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H ETERÓNIMOS

2. A ACULTURAÇÃO DA CAROCHINHA

Dentre as características físicas da carochinha, algumas delas equívocas, pomos em evidência as contradições que mais implicações têm para o sentido da história em análise.

Em primeiro lugar, verificamos que a carocha está associada ao fogo (inferno, diabo, bruxas, mitras dos condenados, fogão portátil dos funileiros). Porque o fogo é necessário à aplicação do breu, esta associação terá levado a chamar carocha aos barcos minhotos, num duplo processo de extensão, tópica e semântica: da juntura se passa à tábua e ao barco, e do breu à tinta preta. Processo semelhante teria sido usado para chamar carocha aos objectos culinários, assim como ao diabo e às bruxas. Bem andam, por isso, os estudiosos portu- gueses que acentuam o negrume da carochinha, embora nem sempre o façam pelas razões

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J. Leite de VASCONCELLOS, Opúsculos, III, p. 582. Podem citar-se, neste contexto, duas quadras, da colectânea de Leite de VASCONCELLOS (Cancioneiro popular português, I, Coimbra, Universidade, 1975, p. 121) a primeira coligida em Cadaval e a segunda em Alandroal: «Alegra-te, cão carocho,/Que amanhã tens barri- gada:/Já morreu o chibo mocho,/Filho da cabra salgada.//Alegra-te, cão carocho,/Que amanhã tens fartadela:/Já morreu o chibo mocho,/Filho da cabra amarela.» O motivo destas quadras é a fome do cão que, talvez por isso, se chama carocho.

184

J. Leite de VASCONCELLOS, Opúsculos, III, p. 583.

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ID.,op. cit., p. 582. Incidentalmente se nota que a semelhança com os cornos do boi também é referida em textos populares a propósito do gafanhoto. A facécia, referente a um estudante, utiliza algumas frases em latim macarrónico: «viu um gafanhoto e escreveu: Et bos et non bos porque habet cornos como bos et non habet corpum bovis»: F. X. d’Athaíde OLIVEIRA, Contos tradicionais do Algarve, II, Lisboa, Vega, 1989, p. 96.

186

Leite de VASCONCELLOS, op. cit., p. 583.

187

ID.,op. cit., p. 583.

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mais correctas, como quando Teófilo Braga diz que «na linguagem popular, a carocha iden- tificou-se com a velha locução: chupado das carochas ou das bruxas, o que acontece sempre de noite».189

Para ele, pois, a razão de ser do negrume não está na metáfora fenome- nológica mas numa suposta teoria geral que identifica a carocha com a noite, como se referiu. Da mesma maneira, Eduardo Schwalbach, na V77, atribui à Fada da Noite a trans-

formação de Rosalinda em carochinha, «um pequeno animal que à noite pertence», o que parece decorrer directamente das interpretações mitológicas de Teófilo Braga.

Esta dependência das versões de Schwalbach dos escritos deste autor é muito provável. Teófilo Braga incluiu no seu Povo Português, uma versão italiana de Pomigliano, em que uma velha (equivalente da carochinha) acha uma moeda e vai comprar como ela «alvaiade e carmim para pôr na cara» para se pôr à janela. Ora uma das versões longas de Schwalbach diz que a carochinha «raspou cal da parede e serviu-se dela como se fosse pó de arroz; carminou as faces e os beiços com vermelho dos tijolos.»190

E uma rubrica da versão dramática refere que «Vai à chaminé, tira cal da parede, põe-na na cara, passa o dedo pelo pó do tijolo e aplica-o aos beiços.»191

Independentemente de se não compreender muito bem como é que se retira, a não ser numa casa citadina, cal da parede da chaminé – o local do negrume por excelência – a proximidade destes elementos com o conto reportado por T. Braga parece justificar a relação suposta.

Note-se, por outro lado, que a V63, brasileira, fala da baratinha vestida de branco para

se casar: ela «amanheceu um dia toda vestida de branco».192

A razão de ser desta mudança de côr parece provir de uma contaminação a partir da cultura hodierna que manda a todas as noivas que se vistam desta côr. Contudo a ideia, algo estranha em relação ao resto da tra- dição, não é retomada em nenhuma versão portuguesa do corpus. Apenas a V64, também

brasileira, diz que a baratinha «passou pó-de-arroz nas faces», logo depois de ter encon- trado o dinheiro e antes de ir às compras.

Não são, porém, estas aproximações ou os ilogismos de Schwalbach que mais interessam ao nosso argumento, mas sim que o gesto da velha de Pomigliano, as pinturas do rosto e dos lábios dos textos de Schwalbach ou o vestido branco da baratinha são como que extensões dos enfeites prévios ao casamento. Neles se exprime a ideia de que a transformação cultural sofrida pela carochinha aconteceu antes mesmo de a história se iniciar. Pintar os beiços e pôr pó de arroz no rosto ou vestir-se de branco não passam de um requinte de beleza que reforça a ideia de que ela já está aculturada. Ou seja, à imagem da velha de Pomigliano, a carochinha mostra ter desenvolvido uma apetência especial para se conformar com os ditames supremos da apresentação festiva.

189

Teófilo BRAGA, O povo português..., II, p. 315.

190

E. SCHWALBACH, A história..., pp. 44-5.

191

ID.,A história..., Fantasia infantil, p. 49

192

A imagem parece ser comum no Brasil. Gilberto FREIRE, num discurso proferido na Câmara dos Deputados, Federal, Rio de Janeiro, em 17 Julho de 1950, Contra o preconceito de raça no Brasil, faz-se eco dela: «No dia em que o Brasil para se mascarar de branco de neve como nas histórias da carochinha, para se fantasiar de nórdico, para se caiar de ariano, renegasse suas origens mestiças ou a composição mestiça do grosso, do forte, do substancial de sua população e de sua cultura, o Brasil deixaria de ser Nação para amesquinhar-se em subnação» (http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/discur_palest/contra.htm).

Um segundo aspecto, relativo aos conceitos pelos quais o mitógrafo popular afirma a aculturação da carochinha, refere-se à definição dos sentimentos que suscita: o termo carocha, ora tem uma conotação favorável (sobretudo quando empregue no diminutivo), ora provoca repulsa, em razão da sujidade de algumas delas. No entanto, a história da carochinha apenas a mostra amável e desejável. O mitógrafo faz todo o possível por vincar a ideia de que nela nada há do carabídeo instintivo e não cultivado. A natureza voraz deste – e tanto que até come excrementos –, deu lugar a tal comedimento que se não permite degustar uma simples guloseima. Por outro lado, os textos referem, directa ou indirec- tamente, que está altamente preocupada com a limpeza de sua casa e com o arranjo da sua pessoa.193

A carochinha deixou, pois, para trás tudo o que a tornava repelente, de forma a aparece no conto como um ser altamente civilizado. Por um golpe de mágica narrativa, tornou-se um dos seres mais simpáticos do bestiário popular. A metamorfose sofrida é, pois, completa e absoluta.

Mais importante ainda para a compreensão da aculturação sofrida pela carochinha é o facto de praticamente toda a história se passar na cozinha: é nela que, logo no início, encontra o dinheiro que lhe permite casar-se; é nela que se põe à janela, expondo a sua beleza aos olhos dos pretendentes; é nela que prepara o infausto repasto nupcial; é nela que encontra o cadáver do seu bem-amado e o chora; e, após a morte do noivo, é nela que a sua homóloga (a rainha) e o alter-ego do João Ratão (o rei) se encontram para viver o desenlace traumático da história. Numa palavra, do princípio ao fim do conto, tudo o que de importante acontece, acontece na cozinha, quase não sendo referida mais nenhuma outra dependência da casa.194

É, pois, legítimo pensar que tal insistência nem é fortuita nem insignificante.

A cozinha, como lugar ordinário de transformação de cores e sabores, é o mais apro- priado espaço da casa para mostrar o sentido da transformação sofrida pela carochinha e pelo João Ratão. Foi, com efeito, da cozinha que a humanidade fez o primeiro laboratório de experimentação «alquímica» onde a matéria é mudada, cozendo e assando, salgando e adoçando, de forma a revelar, primariamente, a mistura de sabores e, secundariamente, a mistura de sentidos, tal como acontece no simbólico onde se faz uma singular miscelânea de realidades, reais e ideais, possíveis e impossíveis, terrestres e transcendentes.

Por outro lado, é nela que se exprimem as formas originais da vida civilizada. Com efeito, a máxima expressão da sociabilidade está no banquete e a expressão máxima deste é a boda do casamento. Ora é na cozinha que a boda é preparada. Por isso se pode dizer que a cozinha é não só o lugar por excelência da preparação da comida mas também a ocasião e o pretexto da vida familiar e social. E, se assim é, a carochinha é não só a senhora da cozinha e do fogo mas também da vida familiar, já que esta se desenvolve à volta do

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Esta ideia, implícita nas versões que falam da varredela de casa, é claramente expressa em duas versões brasileiras: a baratinha «gostava de tudo muito limpo e arrumado» (V66); e «gostava de manter sua casinha sempre limpa, arrumada e com flores nas janelas» (V67).

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Este modelo de casa é conforme com o de algumas habitações camponesas pobres, onde a cozinha servia de sala de estar, de jantar e de convívio. Note-se ainda que apenas algumas versões recentes referem outros espaços domésticos, como o salão (V60, V62) e o sótão (V67).

alimento, designadamente festivo. Por extensão, pode-se dizer que a carochinha é senhora da sociabilidade. Uma das expressões deste facto está em que ela não é escolhida mas escolhe do seu parceiro de casamento.

O facto de ser senhora da cozinha e do fogo supõe o seu domínio em todos os aspectos, inclusive a possibilidade de o negar ou de o sublimar. No que respeita à negação, o seu domínio poderia ser significado no apagamento do fogo, para logo o reacender. Esta possibilidade não foi, porém, explorada no conto. Mas a sublimação é sugerida: a caro- chinha comporta-se como se fosse senhora de um fogo superior que permite a produção de novos seres. Na história, com efeito, não está apenas em causa a preparação da comida que alimenta o corpo mas também o domínio da cozinha dos sentidos da vida. E também este saber a carochinha o tem, da mesma maneira que a rainha: ambas perseguem com denodo a comida simbólica dos sentidos, perfeitamente determinadas no propósito de procriar.

A conclusão lógica deste conjunto de conceitos é que a principal personagem feminina, desde o primeiro momento em que aparece na história, mostra ter ultrapassado a sua animalidade e que, mais do que o problema imediato da transformação do insecto em mulher, ou da sua hominização, o que parece central na história é o seu percurso para a domesticidade, ou seja, de uma situação determinada pela natureza para outra em que a cultura condiciona a acção. A transformação prévia da carochinha é, pois, uma imagem da própria transformação cultural do homem. Veremos, porém, que ela não está totalmente expressa nesta história, outras havendo que a completam.