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A oposição {comer / vestir}

6. O RETORNO DAS P ARCAS

Quando se passa do âmbito transcendental para o da simbolização das relações humanas e dos papéis sociais próprios dos contos populares, as referências míticas ficam frequentemente reduzidas a simples factos anedóticos, onde as relações com os modelos donde provieram dificilmente se entrevêem. Em muitos deles, com efeito, os constructos simbólicos parecem ter apenas como função consagrar as hierarquias entre grupos e justificar as normas que permitem à sociedade organizar-se. Assim, a transformação do mito em conto implica a substituição dos modelos transcendentais – relativos à relação entre todos os aspectos do mundo sensível com o invisível – por outros de âmbito psicossociológico, cujo referencial é delimitado pelas experiências quotidianas, mais ou menos paradigmatizadas. Mas a simples verificação de que mesmo em ambiente dessorado são mantidos um ou mais esquemas conceptuais que figuravam em textos de espectro simbólico mais amplo é, só por si, um resultado importante, já que nisso se pode ver a relevância dos esquemas que lhes são comuns.

No sentido de examinar em que medida as categorias {comer / vestir} e a sua contextualização são expressas nos textos empobrecidos, tomamos quatro narrativas: duas anedotas colhidas no Alentejo e dois contos, um retirado da colectânea de Consiglieri Pedroso e o outro da tradição flamenga. As anedotas exemplificam o depauperamento do significado das funções femininas ligadas à produção dos bens de vestuário, necessários à vida familiar. São apresentadas em seguida em versão quase integral.

T3.8: Março, marçagão

«Um homem pobre mas trabalhador casou, por sua desgraça, com uma mulher preguiçosa. Cada vez que o homem vinha para casa perguntava: ‘Ó mulher, o que fizeste?’ ‘Fiei todo o santíssimo dia’, respondia ela, por conselhos da mãe. O marido ficava calado. Passado tempo, diz-lhe a mãe: ‘Ó filha, é preciso, para teu marido não desconfiar que não tens feito nada, que vamos ao ribeiro fingir que lavamos e coramos as meadas.’ Assim fizeram e, para enganar mais o marido, levaram uns cestos com uns bocados de esteirões e muito que comer e que beber. Assim que chegaram

ao ribeiro prantaram-se de suciata a comer e a beber e prantaram os esteirões ao sol. (Era em Março.) O marido, que já andava desconfiado da tramóia, foi espreitar. Assim que viu aquele embrechado, envolve-se num lençol e desata à pazada à mulher, dizendo com fala de Medo: ‘Eu sou Março, Marçagão, / Curo meadas, esteiras não.’ A mulher veio derreada para casa e, dizendo-lhe o marido: ‘O que tinha?’, ela contou-lhe o caso. Vai ele disse-lhe: ‘Pois, olha, mulher, faz o que o Março te disse.’ Ela assim fez, trabalhou sempre daí para diante.»346

T3.9: Uma mulher preguiçosa

«Era duma vez uma mulher muito preguiçosa e levou-lhe o marido para casa linho para fiar. De dia não fazia nada e à noite, quando o marido chegava, punha-se com a roca a fazer que fiava e dizia para o marido: ‘Maçarocas ò caniço, / Marido, já lá vão cinco.’ Ao fim dum ano perguntou o marido se tinha o linho fiado. Tinha apenas uma maçaroca. E depois ele mandou-lhe que deitasse para dentro de uma tarefa o que ela obrasse durante um mês. No fim do mês põe a tarefa num carro e a maçaroca espetada num fueiro e a mulher assentada dentro do carro e foi pelas ruas da cidade apregoando: ‘Ora aqui têm senhores, / O que a minha mulher fez: / O fiado dum ano / E o ca…. dum mês.’»347

Estes textos completam-se, seja na qualificação da preguiça da esposa, seja nos castigos de seus actos. O mais interessante é, porém, que a actividade das personagens femininas se resume a comer e beber, com prejuízo de tudo o que tem a ver com a produção de vestuário. O primeiro conto di-lo explicitamente ao referir as comezainas que a mulher faz com sua mãe quando se supunha estarem a lavar meadas; o segundo fá-lo implicitamente ao mostrar ao povo a muita caca que ela fez num só mês em comparação com a única maçaroca que fiou ao longo de um ano. O quadro de referências dos textos – a oposição {comer / vestir} – é, pois, desenhado com traços e cores substancialmente semelhantes, embora a função cauterizadora de cada um seja diferenciada: castigo corporal na primeira e reprovação social na segunda.

Mas comparando estes mesmos T3.8 e T3.9 com o T3.7, notamos que eliminam

completamente o contexto mítico deste último – nem referem a caverna e o fogo nem fazem a sua representação transcendental – e dão ao comer e ao vestir a função de simples códigos comportamentais definidores da incapacidade das donas de casa preguiçosas em assumir os papéis que lhes são próprios. Assim, os símbolos que no T3.7 eram como que o

«corpo do mito» estão reduzidos, nos dois textos acima, a uma pura dimensão de regulação dos comportamentos sociais. As monjas, fiandeiras da vida, são substituídas por donas de casa que nem sequer são capazes de fiar o que é necessário para o vestuário próprio e da família.

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A. Thomaz PIRES, Contos populares..., pp. 49-50.

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ID, op. cit., pp. 174-5. Conto semelhante é atestado em Foz Côa. A mulher teria fiado doze maçarocas ao longo do ano. O homem espetou-as nas pontas dos estadulhos, dizendo à mulher para fazer as suas necessidades no carro. Depois de cheio, deu a volta à vila dizendo: «Quem quer ver o que a minha mulher fez? Fiança de um ano e cagança de um mês!» Cf. Leite deVASCONCELLOS, Contos populares..., II, p. 63.

Passando às implicações desta análise para o nosso argumento vemos que a história da carochinha ocupa um lugar intermédio ente o mito do T3.7 e os retratos anedóticos das

mulheres do T3.8 e do T3.9. Enquanto nela são expressas as consequências extremas do

comer indevido – a morte do João Ratão – nos dois últimos textos estão degradadas a ponto de apenas se falar, para delitos semelhantes, em leves sanções de cargas de pancada ou do vitupério público. E se é certo que tais castigos podem ser entendidos como formas eufemizadas de morte (física, no primeiro caso, e social no segundo), também não oferece dúvida que não correspondem a faltas com implicações na própria produção da vida. Não obstante, os casais das duas anedotas não têm filhos. E o facto não releva certamente do esquecimento do mitógrafo mas de uma omissão intencional.

Tais diferenças não põem em causa a comunalidade simbólica de todos estes textos; ao contrário, confirmam-na. De facto, nem sequer falta num deles a referência escatológica do final da história da carochinha. Mas se tanto o T3.8 comoo T3.9 aparentam constituir, em

primeira análise, simples comentários contísticos à distribuição dos papéis sexuais na unidade económica criada pelo casamento, na verdade estão na mesma linha de produção simbólica do T3.7 e da história da carochinha. Aliás, o excesso do ridículo que as histórias

transmitem, é tão demonstrativo, por défice, da importância do fiar e tecer, como o são, por superavit, as atitudes das deusas e das ninfas dos textos homéricos. Por isso é que quando a mulher, sobretudo a casada, não reproduz tais gestos, provoca gargalhadas tão monumentais como as que certamente se ouviram quando o povo viu uma mulher a ser passeada pelas ruas da cidade, sentada na sua própria caca, a olhar para a única maçaroca fiada durante um ano e enfiada no estadulho do carro do seu marido.

Estas observações sobre a forma diferenciada como os textos em exame imple- mentam as categorias do comer e do vestir apontam para que a sua unificação substancial e transcendente – {comer = vestir} – feita no T3.7, se degrada, por um processo de diferen-

ciação e polarização, nas personagens dos T3.8 e T3.9, as quais se regem pela fórmula {comer

/ vestir}. Esta degradação decorreria da necessidade de operacionalização do mito em regras de conduta.

A diferenciação operada nestes contos não é, porém, a última etapa da racionalização a que a tradição popular procedeu, pois ainda usa símbolos para significar os compor- tamentos considerados culturalmente desejáveis. No entanto a simbolização desaparece quase por inteiro nos provérbios onde apenas se exprime a normatividade social. Mas isso não impede que possam ser utilizados alguns ditados na demonstração de que os conceitos encontrados nos exemplos gregos continuam a definir traços importantes da nossa cultura. Pelo contrário: a existência de adágios que se conformem com o que se deduziu dos contextos mítico e contístico comprovaria quase plenamente a análise feita.

Ora acontece que dois anexins portugueses explicitam o acto de fiar como atributo por excelência da boa dona de casa. O primeiro refere-se aos papéis sociais do homem e da mulher: «Enquanto o marido cavar, deve a mulher fiar». O segundo atribui à mulher a mesma função pela óbvia imagem da roca: «Mal vai a casa onde a roca manda mais do que a espada».348

Tão próximos são estes conceitos dos desenvolvidos na Odisseia que quase

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parece que o povo português estava a repetir o que ouvira a Homero acerca dos seus heróis e heroínas, sobretudo se tivermos em conta que as funções masculinas presentes nestes provérbios correspondem às de Laertes e de seu filho Ulisses na epopeia, o primeiro dedicando-se à agricultura e segundo a lutar com sua espada, em Tróia, durante 10 anos.

Mas não é necessário ir tão longe: basta olhar para as funções mais comuns de homens e mulheres da sociedade tradicional onde os provérbios foram sendo fixados. De facto, o primeiro remete para um contexto rural onde ao homem cabe o amanho da terra e à mulher, o cuidado da casa, epitomado no fiar. O segundo aponta para um contexto urbano e guerreiro e acrescenta ao anterior a ideia da subalternidade da mulher no casal, como se ela fosse própria de famílias de militares. Mas mesmo que não se possa atribuir esta nota apenas a este grupo profissional, a ideia de que a mulher está sujeita ao homem é claramente expressa, ao arrepio do que está suposto, tanto no primeiro dos provérbios citados como nos textos comentados mais acima.

Esta constatação coloca a questão de saber qual o papel da realidade sociológica na definição dos modelos etnográficos, obviamente ampla demais para ser solucionada aqui. Mas não deixamos de notar que essa influência, no que respeita aos contos, mesmo anedóticos, é apenas reflexa, tudo neles estando sujeito às regras de elaboração simbólica. Os provérbios, por seu lado, não passam de traslados do que acontece no dia-a-dia para o âmbito dos paradigmas éticos e morais, ou dos esquemas genéricos de compreensão do mundo sensível. Os adágios seriam, pois, o limite para que tende a racionalização do mito, resultado este a todos os títulos interessante, pois mostra que as produções populares têm graus diferentes de incorporação simbólica.

Os dois textos apresentados em seguida em versão sintetizada, o primeiro português e o outro flamengo, estão muito para além do contexto anedótico ou sociológico das narrativas que acabamos de comentar. Neles se retorna, com efeito, ao contexto mítico do conto da bicha das sete cabeças, embora de forma à primeira vista deslavada e quase irreconhecível.

T3.10: As tias

Uma velha tinha uma neta que, estando um dia à janela, agradou ao rei. Este bateu à porta para ver a menina. A avó disse ao rei que a neta era capaz de fazer uma camisa que passava pelo fundo de uma agulha. Foi feita a camisa por uma mulher que ali apareceu, prometendo-lhe a rapariga que lhe chamaria tia no dia do casamento. O rei ainda quis mais provas das qualidades da menina e a velha disse que ela era capaz de ouvir o que se dizia a três léguas de distância. A neta, com a ajuda de outra ‘tia’, reproduziu o que o rei tinha dito durante uma caçada. A última prova foi fiar uma meada de linho em meia hora, no que foi ajudada por outra ‘tia’. No dia do casamento aparecem estas, a primeira com os olhos muito grandes, a segunda com os ouvidos enormes e a terceira com os braços desmesurados. O rei nunca mais exigiu estes trabalhos à rainha.349

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T3.11: A fiandeira das urtigas

O conde Buchard, de alcunha o Lobo, mau e cruel, enamora-se de uma fiandeira, Renelde, a quem quer levar para o seu palácio. Ela recusa, porque tem de cuidar de sua avó. Para casar com o noivo, Renelde pede autorização ao conde, o qual lhe diz: «Vês as urtigas que crescem nas campas do cemitério? Vai e colhe-as e fia-as para duas camisas. Uma será a teu vestido de casamento e a outra a minha mortalha. Só te casarás no dia em que eu for sepultado.» Renelde pôs-se ao trabalho e das urtigas retirou um «bom fio, macio, leve e firme» e com ele fez o seu vestido de casamento. Depois começou a fiar a mortalha e, à medida que ia avançando, o Conde adoecia. Mas não lhe permitia casar-se. A mulher do conde pediu a Renelde que parasse de fiar a mortalha. Ela consentiu e durante um ano não fiou. Mas o conde ficou ainda mais doente, sofrendo horrivelmente. Lembrou-se então «do que tinha dito à fiandeira há muito tempo. Se a morte demorava tanto a chegar era porque ele não estava preparado para morrer, não tendo mortalha para o funeral. Mandou vir Renelde, pô-la à beira da cama e ordenou-lhe que tecesse a sua mortalha. Mal a fiandeira começou o trabalho, o conde começou a sentir menos dores. Por fim o seu coração enterneceu-se e pediu a Renelde que lhe perdoasse. Ela continuou a fiar noite e dia. Depois teceu a mortalha. E «enquanto cozia, as dores do Conde diminuíam e sentia a vida a esvair-se. E quando a agulha deu o último ponto, deu ele o último suspiro.» Oito dias depois Renelde casou com o seu noivo.350

Uma primeira observação diz respeito a que estes textos têm um pano de fundo semelhante: tanto as tias do T3.10 como Renelde são personificações veladas das monjas

fiandeiras. Neles se retorna ao contexto mítico das Parcas, apenas insinuado no texto português e em plena floração no texto deuliniano. Em T3.10, com efeito, as acções míticas

são substitutivas, fazendo as tias o que é atribuído à neta. Toda a acção é deceptora. Em

T3.11, ao invés, Renelde é como uma parca que fia tanto a sua felicidade como a morte do

seu inimigo e senhor, o conde. O vestido de casamento é o inverso da mortalha deste, o primeiro sendo indício de vida e o segundo de morte.

Mas os dois contos coincidem em que os fios utilizados se destinam a fabricar camisas especiais; e em que não fazem referência ao comer, como se o fiar fosse suficiente para definir a dimensão mítica das histórias. Por outro lado, a feitura da camisa que, no

T3.10,351 passa por fundo de uma agulha, remete para a esfera dos seres transcendentes. No T3.11, pelo contrário, é uma simples mortal que tanto fia a sua felicidade como a morte

alheia. Neste aspecto, este texto opõe-se diametralmente ao conto da bicha das sete cabeças onde o destino é uma dádiva das Monjas-Parcas. Assim a história de Renelde, que coloca a questão metafísica do controle da existência por parte de outrem, mostra que este domínio

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Andrew LANG, The Red Fairy Book, New York, Dover, 1966, pp. 286-93. O texto acima foi escrito por Ch. Deulin, possivelmente com base numa tradição flamenga. O original é extremamente prolixo, não nos sendo possível dizer até que ponto as figuras e as suas acções resultam da inventiva do autor. No entanto, quer tenha origem tradicional, quer resultem da imaginação de Ch. Deulin, os seus elementos correspondem a estruturas simbólicas tradicionais. Por isso é utilizado aqui.

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Não se teoriza a capacidade de uma das tias de ouvir à distância por ser exterior ao contexto em que o conto é aqui colocado.

depende da capacidade humana de fiar fio doce ao tacto com fibras de origem urticante, transpondo o acto divino que define o destino dos homens para a aceitação da sua própria condição mediante o sofrimento redentor.

Entre o T3.10 e o T3.11, por outro lado, há uma diferença importante: o primeiro

estabelece apenas a relação {fiar  tecer  casar} enquanto que o segundo acrescenta

explicitamente uma dialéctica ao terceiro termo da sequência: {fiar  tecer  casar  vida

/ morte}. Por isso se situa no contexto simbólico da história da carochinha onde a morte está associada à geração ou ao casamento sob a forma de {enfeites  casar  vida / mor-

te}. A diferença está em que numa destas histórias a mediação entre o amor e a morte é feita pelo comer e no T3.11 o mesmo efeito é obtido pelo fiar, que precede o vestir.

Tendo, pois, as duas histórias o mesmo enquadramento simbólico, utilizam-no de forma diversa para significar tanto as escolhas dos seres e o sucesso destas escolhas, como as suas relações com o transcendente e os efeitos das ajudas transcendentais, bem como o casamento, a procriação, a vida e a morte, etc. Colocados em planos de sentido entre- cruzados em função de intenções simbólicas específicas, os seus nexos ontológicos, lógicos, temporais, locais, atitudinais e comportamentais exprimem-se de forma semelhante em imagens, ideias e símbolos relacionados com {fiar | tecer | vestuário | enfeites | casa- mento | procriação | vida | morte}. A diferença está em que estes núcleos não têm os mesmos enquadramentos, sequências, paralelos e oposições.

Para terminar, voltamos à função racionalizante dos provérbios dizendo que a sequência {fiar  casar  procriar (vida)} tem neles uma expressão reduzida e pessimista.

A tradição refere, com efeito, a seguinte expressão: «Mãe, que é casar? Filha é fiar, parir e chorar.»352

E se a pergunta tivesse sido feita à mãe da carochinha e ela soubesse o que aconteceria à filha, ainda mais pessimista seria, ao eliminar o segundo termo – parir – da resposta. Para ela o casamento resumiu-se a enfeitar-se e a chorar, nenhum filho tendo surgido deste casamento infeliz. Esta é a especificidade da nossa história. E porque a carochinha se distancia das mulheres retratadas no adágio, mais interessante é a paradi- gmatização a que a sua história procede.

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Maria de SousaCARRUSCA, Vozes da sabedoria, I, p. 178. A expressão – fiar, parir, chorar – para definir o casamento, também é atestada por Alves REDOL, Cancioneiro do Ribatejo, V. F. Xira, Empresa Técnica Tipográfica, 1952, p. 25. Note-se ainda que Teófilo BRAGA (O povo português..., II, p. 259) referindo a mesma tradição, inverte a sequência e diz «chorar, parir e fiar». Não há, porém dúvida de que a correcta sequência é a do provérbio citado no texto.