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O que em retrospectiva poderíamos chamar de movimento pós-modemista na antropologia americana estava associado à obra de um grupo bastante reduzido de especialistas. O núcleo era formado pelo não-antropólogo James Clifford, um histo­ riador da antropologia com propensão para estudos literários, e pelos antropólogos Stephen Tyler (convertido da etnociêncía ao pós-modemismo), George Marcus, Mi- chael Fischer, Renato Rosaldo e Paul Rabiiiow. Outros ligados ao movimento inclu­ íam Fabían, Richard Handler (aluno de Schneider voltado ao estudo de discursos na­ cionalistas) J ríla A bu-Lughod (especialista em mundo árabe) e Akhil Gupta e James Ferguson, co-autores e editores de uma importante obra sobre a construção discursi­ va do espaço e da narrativa nos anos 1990. Apesar das diferenças (com relação, por exemplo, às possibilidades e limitações da etnografia), esses e outros estudiosos den­ tro e fora dos Estados Unidos tiniram inúmeros interesses em comum. Eles se senti­ am constrangidos com a “alterizaçãp” reificada típica da antropologia modernista clássica e procuravam retomar essa questão de várias formas, muitas vezes advogan­ do “etnografias experimentais”, onde os informantes participavam como parceiros iguais na produção de conhecimento (Clifford e Marcus 1986; Marcus e Fischer 1986). Além "disse-,-eles criticavam a idéia boasiana (e, mais recentemente, geertzia- na) de culturas como todos integrados com raízes históricas profundas. Inspirados por Foucault e marxistas culturais como Antonio Gramsci (1891-1937), eles também se interessavam pelos modos de representação e de poder sugeridos por estilos de es­ crita particulares.

O ano de 1986, sob muitos aspectos um annus mirabüis para esse movimento, testemunhou a publicação de dois livros importantes e o lançamento de uma nova re­ vista editada por Marcus, intitulada - de modo surpreendentemente tímido - sim­ plesmente Cultural Anthropology. O primeiro livro foi Anthropology as Cultural Critique com o subtítulo An Experimental Moment in the Human Sciences, de Mar­ cus e Fischer. Afirmando que a disciplina sofria de “uma crise de representação”, eles apresentaram vários dos problemas descritos acima e destacaram a importância da reflexividade (situando o conhecimento do antropólogo) e de interesses sistêmi­ cos mais amplos (introduzindo uma compreensão da história do mundo e da econo­ mia em análises etnográficas). Eles sustentavam que um objetivo importante da dis­ ciplina devia ser o de envolver-se em crítica cultural “em casa” e que uma maneira apropriada de alcançar esse objetivo era recorrer à çlesfamiliarização - criando uma sensação de '‘estranhamento” ao mostrar a semelhança da cultura própria dos leitores ..com culturas remotas e “exóticas” . Na visão deles os anos 1980 foram um período com possibilidades excepcionais para cumprir a promessa da antropologia como ins-

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tnimento de crítica cultural. A disciplina estava em desordem; o amplo consenso pós-guerra fora rompido em ambos os lados do Atlântico; o movimento pós-colonial havia gerado incerteza; grandes teorias haviam perdido seu apelo. Nessa situação, “etnografias experimentais” podiam contribuir substancialmente para uma auto-re- flexão crítica sobre a sociedade ocidental.

Anthropology as Cultural Critique, que enfatizava a continuidade dos interes­ ses de antropólogos como Mead, Sahlins e Douglas, foi menos radical do que o vo­ lume editado Writing Culture (Clifford e Marcus 1986). Embora este livro tivesse em tomo de doze capítulos escritos por diferentes estudiosos que representavam várias posições no debate pós-modemista, ele foi recebido como um ataque direto ao conceito dominante dc cultura. Unanímcmente, os colaboradores se distancia­ vam da idéia de cultura como um “todo integrado”, questionaram os mecanismos retóricos da antropologia “científica” e destacaram os méritos tanto dos métodos “dialógicos” (cora o critico literário russo Mikhail Bakhtin sendo a principal inspi­ ração aqui) quanto da contextualizaçào histórica na arte da representação antropo­ lógica, a cada dia mais problemática.

Writing Culture, de enorme influência, foi seguido dois anos mais tarde pelo The Predicament o f Culture, de Clifford, que pode ser resumidamente descrito como um longo argumento, construído em bases históricas, contra o essencialismo. No mesmo ano Geertz publicou um livro pequeno, elegante, intitulado Works and Lives: The. Antkropologist as Author. O livro foi uma coleção de ensaios sobre antropólogos fa­ mosos, enfatizando os aspectos retóricos e literários de seus escritos; ele teve como base uma série dc palestras anteriores a Writing Culture. As previsões de Ardener pa­ reciam agora confirmar-se no outro lado do Atlântico: a busca antropológica havia chegado ao fim, pois não lidava mais com pessoas vivas, mas com lexros. íNatuiai- mente, essa visão apresentava limitações sérias. Em nenhum outro período como nos anos 1980 fora realizado tanto trabalho de campo, em tantos lugares diferentes. No entanto, é fato que algumas das obras mais debatidas dessa década eram textos refle- xivos, que desconstruíam a autoridade etnográfica, questionavam a legitimidade éti­ ca de transformar “nativos” em dados e em última análise desafiavam a validade da representação etnográfica em si.

Os vínculos entre a antropologia pós-modemista americana e os estudos literá­ rios eram fortes. Ambos se voltavam para a filosofia francesa recente em busca de inspiração, e os jovens antropólogos, impregnados de hermenêutica geertziana, esta- vam predispostos a ver as culturas como textos. A ruptura desses antropólogos com Geertz consistiu em grande parte em problematizar a relação sujeito-objeto entre an­ tropólogo e informante, e não em veras culturas (“textos culturais”) como todos inte-

grados. Entretanto, esses problemas não eram estranhos ao próprio Geertz. Certa vez ele comparou uma cultura integrada a um polvo, um animal pouco coordenado com um cérebro fraco que nem sempre sabe o que cada um dos seus braços está fazendo; e em Works and Lives ele de fato desconstrói os textos antropológicos clássicos, des­ crevendo-os como obras imaginativas, historicamente situadas. Com efeito, po­ der-se-ia dizer que, vista a distância, a antropologia americana pós-modema repre­ senta uma forma extrema de boasianismo, mais do que alguma coisa inteiramente nova. Geertz é a figura principal aqui. Embora os antropólogos mais jovens que se re­ uniram em tomo de Cultural Anthropology tivessem uma relação ambivalente com a hermenêutica de Geertz, ele era o parceiro de discussões preferido deles. A continui­ dade entre a visão antropológica de Geertz e o projeto de desconstrução radical de­ fendido em Writing Culture foi considerável. O próprio Geertz achava que a geração mais jovem havia ido longe demais, e cunhou o termo “hipocondria epistemológica” para descrever a autocrítica excessiva que impedia as pessoas de realizar um bom tra­ balho etnográfico.

Muitos antropólogos concordariam com Geertz e inclusive iriam mais longe do que ele em seu criticismo. Alguns críticos mais explícitos eram Steven Sangren (1988), que via a “virada reflexiva” como um recuo com relação à missão própria da antropologia, e Jonathan Spencer (1989), para quem a antropologia poderia ser vista mais apropriadamente como um estilo de trabalho do que como uma forma de escri­ ta. Marvin Harris, em um dos seus muitos papéis de posição, discutiu exaustivamen­ te (alguns diriam parodiou) as preferências de George Marcus, que parecia ser favo­ rável a um aumento do “número de estudos de campo experimentais, personalísticos e idiossincráticos realizados por pretensos romancistas despreparados e narcisistas enfatuados atribulados com logodiarréia congênita” (Harris 1994: 64).

Em est Gellner, num pequeno livro dedicado à defesa da ciência racional diante da dupla ameaça do fundamentalismo de “mundo fechado” e do relativismo pós-mo- demo sem limites, censurou severamente os pós-modemistas americanos, destacan­ do Clifford e Rabinow como alvos principais, por preguiça mental e conceitos mal definidos, e em última análise por estarem mais interessados em suas próprias inter­ pretações do que em compreender o mundo (Gellner 1992). Embora Gellner consi­ derasse Geertz um precursor importante do movimento pós-modemista, ele obser­ vou que Geertz, pelo menos, ainda estava tentando “dizer alguma coisa sobre alguma coisa”, como o próprio Geertz se expressara certa vez. Em contraste com a crítica às teorias da Grande Divisão (ou “Grande Fosso”) [Great Divide/ “Big Ditch”] (que contrapõem “nós” a “eles”, “moderno” a “primitivo”, e assim por diante), Gellner confirmou sua posição como um modernista na linha de Ardener. Em outro lugar,

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Gellner (1993) também se mostrou reticente com relação ao pós-colonialismo, por este subverter proposições de verdade cientifica, confundir ideologia e análise e não compreender que o “problema do poder e da cultura... é importante demais para ser dei­ xado à critica literária” (Gellner 1993: 4). Finalmente, Gellner sugeriu que havia um elemento de carreirismo no movimento pós-m odem o, observando que “Sturm und Drang and Tenure poderia muito bem ser o slogan deles” (Gellner 1992:27) [Tempes­ tade e Impulso e Titularidade]. Há sem dúvida algo de verdade nisso, mas a mesma coi­ sa poderia naturalmente ser dita de todos os movimentos inovadores na história an­ tropológica, desde a “revolução funcionalista” malinowski-radcliffe-browniana, pas­ sando pelas “revoluções” evolucionista de Steward e interacionista de Barth, até a “revolução” nos estudos de nacionalismo que o próprio Gellner apoiaria.

Também tem sido freqüentemente observado que muitas idéias que inspiraram a antropologia pós-modema americana tiveram origem na França, e que os americanos adaptaram os mestres franceses para conformá-los à sua própria antropologia, e nes­ se processo deturpando muitas vezes suas idéias. Na leitura americana, Foucault se tornou um teórico do discurso; Derrida, um filósofo do relativismo. Certamente, isso pode ser verdade, mas também é importante situar a antropologia americana em si. Boas, um alemão, havia entendido muito bem no seu tempo o potencial para o confli­ to étnico e racial nos Estados Unidos, um país disperso, multinacional, e os aconteci­ mentos desde sua morte não provaram que ele estava errado. Clifford e Marcus po­ dem parecer tão triviais quanto o M cDonald’s para os intelectuais altivos de Paris, mas o relativismo, mesmo o relativismo extremo, era uma posição compreensível num país dividido por uma história de escravidão afro-americana, genocídio de nati­ vos americanos e imigração de todas as partes do mundo.

Alguns críticos também duvidavam que o pós-modernismo fosse um afastamen­ to tão radical da tradição antropológica quanto ele pretendia ser. Entretanto, esse ar­ gumento era uma espada de dois gumes, e foi também usado por alguns dos próprios pós-modemistas para legitimar seu projeto. Assim, Kirsten Hastrup, uma aluna dina­ marquesa de Ardener, cuja obra é implacavelmente antipositivista, e que de algum modo representa uma contrapartida européia ao pós-modemismo americano, susten­ tou que a antropologia sempre havia sido uma ciência pós-modema, desde o momen­ to em que ela começou a contrapor o Ocidente a imagens de outros mundos da vida (ver Hastrup 1995). Embora Hastrup possa ter exagerado ao fazer essa afirmação, existem afinidades eletivas entre os esforços desconstrutivistas dos pós-modemistas e várias tendências anteriores na história antropológica. Assim, há precedentes cla­ ros de pós-modemismo no Debate da Racionalidade dos anos 1960 (capítulo 6) e na revolução no trabalho de campo da década de 1970 (capítulo 7), e o desmascaramen-

to da objetividade do método etnográfico havia sido um jogo de salão antropológico em ambos os lados do Atlântico pelo menos desde a II Guerra Mundial. Mas acima de tudo, naturalmente, há continuidade com o particularismo histórico de Boas e com a tradição romântica alemã. Em geral, os antropólogos americanos, imbuídos dessa tradição, tinham por isso uma predisposição mais favorável ao pós-modemismo do que seus colegas europeus, que eram os herdeiros de positivistas consumados como Radcliffe-Brown (ver Kuper 1996: 189). A desconstruçâo dos estudos do parentesco feita por Schneider não tinha nada a ver com o pós-modemismo, mas foi a obra de um boasiano devotado e defensor incessante da sociologia de Parsons. Mais tarde sua obra seria citada com aprovação também na Inglaterra pelo antropólogo inglês de origem tcheca, Ladislav Holy, em seu manual sobre o parentesco (Holy 1996). No entanto, o ponto de referência de Holy não é Boas, mas o individualismo metodológi­ co do movimento antiestrutural-funcionalista inglês das décadas de 1950 e 1960 (ca­ pítulo 5). Esse movimento é também frequentemente considerado como precursor do pós-modemismo. Quando Barth, em meados dos anos 1960, demoliu o conceito de estrutura social e postulou que formas sociais estáveis eram resultado de escolha in­ dividual, isto foi (num sentido) um argumento desconstrutivo muito semelhante à desconstruçâo dos conceitos boasianos e geertzianos de todos culturais integrados levada a efeito pelos pós-modemistas.

No entanto, a crítica pós-moderna da antropologia, com apoio eventual dos estu­ diosos feministas e pós-coloniais, representou alguma coisa nova, embora sua origi­ nalidade fosse muitas vezes exagerada na época. No que dizia respeito à antropolo­ gia, a novidade esta va principalmente na ênfase reflexiva sobre estilos de escrita, na rejeição de uma voz autoral neutra, não posicionada, e (mais fundamentalmente) na aplicação da reflexividade à antropologia em si. Depois do pós-modemismo, a antro­ pologia não podia mais ser vista como discurso privilegiado com acesso à verdade objetiva sobre os povos que ela estudava.

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