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João Ribeiro e o carácter murino

6. A S ESTRATÉGIAS NARRATIVAS

A classificação que João Ribeiro faz das sequências narrativas da primeira parte da história, a única que terá conhecido, é apenas um dos aspectos a que a análise textual deve dar importância. A detecção dos mecanismos discursivos utilizados em toda ela tem, com efeito, implicações substantivas no significado e na metodologia de análise.

Começando, porém, pelo conto, notamos que está construído com base em oposições sucessivas de atitudes, comportamentos e destinos. A carochinha não compra guloseimas de forma a poder gastar o seu dinheiro em enfeites; e rejeita o namoro de vários animais que comem segundo a natureza, para ficar com o último que se lhe apresenta, o

cendo a sua condição presente, saltou da cama e perseguiu o rato, desejando comê-lo. Vénus ficou muito desapontada e fê-la voltar à sua anterior forma. A natureza é mais forte do que a cultura.»

141

ID.,op. cit., p. 74.

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João Ratão. Por outro lado, este decide provar a comida da boda quando tinha como missão levar o leque à carochinha que ficara à sua espera na igreja; e morre finalmente, enquanto a carochinha sobrevive e chora. Estes esquemas dialécticos são, todavia, muito diferentes dos que estão supostos na filosofia hegeliana. Não se trata, com efeito, de uma oposição entre dois termos cuja contradição é resolvida numa síntese, mas da oposição de um elemento que é repetido ou contradito, respectivamente, por um segundo ou terceiro, sejam eles actores, atitudes ou acções.

Tais procedimentos são muito frequentes nos textos da literatura popular. Quando, na verdade, o mitógrafo quer exprimir a situação do homem no mundo, em termos éticos, estéticos ou ontológicos, fá-lo mediante oposições do género {injusto / justo}, {feio / belo}, {mau / bom}, {morrer / viver}, {nada / ser}. O primeiro termo destas oposições é geralmente representado por uma díade de seres com sorte semelhante, enquanto que o último é desempenhado pelo herói que é, ou fica, belo, bom, rico, se casa, sai vencedor ou é feito rei. Quem assume estes papéis é geralmente o ser mais frágil, que supera as provas que lhe são propostas.

Os exemplos deste mecanismo narrativo são tão numerosos que não é possível dar uma ideia das ocasiões e temas em que é utilizado. Por isso, apenas mencionamos alguns que consideramos elucidativos. O primeiro é retirado de um clássico inglês, o Rei Lear de Shakespeare, por nele ser notória a origem popular.143

As filhas mais velhas do rei – Goneril e Regan – mentirosas e más, repetem-se uma à outra no desamor ao pai. As suas atitudes são contraditas pela bem-amada e doce Cordélia, que, incapaz de «fazer palpitar o coração na boca», como as irmãs, apenas diz amá-lo «segundo a sua obrigação, nem mais nem menos».144

Mas o drama de Shakespeare não copia exactamente o modelo tradicional, já que Cordélia não recebe a recompensa do seu amor filial. Shakespeare, por razões dramáticas,

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A fonte directa desta tragédia é a Historia Regum Britanniae, de Geoffrey de MONMOUTH (History of the Kings of Britain, Cambridge, Ont., In Parentheses Publications, 1999, liv. II, cap. 11-15, pp. 28-34), completada em 1138, onde aparecem todos os personagens principais (Leir, Gonorilla, Regau e Cordeilla, os duques de Cornwall e Albania e o rei dos Francos) e o essencial das suas atitudes e acções. As palavras com que as filhas de Lear (Leir) exprimem o seu amor pelo pai (Gonorilla diz que amava o pai «mais do que à minha alma»; Regau, que o amava «acima de todas as criaturas»; e Cordeilla, que «nenhuma filha pode amar mais do que deve») reforçam a ideia desta origem. Mas Shakespeare faz diversas alterações à lenda reportada por Monmouth. Leir, depois de ter retomado o seu reino com a ajuda de Cordeilla e do Rei dos Francos, ainda governa durante três anos. Após a sua morte, a filha manda fazer um túmulo para o sepultar, perto de Leicester, sob o rio Soar, numa cripta originalmente dedicada ao deus Janus, onde «os trabalhadores da cidade costumavam começar os seus trabalhos anuais por ocasião da sua festividade» (liv. II, cap. 14, p. 33). O final de Cordeilla, que sucedeu a seu pai, é segundo Monmouth, diferente do drama de Shakespeare: presa pelos sobrinhos, suicida-se. Segundo Alan DUNDES («'To Love my Father All'; A Psychoanalytic Study of the Folktale Source of King Lear», in Alan DUNDES, ed., Cinderella, op. cit., pp. 229-244), a «ultimate source» (p. 239) do texto shakespeariano seria um conto popular (tipo AT 510B). Não sendo referida por Dundes a Historia Regum Britanniae, não se sabe se examinou a questão de o texto de Shakespeare depender directamente desta fonte literária, a qual teria, essa sim, origem popular. Teófilo BRAGA (Contos tradicionais do povo português, II, Lisboa, Dom Quixote, 1987, p. 69), reproduz um excerto do Livro de Linhagens, do século XIV, onde há uma versão simplificada desta lenda, sendo os dizeres das filhas idênticos aos de Monmouth. Braga, no entanto, diz erradamente que a obra de Monmouth tem por título História Britonum, a qual foi escrita por um certo Nennius, monge galês do século IX. Note-se ainda que a relação entre o conto popular e a tragédia shakespeariana é assinalada por Consiglieri PEDROSO,Contos populares..., p. 19.

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William SHAKESPEARE, King Lear, I, I, 94-95, in suo The Complete Works, London, Oxford University Press, 1957, p. 909.

dá-lhe um final diferente do conto popular: Cordélia, morre enforcada na prisão às ordens de Goneril, a qual faz com que a morte de sua irmã pareça suicídio.145

Este mesmo tema é desenvolvido em vários contos. Num deles, a filha mais nova de um rei, depois de as suas duas irmãs terem dito coisas muito mais agradáveis, diz querer-lhe tanto como a comida quer ao sal. Incompreendida e expulsa de casa, o seu amor é reco- nhecido na boda do seu casamento onde apenas seu pai não come por lhe terem servido comida insossa.146

Este mesmo esquema dialéctico é utilizado, por exemplo, nos contos em que o filho mais novo, frágil, desconsiderado e desprotegido, obtém o objecto mágico que procurava, ou realiza o feito que lhe dará uma esposa, riqueza ou poder.147

A estrutura diádica, em que dois actores têm destinos opostos, embora porventura mais primitiva, é, de facto, menos frequente do que a triádica.148

Em qualquer dos exemplos com três actores, com o último a ter sucesso, o meca- nismo utilizado tem como intenção fixar, pela duplicação das características e do insucesso dos dois primeiros actores, a importância do que é alcançado pelo último. A força expressiva da acção resulta, pois, de que a avaliação espontânea das qualidades e capaci- dades dos seres aparentemente menos aptos resulta de uma deficiente apreciação por parte de quem os rodeia, quer porque não estavam suficientemente desenvolvidos do ponto de vista físico ou psíquico, quer porque não tinham superado o estigma com que nasceram ou foram marcados.149

Este procedimento dialéctico põe, assim, em evidência a adequação do actor principal à execução das tarefas ou das provas fundamentais referidas no conto, substituindo os que aparentemente já possuíam as qualificações necessárias.

Na segunda parte da história da carochinha, os mecanismos da produção textual são completamente diferentes: os actores são colocados sequencialmente segundo uma lógica de proximidade tópica, tornada sensível – visual ou tactilmente – e expressa num texto cumulativo, construído de forma a produzir uma tensão dramática capaz de suscitar a atenção dos ouvintes. Assim, desde o final da parte contística vão sendo acumulados agentes e actos, uns e outros repetidos todas as vezes que mais um entra em cena, de forma a significar que nesta acumulação se junta o fim da conto ao fim da lengalenga, segundo um processo que designamos de dilação da predicação, cujo sentido, importância e utilidade analítica estudaremos mais adiante (Cap. 4 e 5)

É nossa intenção demonstrar que esta dupla estratégia narrativa em nada prejudica a unidade da história. Como veremos ao longo deste estudo, as duas partes completam-se e reforçam-se, aclarando a última o sentido da primeira. Só quando se compreende o que acontece aos seres que vão sendo arrolados para participar no pranto da carochinha e,

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ID.,King Lear, V, III, 253-7 (p. 941).

146

Cf. por ex., Teófilo BRAGA, «O sal e a água», Contos tradicionais..., I, pp. 175-6.

147

Cf. por ex., Madame D’AULNOY, «La Chate Blanche», in suo Contes, Paris, s.d., pp. 63-77.

148

V.g., «A serena de Alamares» (cf. A. Thomaz PIRES, Contos populares alentejanos recolhidos da tradição oral, ed. de Mário F. Lages, Lisboa, CEPCEP, 2004, 2ª ed., pp. 19-21). Nele duas irmãs, de nome Maria, têm sortes opostas: uma vive e a outra morre. Cf. outro exemplo em T7.10.

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Também por esta razão, o valor pedagógico dos contos não pode deixar de ser posto em evidência. Eles são, com efeito, instâncias de criação de auto-imagens favoráveis por parte de quem os ouve pela primeira vez, geralmente o mais jovem de todos os membros de um grupo de ouvintes.

sobretudo, quando se compreende a relação entre a morte do João Ratão e o compor- tamento do rei, no final da história, é que se entende a sua mensagem. Ou seja, a lenga- lenga, por um processo de equivalências homológicas, mostra que a anáfora nela produzida não é um simples exercício de estilo ou uma extensão desnecessária da primeira parte, mas um elemento integrante e necessário do significado de toda a história.

A indicação mais completa de que a natureza compósita do texto lhe não prejudica a unidade é dada pela tradição quando diz no final do conto que o João Ratão morreu «cozido e assado no caldeirão». A expressão é, com efeito, usada não só em várias versões curtas150

– contraditoriamente com o que é expresso nos actos referidos nos respectivos textos onde o João Ratão é simplesmente «cozido» no caldeirão – mas também no final da primeira parte de algumas versões longas,151

apesar de só uma delas (V5) dizer expressamente

que o rei morreu «assado» (todas as que afirmam ter-se arrastado nas brasas subentendem- no, porém).

Deve notar-se ainda que, tanto quanto nos é dado saber, esta estrutura compósita – conto e lengalenga – não existe em nenhum outro conto português, o que indica o lugar especial que a história tem no quadro das construções imagéticas populares. E dada a «naturalidade» da divisão da história em duas partes, não parece necessário rebater o que está implícito em Teófilo Braga que identifica o conto com o «género novelesco de histórias de acumulação», designação por ele encontrada em Hollywell,152

a qual foi acolhida, como vimos, por Aarne-Thompson. Não se pode reduzir, com efeito, a história a esta parte. Tanto o conto como a lengalenga são essenciais e integram uma dialéctica que só é completada num outro conto – o da Gata-borralheira – que aparentemente nada tem a ver com ele, mas que pensamos pertencer, como a seu tempo demonstraremos (Cap. 7), ao mesmo complexo narrativo da história da carochinha.