1946
: as armas estão silenciosas, os bombardeiros em terra. Milhões de refugi ados cruzam cautelosos pelas cidades destruídas da Alemanha, pelas terras devasta das da Rússia, da Polônia e da Ucrânia. A França e a Inglaterra foram profundamente abaladas e seus grandes impérios em breve serão apenas uma lembrança. Em con traste, a economia americana começa a se firmar como superpotência, produzindo quantidades cada vez maiores de cadillacs cor-de-rosa, aparelhos de TV, estrelas de rock’n ’roll e armamento nuclear. Não muito longe, a União Soviética competirá exi- tosamente com “o mundo livre” pela produção de material bélico, enquanto a fabri cação de cadillacs (cor-de-rosa ou de outras cores) fica para trás. McCarthy persegue espiões comunistas; Beria vai à caça de espiões capitalistas. A atmosfera é tensa, e as pessoas entreveem um futuro sem precedentes que, diante dos horrores do passado recente, parece acenai' para o progresso ou ameaçar uma catástrofe global.Os Estados Unidos estavam se tomando a superpotência mais destacada, não só na economia, mas também nas ciências em geral - entre elas a antropologia - com mais acadêmicos, mais recursos financeiros para pesquisas, mais revistas e conferên cias do que em qualquer outro país. Na década de 1950 acadêmicos em países como a Noruega ou a Dinamarca, que até então haviam publicado em alemão para chegar a um público internacional, acharam oportuno passar para o inglês.
As crenças racistas do nazismo haviam sido politicamente renegadas, e muitos achavam que já era tempo de abandonar o conceito de raça também na ciência. Mui tos geneticistas e biólogos, embora não todos, concordavam em que diferenças raciais não eram profundas o suficiente para explicar a variação cultural. Praticamente to dos os antropólogos sociais e culturais tiniram essa visão, e realmente sua disciplina assentava-se sobre o pressuposto da “unidade psiquica da humanidade” que os evo- lucionistas haviam introduzido. Quando declarações anti-racistas internacionais co meçaram a ser escritas e assinadas, parecia natural envolver antropólogos na ativida-
de literária. Desse modo, um emigrado inglês para os Estados Unidos, Ashley Mon- tagu (1905-1999), com doutorado pela universidade de Boas, Colúmbia, tornou-se secretário de uma conferência da Unesco sobre raça em 1950. O documento final, “Declaração sobre a raça”, proclamou em termos inequívocos que fatores biológicos eram de importância secundária na formação da personalidade humana. Assim, a perspectiva cultural relativista favorecendo a cultura (nurture) mais do que a nature za (nature) predominava entre a maioria dos antropólogos nos dois lados do Atlânti co e se tomou politicamente influente depois da guerra, de modo especial nas Nações Unidas e em suas organizações.
Os ventos da mudança eram intensamente universalistas: eles proclamavam a unidade da humanidade e direitos humanos iguais. Até onde antropólogos simpatiza vam com essa tendência ideológica - e eram muitos - eles eram ambivalentes. Por um lado, as idéias culturalistas, anti-racistas, promovidas por Montagu numa série de livros populares e influentes eram de modo geral vistas como incontroversas, triviais mesmo. A maioria dos antropólogos provavelmente era também a favor da descolo nização, sem dúvida também um projeto universalista. Por outro lado, antropólogos saturados de relativismo cultural achavam difícil agüentar o zelo missionário injusti ficado aparentemente ligado à nova retórica universalista dos direitos humanos, quer ele emanasse de movimentos anticolonialistas, do Departamento de Estado Ameri cano ou das Nações Unidas. Em 1947 a AAA elaborou uma declaração extensa, pu blicada no American Anthropologist e escrita principalmente por Melville Hersko- vits, que teve o peso de uma advertência contra o imperialismo cultural inerente dc forma ostensiva à incipiente Declaração Universal dos Direitos Humanos (AAA 1947). Essa declaração mostra a posição extremamente forte do programa boasiano na antropologia americana na época (ver R. Wilson 1997).
Pouco tempo depois da guerra, porém, desenvolver-se-ia uma alternativa vigoro sa ao relativismo cultural boasiano e à sua correspondente perspectiva de que a cultu ra era sui generis - seu próprio criador. O débito evidente dessa alternativa para com Marx raras vezes foi reconhecido abertamente, pois ser marxista nos Estados Unidos do pós-guerra estava fora das cogitações de um acadêmico que quisesse obter um contrato definitivo e recursos para pesquisa. Em vez disso, seus inspiradores tendiam a voltar-se para Morgan como pai fundador.
O ano de 1946 pode ser visto como uma porta para um período animado, expan sivo, em que a antropologia então entrava. Esse foi o ano em que os ingleses criaram a Associação de Antropólogos Sociais, o ano em que Evans-Pritchard substituiu Radcliffe-Brown em Oxford e Kroeber afastou-se de Berlceley depois de lá ter ensi nado durante 45 anos, e o ano em que Julian Steward começou a ensinar no antigo de-
5. FORMAS DE MUDANÇA 97
parlamento de Boas em Colúmbia. Embora “a revolução” na disciplina tivesse che gado ao fim e também arotinização talvez tivesse terminado, a mudança estava no vamente no ar. No espaço de alguns anos o programa neo-evolucionista de Steward enfrentaria o boasianismo no próprio território deste, Evans-Pritchard rejeitaria o es trutural-funcionalismo, Gluckman se tomaria professor no departamento recém-cri ado em Manchester, o qual mais tarde ficou conhecido tanto por seu radicalismo po lítico quanto por seu interesse na dinâmica da mudança (um tema raramente tratado no estrutural-funcionalismo), e o monumental livro de Lévi-Strauss sobre o paren tesco, publicado em 1949, mudaria para sempre o discurso antropológico sobre sua instituição favorita.
Embora a antropologia se ramificasse em muitas direções nas décadas posterio res à guerra, ela também se integrou, ainda mais do que antes, graças à continuação - e internacionalização - de debates fundamentais. Diferenças continuaram, mas o co nhecimento mútuo através de fronteiras nacionais também se difundiu mais. As reu niões anuais da AAA aos poucos se transformaram em encontros globais e o contato com as publicações de uns e de outros se tomou natural.
Seria inútil impor uma narrativa linear simples às complexidades das duas déca das seguintes à guerra. Esse foi um período em que os altiplanos da Nova Guiné substituíram a África como lugar mais atraente para jovens pesquisadores de cam po, em que o Caribe e a América Latina foram reconhecidos como regiões etnográficas, em que o estruturalismo se tomou uma força a ser levada em couta, em que a antropo: logia interpretativa fez seu grande avanço e em que foram desenvolvidas novas for mas de análise simbólica, política e econômica.
Neste livro procuramos resolver esse extenso problema dividindo as décadas de 1950 e 1960 em duas partes. Este capítulo, mais longo, trata das teorias e perspecti vas voltadas para o campo da vida social - a esfera da organização e interação social prática, da política e da economia. O próximo capítulo abordará as teorias da comu nicação simbólica e do significado. Ao mesmo tempo em que essa distinção repro duz uma dicotomia possível de debater entre sociedade e cultura, ela também põe em relevo divergências e convergências entre as tradições nacionais em expansão. A an- tropologia americana, que por algum tempo foi quase sinônimo de estudos de “cultu ra” benedict-meadeanos, brotou de um impulso holístico original, de uma definição de “cultura” na linha de Tylor, em que a organização social desempenhou natural mente um papel considerável. Agora esse aspecto tomou a aflorar com os novos ma terialistas. A antropologia francesa, que Durkheim havia definido num sentido am plo, sociológico, chegara por meio de Mauss ao fascinante problema da troca. A tro ca, em geral vista em termos econômicos, pode - com o devido respeito a Mauss -
ser redefinida como comunicação. Com Lévi-Strauss o foco da disciplina se desloca da sociologia para a semiótica. Finalmente, os ingleses, que se fixavam na definição sociológica de seu conteúdo com mais obstinação, uma vez mais importaram uma te oria francesa, como haviam feito anteriormente com Durkheim. Há continuidade e mudança nesses movimentos. As distinções entre as tradições nacionais começam a se tomar indistintas, mas elas não se apagam.