• Nenhum resultado encontrado

H ETERÓNIMOS

6. D O LIXO À FORTUNA

Feito o estudo das características das personagens femininas da nossa história, convirá prosseguir com o enquadramento etnográfico da situação inicial: a carochinha «andava a varrer a casa e achou e achou cinco reis» (V1), ou como dizem, entre outras, as V2

e V4, ao varrer a cozinha, expressões estas repetidas, ipsis verbis ou palavras equivalentes, por

varredura e o dinheiro encontrado, num montante que é expresso em diversas moedas,241

em geral, baixo, numa demonstração de que o pensamento popular se não preocupa com a sua adequação à situação e ao tempo em que o conto é contado. O conceito, aliás, consta explicitamente da V32 que diz: «e como nestas histórias a inflação não existe, pôde comprar

uma série de enfeites».

Estes factos levam a fazer três observações prévias ao tratamento da questão enunciada no título desta partição. A primeira é que no reino do «faz de conta» as contradições convivem em grande paz expressiva. Assim, na mesma época em que, em Coimbra, a carochinha aparece a «comprar muitas fitas, rendas, flores, braceletes de ouro e brincos» com cinco réis (V1), a alface repolhuda em que Brancaflor se transforma vale vinte

réis.242

E não vale aligeirar a incongruência dizendo que estes dois textos foram contados por narradores diferentes ou sugerindo que, ao ser pedido tão alto preço pela alface, se pretendia impedir a sua compra, já que nem o rei, seu pai, olharia a meios para reaver Brancaflor, nem a quantia era incomportável para qualquer erário real.

Desta observação decorre uma outra: não é possível deduzir a época da criação da história a partir do quantitativo necessário às compras que a carochinha faz. As narrativas populares, só vão buscar ao tempo e às suas imposições o que é necessário ao agencia- mento da narrativa. As leis da oferta e da procura não pertencem, pois, ao mundo de preocupação do mitógrafo popular, insensível como é a precisões de natureza económica, histórica, local ou outra. Assim, o valor da moeda pode ser alterado ou retido segundo o fantasia do contador sem que se lhe mude a função. Mencionar um quantitativo apenas serve para pôr em evidência o carácter da carochinha, decorrente da sua natureza aculturada. Os seres, no conto, não têm preço, peso ou medida. Um grão de areia, uma flor, um astro têm idêntico valor, porque são conceitos intermutáveis, consoante o contexto e a intenção do conto.

A terceira observação refere-se ao lugar e ocasião em que foi encontrado o dinheiro. A análise mostra que a cozinha é mencionada em 33 versões,243

enquanto que a casa, generi- camente tomada, aparece em 23.244

Nas demais versões são ocasionalmente mencionados outros locais dentro e fora da habitação.245

Os dados parecem, pois, indicar que a cozinha é o lugar paradigmático de toda a varredela. E não é apenas na história da carochinha que aparece em tal destaque. Numa parlenda infantil também se diz: «Varre, varre, vassourinha

241

Cinco réis (V1, V2, V4, V5, V7, V8, V11, V12, V15, V17, V22, V26, V29, V30, V32-V34, V36- V38, V40, V43, V52, V56, V59, V74-V77); dez réis (V39, V41); um tostão (V35, V64); cinco tostões (V9, V10, V16, V18-V21, V23-V25, V45, V55, V58); um escudo (V71); uma moeda (V12, V31, V44, V46-V49, V51, V53, V54, V57, V60-V62, V65, V66, V72); três moedas de ouro (V67); um vintém (V68); mil escudos (V69), ou sem indicação de quantia (V3, V6, V13, V14, V27, V28, V42, V50, V63, V69, V70, V73, V78).

242

F. Adolfo COELHO, Contos populares..., p. 117.

243 V2, V4, V7, V8, V10-V12, V16, V21-V23, V25, V26, V29-V32, V34, V37-V40, V43, V46-V48, V53, V54, V59, V61, V71, V74 e V76. 244 V1, V9, V15, V17-V20, V24, V33, V35, V36, V41, V44, V45, V52, V55-V57, V64, V68, V73, V75, V77. 245

Outros locais varridos: a rua: V51; o chão: V60, V62; o salão: V65; o jardim: V66; o sótão: V67; sem especificação: V5, V49, V72. Na V17 o dinheiro é encontrado numa gaveta, embora após a varredela da casa. Nas restantes versões nada se diz sobre o assunto. Note-se o paralelo bíblico (Lc. 15, 8-10) em que também uma mulher encontra uma dracma varrendo a casa. Mas não é de crer que haja influência deste texto na carochinha: as semelhanças devem-se ao quadro vivencial semelhante.

/ pela porta da cozinha: / Se varreres bem, dou-te um vintém, / Se varreres mal, dou-te um real»,246

o que mostra que esta dependência da casa necessitadas de varredela.

A questão central deste ponto é a implicação {lixo  fortuna}, sugerida pelo facto de

o achamento da moeda ter sido feito, em muitas versões, no meio da varredura da cozinha. O desenvolvimento da questão pode ser feito a diversos níveis, entre os quais o etnológico e o psicanalítico. Começando por este último, refere-se a explicação de Freud, assim resumida por um dos seus intérpretes: «Na sociedade ocidental, os adultos podem brincar com o dinheiro como um substituto aceitável do desejo inconsciente de brincar com as fezes. As fezes são usadas por crianças pequenas como ‘presente’ [...] Velhos, em lares de idosos, algumas vezes regridem para este estádio e podem ser vistos a brincar com as suas fezes, a embrulhá-las e a dá-las como presente. Nas sociedades onde as pessoas consideram o ouro como precioso, dão ouro como presente à pessoa amada; na nossa cultura o dinheiro é um substituto do ouro, o qual é, por sua vez, um substituto simbólico do primeiro presente – as fezes.»247

Ideias semelhantes a estas fazem, de resto, curso entre os autores das telenovelas brasileiras: numa das que foram transmitidas há já alguns anos na televisão portuguesa, um velho, meio demente, procedia em conformidade com elas.

As interpretações populares dos sonhos estabelecem uma boa passagem entre a reflexão psicanalítica248

e a etnológica. Se, com efeito, neles emergem desejos não realizados ou experiências traumáticas,249

o trabalho onírico tenta resolvê-las segundo esquemas que estão para além das vivências individuais, por constituírem como que o seu quadro de referência. Ora nos sonhos, tal como são interpretados pelo povo, é bem clara a relação entre lixo e fortuna: em Entre-os-Rios, crê-se que sonhar com excrementos humanos signi- fica fartura,250

e em Setúbal, que sonhar com imundícies é riqueza.251

Expressões seme- lhantes foram colhidas pelos etnógrafos em Gondomar («Sonhar com excremento é sinal de dinheiro a receber»)252

e em Santo Tirso («Sonhar com porcaria é sinal de dinheiro»).253

Estas crenças constituem o cerne de alguns contos tradicionais, de que retemos dois. O primeiro faz uma associação entre excrementos e dinheiro, em termos míticos, enquanto que o segundo coloca estes mesmos conceitos num contexto simbolicamente depauperado, mas consistente com os significados do primeiro.

246

Mário F. LAGES, Dados para uma etnografia de Touro, V. N. de Paiva (Ms. inédito).

247

Robert BOCOCK, Freud and Modern Society, An Outline and Analysis of Freud's Sociology, Sunbury-on-Thames, Nelson, 1976, pp. 40-1.

248

Sobre a identificação entre lixo e ouro, ou melhor entre fezes e ouro, na tradição popular e nas psicoses individuais, e sobre a sua interpretação psicanalítica, cf. ainda Sigmund FREUD e Ernst OPPENHEIM, «Os sonhos no folclore», in Sigmund FREUD, Pequena colecção das obras de Freud, Artigos sobre técnica, sonhos no folclore e outros trabalhos, trad. de J. Aguiar Abreu, Rio de Janeiro, Imago Ed., 1976, p. 131-59.

249

Sobre a evolução do pensamento de Freud sobre a matéria, cf. Robert BOCOCK, op. cit., pp. 110-1.

250

Leite de VASCONCELLOS, Etnografia portuguesa, VII, p. 560.

251

Cf. Arronches JUNQUEIRO, «Setúbal, Crenças, superstições e usos tradicionaes, II, Sonhos e agouros», A Tradição, 2 (4 Abr.) 1900, p. 54.

252

Camilo de OLIVEIRA, O Concelho de Gondomar..., IV, p. 347.

253

Augusto C. Pires de LIMA, «Tradições populares de Santo Tirso, 2ª série», Revista Lusitana, 20 (1-2) 1917, p. 9.

T2.10: O burrinho que fazia dinheiro

Um homem que tinha muitos filhos saiu pelo mundo e encontrou uma fada que lhe deu uma tabuinha. Bastava dizer «tabuinha, põe-te mesa» para ter o melhor manjar. Foi ter a uma taberna e não quis comer, contando ao taberneiro que a sua tabuinha lhe dava tudo. O taberneiro trocou-lha por outra. Quando chegou a casa e disse à tabuinha para pôr a mesa, nada aconteceu. Voltou ao sítio onde tinha encontrado a fada e esta deu-lhe um burrinho. Dizendo-lhe: «burrinho, caga dinheiro», ele o faria. Foi à mesma taberna e o taberneiro troca-lhe o burrinho por outro igual. Chega a casa, pensando que trazia «a maior riqueza do mundo». Disse ao burrinho que cagasse dinheiro. Mas o burrinho, nada. Volta até junto da fada, a qual lhe deu uma moca. Bastava dizer «zanga-te moca» que podia vir o maior exército do mundo, não havia quem a vencesse. Foi a casa do taberneiro, disse «zanga-te moca, e esta começou a desandar, a desandar, até que lhe deu a tabuinha e o burrinho. Chegou a casa, disse à tabuinha para pôr a mesa que logo apresentou o melhor manjar. Disse ao burrinho para cagar dinheiro e era só apanhar, apanhar. Perguntou aos filhos se queriam dançar, ao que eles disseram sim, pelo que o pai disse: «zanga-te, moca», e toca à pancada aos filhos que lhe pedem para mandar parar.254

Não cabendo aqui discorrer sobre os vários pontos de interesse desta narrativa, destaca-se apenas a equivalência nele estabelecida entre as fezes do burro e o dinheiro, por obra de uma fada que assim tenta resolver a penúria de um pai de família, numa espécie de operação alquímica transcendente que age segundo a equivalência dos símbolos subja- centes, consubstanciando-os. Regista-se ainda que o beneficiário da dádiva mágica é tripla- mente enganado, já que outrem lhe retira o benefício da intervenção demiúrgica. De facto, a função deceptora, a que as análises estruturalistas dão tanta atenção,255

nem sempre ocorre em prejuízo do actor principal, como se pode ver no resumo de um outro conto onde é significada a mesma equivalência entre as fezes e o dinheiro.

T2.11: Os dois compadres

Era uma vez dois compadres, um muito rico e outro muito pobre. O pobre, para apanhar dinheiro ao rico, convenceu-o de que tinha um coelho que dava recados. Vendeu-lhe o coelho por muito dinheiro. Quando este se acabou, resolveu deitar dinheiro com a ração à burra velha que tinha, a qual fez dinheiro diante do compadre rico. Este não descansou enquanto o compadre pobre lha não vendeu por uma muito boa soma. A burra nunca mais fez dinheiro...256

O que de mais significativo, para o presente contexto, se pode retirar da comparação destes textos refere-se a que o T2.10 reporta um acontecimento maravilhoso, de que o

segundo apenas guarda uma memória anedótica em que se exalta a esperteza do compadre pobre. Verificando-se, no primeiro, uma autêntica mudança de ser, no segundo nada mais

254

Alda SOROMENHO e Paulo SOROMENHO, Contos populares..., I, pp. 626-9.

255

Cf., por exemplo, Cl. LÉVI-STRAUSS, Anthropologie structurale, pp. 248-251 e Alan DUNDES, The Morphology of North American Indian Folktales, Helsinki, Academia Scientiarum Fennica, 1980, p. 63.

256

há do que uma fraude. Mas também ele se conforma com a equivalência entre excrementos e dinheiro, tal como no T2.10.

Em reforço destes resultados vêm várias crenças que explicitam a relação entre lixo e dinheiro. No concelho de Gaia, por exemplo, recomenda-se não varrer de noite «as casas para fora, porque se varre a fortuna»,257

e em Armamar, acredita-se em que «varrer de noite a casa para a rua é deitar fora a riqueza.»258

A crença repete-se em Idanha-a-Nova: «Quem varre a casa à noite e deita fora o lixo, deita fora a fortuna.»259

Da mesma maneira, em Castelo Branco, se recomenda: «Pessoa que varra à noite ou de noite a sua casa não deve deitar fora o lixo, porque equivaleria a deitar fora a fortuna»;260

e, na Atalaia, diz-se que «não é bom varrer a casa à noite porque se avanta a fortuna.»261

A lista poderia continuar, em termos quase idênticos, relativamente ao Cadaval,262

a Setúbal,263

e a outras zonas do país. A associação lixo-fortuna está, pois, fortemente enraizada no pensamento popular.

A recomendação de não varrer a casa para a rua não é feita, porém, apenas relativamente às horas nocturnas. Em Fafe, Guimarães e Briteiros, a suposta equivalência ocorre ao meio-dia: «Varrer a casa ao meio dia e deitar cisco fora é muito mau, porque se deita fora a fortuna».264

E tão importante é esta relação que foi desenvolvida numa outra implicação ainda mais abstracta – {lixo  futuro} –, com a particularidade de que a

identidade entre estes dois conceitos se verifica ao lusco-fusco. Em Santo Tirso, na verdade, diz-se que «Não deve varrer-se quando toca às Trindades: varre-se o futuro.»265

O paralelismo dos textos relativos à fortuna e ao futuro mostra que a substituição da primeira pelo segundo não passa de uma figura gramatical baseada na ideia de que só tem futuro quem tem fortuna. Não obstante, esta simples mudança de contexto faz passar a equivalência de um contexto ontológico para outro com referências cósmicas, dando-lhe maior amplitude simbólica.

A mesma equivalência lixo e fortuna parece estar por detrás da expressão «ter dinheiro como cisco», usada para designar quem é muito rico. Cisco, com efeito, significa, em primeiro lugar, o pó ou as miudezas do carvão. Em contexto rural, é equivalente a

257

J. D. da Rocha BELEZA, «Crendices e linguagem de Pedroso, Concelho de Gaia», Revista Lusitana, 19 (3-4) 1916, p. 286.

258

J. Gonçalves MONTEIRO, Armamar, Esboço e subsídios para uma monografia, Viseu, Novelgráfica, 1984, p. 102.

259

Jaime Lopes DIAS, Etnografia da Beira, III, Famalicão, 1929, p. 166.

260

ID.,op. cit, I, p. 169.

261

Carlos A. Monteiro AMARAL, «Tradições populares da Atalaia, 2ª série», Revista Lusitana, 12 (34) 1909, p. 289.

262

José Maria ADRIÃO, «Tradições populares colhidas no concelho do Cadaval», Revista Lusitana, 6 (2) 1900-01, p. 101. Frases semelhantes encontram-se, sem lugar de origem, em Consiglieri PEDROSO, «Contribuições para uma mythologia popular portugueza», O Positivismo, 3, 1881, pp. 2 e 7 (1988, p. 130 e 173).

263

Arronches JUNQUEIRO, «Setúbal, Crenças, superstições e usos tradicionaes, II, Sonhos e agouros», A Tradição, 2 (4 Abr.) 1900, p. 56.

264

Consiglieri PEDROSO, «Tradições populares portuguezas», O Positivismo, 3, 1881, p. 327 (1988, p. 211).

265

Augusto C. Pires de LIMA, «Tradições populares de Santo Tirso, 3ª série», Revista Lusitana, 22 (1-4) 1919, p. 52.

caruma266

e ramos e gravatos miúdos,267

ou restos de materiais lenhosos utilizados para acender o lume ou mantê-lo vivo, o que reenvia para o contexto da cozinha onde, segundo a maioria das versões, a carochinha encontra o dinheiro que lhe permite enfeitar-se para o casamento.

Este género de associações não é exclusivo da cultura portuguesa. Num conto hún- garo, de que são conhecidos vários paralelos entre nós,268

menciona-se um príncipe que, ao trazer a noiva para casa, é salvo pelo seu servo fiel que é posteriormente transformado em pedra. O príncipe vai em busca de ajuda junto de Felix Feliz a quem pede lhe revele porque é que ninguém se enamorava de três raparigas bondosas, bonitas, trabalhadoras e trintonas. A razão estava em que «elas atiravam o lixo à face do sol».269

A felicidade é, pois, posta em causa porque o lixo obscurece o astro-rei, conceito este muito próximo da tradição portuguesa, já que, ao limpar a casa ao meio-dia, a dona de casa se arisca a atirar lixo contra a fonte da luz.

A formulação teórica expressa na sequência {cozinha  lixo  fortuna  futuro} e o

nexo «supersticioso» existente entre este termos está igualmente presente numa crença checa, de que existe um paralelo na tradição portuguesa. Segundo Jorge Listopad, os limpa- chaminés «continuam em plena pujança na Europa Central», em razão de serem «tão negros e portadores de fortuna».270

Esta mesma tradição teria existido na cidade de Lisboa, onde era hábito dizer: «parece que esteve cá hoje o limpa-chaminés», quando acontecia alguma coisa afortunada na família.271

A fuligem, preta como o breu, seria equivalente da fortuna, o que concorda com a anterior associação desta com o cisco e o lixo.

A razão de ser desta crença está possivelmente na relação entre carvão e ouro, suposta nas definições dos dicionários e que está explicita num conto recolhido nos arre- dores do Porto, de que damos um resumo em seguida.

T2.12: As barras de ouro

Três irmãos estavam num monte a fazer carvão e cada um guardava a borralheira para que se não apagasse enquanto os outros dormiam. Aconteceu, no entanto, ao mais moço que a deixou apagar por descuido. Dirigiu-se pois a uma luzinha ao longe. Encontrou uns homens muito negros a fazer carvão. Pediu-lhes lume. Eles responderam-lhe com má cara e disseram-lhe que tirasse um tição e o levasse. Ele foi a correr para a sua borralheira, mas o tição apagou-se-lhe. Pô-lo de lado e voltou lá a pedir outro tição, tendo-lhe os homens de negro dito que sim. Aconteceu-lhe o mesmo. Voltou lá outra vez e também o terceiro tição se lhe apagou. De manhã, contou aos irmãos o que tinha acontecido. Olharam e viram três grossas barras de ouro no lugar dos tições. Nas noites seguintes voltaram lá os outros dois irmãos e aconteceu o mesmo. Ficaram muito ricos. Um dia

266

Dicionário Houaiss da língua portuguesa, s.v.

267

Artur BIVAR, Dicionário..., s. v.

268

Tais contos têm o nome genérico de Pedro das Malas-Artes. Nenhum dos colacionados, tem, porém, o motivo do conto húngaro.

269

Andrew LANG, The Crimson Fairy Book, New York, Dover Pubs., 1967, pp. 8-21.

270

Jorge LISTOPAD, «Secos e molhados», Diário de Notícias, 8 Jan. 1983, p. 34.

271

Segundo comunicação pessoal de D. Fernanda Matos e Silva, em 8 Setembro de 1983, sua avó costumava empregar tal expressão.

um mendigo pediu-lhes esmola e eles deram-lhe de comer. Quando o velho, no fim de comer, se benzeu e começou a dar graças, «o palácio desfaz-se como num sonho e os três irmãos e todos os que estavam com eles à mesa acharam-se no meio da rua, como se aquele lugar nunca tivesse sido senão um monte de entulho.»272

Deste conto podem ser retiradas lições que não interessam ao presente contexto, como a de que a fragilidade é intrínseca aos dons dos seres ctónicos, pois só duram o breve tempo de um sonho. Uma interpretação moralista diria que estamos perante uma parábola elaborado com a intenção de dizer que se perde facilmente o que se consegue sem esforço, e que a obtenção de sólidas riquezas supõe aturado labor. Neste entendimento, a mensagem global do conto seria que as riquezas são deceptoras.

Os contos populares, porém, raramente se resumem a uma única lição abstracta. Convirá, por isso, procurar outros significados nas suas referências teóricas de cariz onto- lógico e comportamental. Ora o texto mostra que tanto os dadores de dons como os seus beneficiários lidam com carvão. Os primeiros são demiurgos invejosos que não aceitam que outros seres transcendentes (evocados no sinal da cruz do fim da história) possam ter capacidades equivalentes, retirando, por isso, os bens concedidos a quem aceita a auto- ridade destes. A sorte estaria dependente do beneplácito desta espécie de titãs, donos não só do fogo mas também das riquezas.273

São eles que determinam que os humanos sejam ricos ou pobres. Nem os deuses novos nem os simples mortais podem alterar o que eles determinaram.

Procurando ir mais fundo no texto, tendo em conta os testemunhos aduzidos anteriormente, o que dele ressalta mais claramente refere-se à natureza dos dadores, seres ctónicos, negros como o carvão. São eles que estão na origem da riqueza, dando-a de má catadura a quem a procura. O texto supõe, portanto, tal como as tradições referidas sobre os limpa-chaminés, que o negrume é equivalente de riqueza e felicidade; e insinua a razão de ser desta equivalência: toda a riqueza provém da profundidade da terra.

Note-se, por outro lado, que a origem ctónica da riqueza se opõe à origem celeste da fortuna – representada pelo sol – como se viu na tradição húngara. Assim o ouro (ou seja, o carvão-cisco-lixo) significa riqueza-fortuna-felicidade, num referencial ctónico. Da mesma maneira, o sol dourado é sinónimo de felicidade, num referencial celeste, quando não ofuscado pelo cisco lançado contra si. O lixo, pois, tanto é potenciador como impedimento de felicidade, consoante é lançado «sobre a terra» ou «contra o sol»: no primeiro caso fecunda, no segundo obnubila a potencialidade criadora do astro-rei.

A dedução feita a propósito da origem ctónica das riquezas é reforçada pelo seguinte extracto de um conto dos irmãos Grimm.

272

Teófilo BRAGA, Contos tradicionais... I, pp. 208-9.

273

Sobre o possível paralelo da luta entre os deuses antigos e novos, num contexto genericamente relacionado com este, o da dádiva do fogo por Prometeu aos homens, leia-se a peça de ESCHYLE, «Prométhée enchainé», in suo Théatre complet, Paris, Garnier-Flammarion, 1964, pp. 97-126.

T2.13: O irmão enegrecido do Diabo

Um soldado aceita servir o demónio sete anos, durante os quais vive na imundície, não podendo lavar-se, pentear-se, assoar-se, cortar as unhas ou os cabelos, ou tirar a remela dos olhos. Tinha por funções no inferno atear o fogo, varrer e acarretar toda a espécie de sujidade. No fim deste tempo, o demónio disse-lhe que enchesse seu saco de varreduras. Quando, na terra, abriu o saco, este estava cheio de ouro.274

Independentemente de algumas particularidades que parecem indicar um paralelismo simbólico e accional deste texto com a história da carochinha – a conversão do lixo em ouro, o contexto ‘culinário’ e a sedução do soldado pelos caldeirões do inferno que inspecciona para saber o que está lá dentro – o que nele há de mais interessante é