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H ETERÓNIMOS

4. A INIMIZADE DA DONINHA E DO RATO

Vale, pois, a pena continuar a pesquisa na tradição greco-romana a respeito das relações entre a doninha, o homem e o rato, tomando como mediador o fabulário portu- guês medieval, por se pensar que, embora a margem de liberdade na formulação seja restrita, nele possa transparecer algo do entendimento que os tradutores fizeram dos textos originais. Na fábula de Esopo transcrita em seguida, a ajuda da doninha não é tida em conta pelo homem, que a classifica de má, maliciosa e enganadora.

T2.3: A donezinha

«Uma donezinha fazia grão dano em casa de um homem bom. Este homem lhe armou um laço e tomou-a. A donezinha, vendo-se em presa, rogava ao homem que lhe não fizesse mal e prometia-lhe de guardar bem toda a sua casa, que os ratos lhe não fizessem dano. O homem lhe respondeu e disse: ‘Tu, toda má, maliciosa, sempre dizes doces palavras e fazes quanto mal podes; quando tu me podias fazer bem não me quiseste fazer e fazias o contrário. Mas, se os ratos me faziam dano duma parte, tu mo fazias da outra muito pior: e em fazendo mal, engordaste com grande

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Para os Hopi, refere Claude LÉVI-STRAUSS (La pensée sauvage, Paris, Plon 1962, pp. 82-3), seria a facilidade que a doninha tem em fazer um buraco de saída no solo, quando perseguida pelo caçador, que associaria ao nascimento das crianças. Sobre na fecundação e do parto pelas narinas do sariguê, cf. Cl. LÉVI- STRAUSS, Mythologiques, I, pp. 179-80.

minha perda. Pero morrerás e serei seguro de ti.’ E ditas as palavras, matou-a.»218

Esta inimizade entre o homem e a doninha não obscurece o contributo que ela dá ao homem em sua casa, tornando-a livre de ratos: «Que causa / Te induz a me maltratar / Se para teu bem sem pausa / Limpo dos ratos teu lar».219

Esta breve quadra põe em evidência a inimizade, mais significativa ainda para o nosso argumento, da doninha e do rato, comum a vários textos, entre os quais o seguinte, setecentista.

T2.4: Uma doninha

«Uma doninha, como de velha e cansada não pudesse já caçar [...] enfarinhava-se toda e punha-se muito queda a um canto da casa. Vinham alguns ratos que cuidando ser outra coisa, chegavam para comer, e ela os comia.» E só um rato velho, «posto de longe» dizendo que lhe conhecia as artes, conseguiu afastar-se.220

A narrativa evoca mais do que uma inimizade: exprime claramente as artes enganosas de que a doninha se serve para caçar as suas presas preferidas. E se alguém pretender que isso nada diz da natureza da doninha mas da sua velhice, deverá atender ao que a sabedoria popular ensina: no fim da vida, apenas se refinam as qualidades e os defeitos das outras idades, voltando-se mesmo a ser menino e aos seus comportamentos instintivos. Quando todas as outras capacidades desapareceram, a doninha, velha e cansada, torna ao seu natural. Não tendo como alimentar-se, usa dos dotes deceptores que lhe permitiram enganar uma deusa, antes de ter a figura de doninha. Pode-se, pois, deduzir dos elementos aduzidos que, no fundo, as relações inamistosas entre a doninha e o homem, por um lado, e entre a doninha e o rato, por outro, são o corolário da capacidade deceptora de que Galantis seria um dos paradigmas míticos.

Alguém dirá que tudo isto, embora aceitável, não explica como e em que medida os traços caracterológicos retidos neste género literário da fábula, passaram para a cultura popular. Duas hipóteses poderão ser formuladas. A primeira, referida noutros contextos, é que esta efabulação teria sido utilizada por eclesiásticos nas suas pregações e que daí passou para as narrativas tradicionais. A segunda, mais fundamentada e racional, supõe uma origem inversa: Esopo teria ido buscar a sua inspiração ao campo simbólico da tradição

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Leite de VASCONCELLOS, «Fabulário português, manuscrito do século XV», Revista Lusitana, 8 (2), 1903-1904, p. 120. Cf. também Vieira de ALMEIDA e Luís de Câmara CASCUDO, Grande fabulário de Portugal e do Brasil, I, Lisboa, Folio, 1961, p. 27 e Teófilo BRAGA,Contos tradicionais... II, p. 276.

219

ALMEIDA e CASCUDO, op. cit., p. 174.

220

Manuel MENDES, Vida e fábulas do insigne fabulador grego Esopo, Lisboa, 1643, cit. em ALMEIDA e CASCUDO, op. cit., 1961, p. 74. Pode-se ainda invocar um paralelo da cultura árabe: uma doninha, durante a noite transportou para o seu buraquinho uma medida quase inteira do melhor sésamo, que se destinava à dieta exclusiva de uma doente. Para afastar de si as suspeitas, a doninha foi ter com o rato e, fingindo ser sua amiga e boa vizinha, disse-lhe para ir retirar o resto que estava na bandeja. O rato «em vez de reflectir e reparar no semblante hipócrita da doninha», «correu pressuroso para o meio da bandeja onde o sésamo luzidio e descascado brilhava. Esfomeado como estava, atafulhou a boca. Mas naquele mesmo momento, a mulher [que descascava o sésamo] saiu de trás da porta e, com um pau, partiu a cabeça ao rato», pagando este o mal feito por outrem (cf. As mil e uma noites, I, trad. do francês de Manuel João Gomes, Lisboa, Temas e Debates, 1996, pp. 651-2).

popular onde estas e muitas outras imagens estavam disponíveis. Se o fez, apenas seguiu o exemplo de Homero que também se serviu de lendas antigas para escrever a Ilíada e a Odisseia, como é geralmente admitido,221

para já não falar dos textos bíblicos, onde são usadas fontes orais muito diversas.

Do que não parece haver dúvidas é de que, à imagem destes exemplos clássicos, muitos efabuladores e mitógrafos, antigos e modernos, têm vindo a repetir e reelaborar os mais diversos conceitos, vindos de vários contextos. Uma longa sucessão de imagens e crenças tem encontrado eco nas obras de intelectuais e artistas, sem que se saiba da sua origem. No que diz directamente respeito ao nosso tema pode-se ler, por exemplo, em Leonardo da Vinci que a doninha «quando caça ratos, come primeiro arruda».222

Não sabemos, com efeito, em que tradição o autor se fundamentou para fazer tal afirmação. Como também não encontramos a proveniência da seguinte fábula, referida pelo mesmo Leonardo, sobre a inimizade figadal entre o rato, a doninha e o gato:

T2.5. O rato, a doninha e o gato

«Estava o rato assediado na sua pequena habitação pela doninha, a qual com contínua vigilância esperava a sua morte, e por uma pequena greta espreitava o seu grande perigo. Entretanto veio o gato, que logo caçou a doninha e imediatamente a devorou. Então o rato, fazendo sacrifício a Júpiter de todas as suas avelãs, agradeceu muito à sua divindade; e saiu da sua toca para possuir a sua liberdade antes perdida, da qual logo foi privado, juntamente com a vida, pelas ferozes unhas e dentes do gato.»223

Sintetizando os elementos que interessam ao nosso argumento e se encontram nas fábulas antes comentadas, identificamos dois atributos principias da doninha: o ser decep- tora e inimiga do rato. Ora a história da tradição portuguesa nada tem a ver com estas características. Em primeiro lugar, quanto às atitudes deceptoras, verificamos que a doninha se expõe à janela e nada esconde: patenteia a porta que levava ao interior de sua habitação e, simbolicamente, de si mesma. Não é por engano que casa com o rato. E também não o engana depois de casada. Tal como a carochinha de quem se não distingue em termos de atitudes e comportamentos, a doninha não age segundo a sua natureza mas segundo os ditames que a sociabilidade inculca. Pode-se, pois, dizer – e esta é a conclusão que mais nos interessa – que a doninha aparece na história como um ser totalmente acul- turado. O segundo aspecto da natureza da doninha – o ser carniceira e inimiga do rato – também não se encontra na história em estudo. Ao contrário do que o instinto lhe impu- nha – comer o rato – a doninha casa com o inimigo, o que reforça a ideia da sua plena aculturação.

Parece, pois, legítimo concluir que a doninha não é menos apta do que a carochinha para desempenhar as funções essenciais do conto; pelo contrário. Estando ambas

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Cf. Frederico LOURENÇO, «Introdução», in HOMERO, Odisseia, trad. de Frederico Lourenço, Lisboa, Cotovia, 2004, p. 12, e ID., «Introdução», in HOMERO, Illíada, trad. de Frederico Lourenço, Lisboa, Cotovia, 2005, p. 9.

222

Leonardo DA VINCI, Bestiário... op. cit., p. 36. Cf. original em http://www.letteraturaitaliana.net/- pdf/Volume_3/t57.pdf, p. 25.

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plenamente aculturadas, a semelhança visual entre o rato e a doninha, associada à inimizade figadal entre ambos, reforça o carácter extraordinário do seu casamento com aquele animal. Mas a caminhada cultural da doninha é certamente mais longa do que a da carochinha para ter chegado onde a história a coloca.

Estes elementos e deduções levam, por outro lado, a perguntar se a introdução da doninha neste núcleo de histórias não decorre de uma exigência do simbólico: explorar todas as possibilidades relacionais e lógicas entre as coisas, sejam ou não imagens da realidade; ou se o mito e o conto não são formas de investigação das possibilidades de concretização do ser a que o demiurgo se teria entregue antes de fixar as regras relacionais nos seres que criou. A resposta a estas questões é afirmativa: as narrativas populares exerci- tam a capacidade humana de descobrir o sentido do mundo aventando todas as possibili- dades e tirando conclusões acerca dos seus resultados. Neste sentido se entende o paradoxo de Fernando Pessoa ao dizer, no início do seu poema «Ulisses»: “O mito é o nada que é tudo.»224