três tipos ideais de poder legítimo de W eber podem ser descritos resumidamente desse modo: autoridade tradicional é o poder legitima­ do por ritual e parentesco; autoridade burocrática é o poder legitimado pela admi­ nistração formalizada; autoridade carismática é o poder do profeta ou do revolucio­ nário de “dominar as massas”. Os três tipos, ressalta Weber, podem muito bem coe­ xistir numa mesma sociedade. Os dois primeiros tipos parecem assemelhar-se às di­ cotomias primitivo/modemo propostas por Maine, Tõnnies ou Durkheim. O terceiro tipo, porém, é uma inovação. Ele demonstra que Weber, nos últimos anos de sua vida, havia lido Nietzsche e Freud, dois pensadores contemporâneos de língua alemã que afirmavam vigorosamente a primazia do indivíduo. Weber esclarece que existe um tipo de poder que é imprevisível e individual e que se baseia na capacidade de se­ dução do indivíduo excepcional mais do que na propriedade (Marx) ou em normas estáveis (Durkheim).

Assim, para Weber, a sociedade é um esforço mais individual e menos coletivo do que para Marx ou Durkheim. A sociedade não é, como em Durkheim, uma ordem moral dada de um a vez por todas. Também não é, como em Marx, produto de forças coletivas ponderosas que os indivíduos não podem compreender nem influenciar. A sociedade é uma ordem ad hoc gerada quando diferentes pessoas com diferentes in­ teresses e valores se encontram, discutem e tentam (em última análise pela força) convencer umas às outras e chegam a alguma espécie de acordo. Dessa forma, cõm-

petição e conflito são para W eber fontes potenciais de m udança construtiva. Aqui ele concorda com M arx e se opõe a Durkheim, que adm itia que m udança e decadência eram praticam ente sinônimos. Mas em W eber conflitos não são, como em Marx, vastos e impessoais, m as provocados por indivíduos. Assim, enquanto M arx e Dur­ kheim desenvolveram , cada um, um tipo diferente de coletivismo metodológico, que estuda a sociedade principal mente como um todo integrado, W eber apresentou um individualismo metodológico para o qual as sociedades podiam ser confusas, incoe­ rentes e imprevisíveis.

A influência do legado de W eber sobre a antropologia foi m enos direta do que a de Durkheim , ele próprio instrumental na criação da m oderna antropologia francesa. Em bora W eber se tom asse rapidam ente um representante fundam ental na sociologia internacional, seu impacto sobre a antropologia ocorreu em grande parte depois da II Guerra M undial. E um testemunho ao seu grande escopo como teórico que antropó­ logos de orientações tão diferentes como o hermeneuta Clifford Geertz e o individua­ lista m etodológico Fredrik Barth sejam profundam ente devedores a W eber, embora por razões diferentes.

Em torno da virada do século vinte sociólogos continentais estavam envolvidos num discurso candente sobre questões de teoria social, atingindo níveis de sofistica­ ção difíceis de ser alcançados por antropólogos. Em nossos dias, os antropólogos ci­ tam M arx, Durkheim e W eber com ffeqüência m uito m aior do que citam M organ, Bastian ou Tylor, que em pouco tem po seriam realm ente desacreditados pelos segui­ dores de Durkheim. N um curto período de tem po, o impacto de D urkheim abalaria profundam ente a antropologia, enquanto W eber e M arx continuavam envoltos em sombras, só aparecendo como influências im portantes depois da 11 G uerra M undial.

Não obstante, a herança da antropologia do século dezenove é mais rica do que em geral se supõe. O evolucionism o nunca desapareceu com pletam ente e teve vários proponentes influentes no século vinte. Como apontam os acima, o difusionism o ain­ da é uma força a ser levada em consideração. M uitos conceitos subsistiram e conti­ nuam sendo adotados: a distinção de M aine entre contrato e status, a definição de cultura de Tylor e as form as culturais incipientes de B astian sào todas “sobreviven­ tes” (para usar um termo nativo) da antropologia vitoriana. No entanto, só com os avanços descritos no próxim o capitulo é que a antropologia social e cultural entra em cena como a conhecem os atualmente.

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