• Nenhum resultado encontrado

O número e natureza dos pretendentes ao casamento com a carochinha é muito variável. A maior parte das versões nomeia entre um e cinco animais. Algumas, raras,283

não indicam mais nenhum além do rato; e outras referem ter havido vários pretendentes, sem especificar nenhum.284

A questão do número não é, porém, significativa, já que ele depende de uma escolha mais ou menos ocasional, como na canção a ‘Loja do Mestre André’, onde vão sendo juntos instrumentos em função de objectivos lúdicos próprios. No entanto a enumeração de um grande número não é insignificante, pois mostra que, sendo tantos e tão bons os rejeitados, o escolhido é necessariamente excelente. Nesta lógica, os elencos longos vincam melhor a bondade da escolha final.

As menções feitas têm, porém, um interesse que ultrapassa a função narrativa. O elenco e a frequência dos animais chamados a representar um papel dentro da história deli- neiam a imagem que os contistas faziam do mundo da sua experiência imediata. Assim, tomando as primeiras 63 versões do corpus,285

notamos que vem em primeiro lugar o cão (55), e depois o gato (40), o burro (38), o boi (22), o porco (21), e o galo (11).286

Estes resultados eram em certa medida previsíveis: os contadores foram buscar à quintã da casa rural os possíveis noivos da «domesticada» carochinha. Por isso é que quase todos os animais são de estimação ou úteis, mais dos primeiros do que dos segundos.

O elenco não é, porém, obrigatório: outros contadores, outro corpus, poderiam tê-lo organizado diferentemente, como de facto aconteceu no Brasil, onde as versões V64 e V65

dão uma imagem diferente dos pretendentes da baratinha. Na primeira, os animais rejeitados são o boi, o burro, o cavalo, o cachorro, o gato, o bode, o galo, o carneiro, o macaco, a onça, a anta, a capivara, o gambá e «muitos e muitos bichos»; e na V65 aparecem

o cão, o elefante, a pantera, o rinoceronte, o leão, o papagaio, a onça, o tigre, o urso, o cavalo, o galo, o touro, o bode, o lobo e, segundo diz o texto, «nem sei quantos mais». Em ambas são, pois, acrescentados a um ainda reconhecível fundo «primitivo» de origem possi- velmente portuguesa, vários animais selvagens só conhecidos dos efabuladores brasileiros. Na origem, porém, como se deduz da V63, com a mesma proveniência, apenas haveria

animais caseiros e da basse-court: o boi, o cão e o gato. As V64 e V65 resultariam, pois, de

adaptações recentes, elaboradas por intelectuais e por contadores menos atentos à tradição e ao contexto em que a história foi criada.

Em Portugal quase só há animais relacionados com a casa. As excepções, como se anotou, são o grilo, o lobo, o urso, o elefante e o sapo. Nas demais versões são evitados quer os animais demasiado domésticos quer os demasiado selvagens, como se a similari- dade total criasse ruído na percepção do significado e a alteridade completa fosse dema- siada expressiva, colocando a acção fora do referencial adequado. De facto, a impressão

283

Trata-se das V41 e V65, a primeira originária de Palmela e a última do Brasil. Uma outra versão, V50, que também não refere nenhum animal, é um caso à parte, pois está reduzida a dois motivos apenas.

284

V24, V28, V32, V35, V44, V49, V56.

285

Não entram nesta contabilidade as demais versões porque são, a vários títulos, atípicas.

286

Os animais domésticos menos mencionados são: o cavalo (5) o carneiro (4), o pato (4), o bode (2) o coelho (2) o cabrito (1), o pavão (1). As versões que mencionam animais não domésticos são as seguintes: o grilo (V23), o sapo (V51), o lobo (V15), o urso (V47), o elefante (V54 e V76).

que se tira da análise categorial dos animais mencionados é que os pretendentes foram escolhidos em função de uma limitada diferenciação visual e de uma aparente proximidade comportamental com a carochinha. Assim, o princípio de que o casamento é uma união de seres ontologicamente idênticos, não funciona nesta história porque ela tem como intenção mostrar a inviabilidade da associação matrimonial entre animais de espécies diferentes, que partilham do mesmo espaço vivencial.

Destas cinco excepções destacamos o grilo e o lobo, o primeiro porque especifica os princípios acima referidos e o segundo por, além disso, se encontrar numa versão antiga. Deixamos, assim, de lado os outros animais selvagens (o urso, elefante e sapo) por serem mencionados apenas em versões muito recentes, quando os contadores, como nas versões brasileiras, ou não dominavam as leis que presidiram à primitiva feitura da história, ou se não submeteram aos seus ditames.

Uma das razões para que apenas uma versão mencione a pretensão do grilo de casar com a carochinha estaria em que a semelhança visual entre ambos prejudicaria a percepção das diferenças determinantes da não escolha desses animais. De facto, a inviabilidade da relação entre a carochinha e os seus pretendentes é percebida mais facilmente quando a dissemelhança (ontológica, morfológica ou atitudinal) é mais notória. Ora tanto física como comportamentalmente o grilo e a carochinha são semelhantes. O habitat preferido por ambos é o mesmo, a casa e a cozinha. Por outro lado, segundo uma crença bastante comum, atestada em diversas localidades, o grilo que canta na lareira anuncia fortuna e felicidade,287

o que aliás concorda com a significado da expressão «ter grilo em casa», que equivale a ter sorte.288

Em consonância com isto, nas feiras da Lixa e de Penafiel vendiam-se «há anos, uns canudos dentro dos quais estava um grilo. Se alguém metesse o dedo mínimo num dos orifícios do canudo e deixasse que o grilo lhe chuchasse uma gota de sangue, ficava rico.»289

Neste entendimento, a atitude de carinho que o povo tem para com este animal estaria justificada nestas crenças que associam o grilo com a felicidade e a riqueza. E algumas destas associações também se aplicam à carochinha.

A razão da reduzida menção do lobo é possivelmente oposta a esta. Mencionado apenas numa versão (V15), de recolha antiga, o lobo requesta a formiga. Ora a formiga

também só é mencionada nesta V15 e na V35, também de origem alentejana. Mas é frequente

na tradição espanhola (Cap. 6.6). Por outro lado, não se deve esquecer o que se viu no Cap. 2 acerca da formiga rabiga que tanto mata a cabra-cabrês (uma cabra «toda cabra», selvagem no seu comportamento), como o lobo, deixando-o morto na casa que ele selvaticamente tinha ocupado (T2.7-T2.9).

287

Mário F. LAGES, loc. cit. Cf. ainda Leite deVASCONCELLOS, Tradições populares..., p. 169. A mesma ideia é registada em Gondomar onde o grilo que canta na cozinha é sinal de dinheiro a receber (Camilo de OLIVEIRA, O concelho de Gondomar..., IV, p. 347). Refere-se ainda que, segundo Hans Christian ANDERSEN

(«The Story of My Life», in suo The Complete Works of Hans Christian Andersen, London, Routledge & Sons, 1889, p. 724), o grilo teria a capacidade taumatúrgica de trazer os mortos à vida. O grilo que toda a noite cantou, junto do cadáver do pai do contista, foi assim interpelado pela mãe de Andersen: «Ele está morto [...] não o deves chamar, a Menina do Gelo já o levou.»

288

Consiglieri PEDROSO, «Tradições populares portuguezas», O Positivismo, 3, 1881, pp. 327-8 (1988, p. 211).

289

A menção do lobo e da formiga na V15 resulta possivelmente da utilização de uma

estratégia de significação que passa por mostrar a total inviabilidade das relações entre a formiga semi-aculturada e o lobo selvagem, ao mesmo tempo que desloca um pouco mais a diferenciação para o lado da selvajaria de ambos. Na verdade, de todos os heterónimos usados na tradição portuguesa, a formiga é a que menos distante está do lobo em termos da não-domesticidade. Entre eles mantém-se, porém, em termos de aculturação, a distância que basta a tornar claro que o casamento entre ambos era inviável. De facto, o lobo é o ser selvático por excelência, o epítome da máxima diferença ôntica e comportamental para com o insecto com que pretende casar-se. Sempre esfomeado, inábil e fácil objecto dos enganos da raposa esperta e matreira (que, por ex., come sozinha o carneiro caçado e enterrado por ambos290

), nada nele é caseiro e doméstico. Se, pois, fosse utilizado mais frequentemente ficaria em causa a preferência do mitógrafo por animais que já tivessem iniciado um processo de domesticação. Mas, não obstante esta preferência, a tradição portuguesa poderia admitir o lobo entre os pretendentes. E, a haver tal personagem na história, devia aparecer juntamente com a formiga, em razão do que acontece nos T2.7-T2.9.

Um outro aspecto a pôr em evidência é a importância metodológica das observações feitas, delas se deduzindo que o sentido não está apenas nas funções, nos motivos ou nas estruturas narrativas mas também em todos os elementos que mostram como os actores são arrolados para a produção do significado. De facto, embora se não aceite a tese de que o conto reproduz a realidade ao ponto de nele poder ser entrevista a evolução das sociedades,291

não se pode deixar de dizer que está nele reflectida como que numa pintura em que vários artistas fossem lançando imagens e cores, segundo procedimentos que, compondo uma narrativa, constroem imageticamente a casa simbólica do «mundo», no sentido que lhe deu por Wittgenstein, segundo a epígrafe utilizada neste trabalho.

Daqui resulta que mal avisado andaria quem, procurando invariâncias estruturais nos contos, se esquecesse de que, ao utilizar códigos não imediatamente identificáveis, neles há recantos em que a lógica nem sempre funciona claramente. Se, pois, a quase totalidade dos animais preteridos na tradição portuguesa são domésticos ou úteis, e se, no conjunto, as frequências com que aparecem reproduzem uma domesticidade sobredeterminada afecti- vamente, é legítimo pensar que a realidade, para ali transposta paradigmaticamente, só pode ser reconstruída a partir da totalidade das versões, o que remete para algumas das observações metodológicas feitas na Prólogo e para o trabalho de contextualização remota ali enunciado.