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A compreensão do significado de expressões como «o que Deus deu» e «o bom é meu» pode ser entrevista em vários textos populares relativos à diferenciação entre os animais, alguns deles definidos como selvagens e outros como domésticos, em função da comida que ingerem. Nesta diferenciação o lobo é o paradigma da selvajaria, ao passo que o porco e o burro são tomados como epígonos da domesticidade. Tentemos, pois, ver o que significa este extremar de categorias, que desde Karl Marx e Max Weber299

sabemos permitir compreender melhor o que está contido na realidade, constituída por pequenas diferenças, indeclináveis por olhares não treinados teoricamente.

A natureza selvática do lobo está associada aos seus hábitos alimentares. Várias narrativas populares elaboram o conceito. Resumimos em seguida quatro.

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Acrescente-se que as versões longas de Eduardo SCHWALBACH (A história..., p. 34; ID., A história..., Fantasia infantil, p. 36) estão conformes com a tradição. Na verdade, o príncipe transformado em rato «vai direitinho / para o seu buraquinho / contente trincar [ou roer] / pão, queijo e toicinho.»

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O valor heurístico de conceitos como burgueses e proletários do primeiro e tipos ideais do segundo é notório: ao polarizar a realidade, permitem referenciar teoricamente as suas diferenças mínimas e assim compreendê-las.

T3.1: Os três estudantes

Recolhiam de férias três estudantes e encontraram no caminho um lobo morto». Combinaram que «ficaria livre de pagar o jantar na próxima estalagem» aquele que «proferisse melhor sentença». Disse o primeiro: «Aquele lobo / Por onde andou / Do que comeu / Nada pagou». Ao que retorquiu o segundo: «Aquele lobo / No meu sentido / Comeu só cru / Nada cozido». E o terceiro contestou: «Eis ali um lobo / P'lo que manifes- ta / Das suas jornadas / A pior foi esta».300

T3.2: Botar prosa ao lobo

Três homens que foram para uma romaria decidem «botar prosa ao lobo» que encontraram morto, tendo dito o primeiro: «Aquele lobo tem andado mais vezes descalço ca calçado»; o segundo: «Aquele lobo tem comido mais carne crua ca cozida»; e o último: «Aquele lobo tem ficado mais vezes descalço que ido a ela.»301

T3.3: O juiz do Soajo

Três rapazes que iam na encosta do Soajo encontraram um lobo e quiseram «dizer um verso ao lobo», devendo pagar um jantar o que pior versejasse. O primeiro disse: «Este lobo, enquanto viveu, nunca le outra aconteceu.» O segundo: «Este lobo, por onde tem andado, sempre tem feito grande estrago.» E o último: «Este lobo enquanto vivo, comeu mais cru que cozido.» O juiz sentenciou: «Dissestes bem. Então como de facto pagais três, comemos quatro.»302

T3.4: A graça estudantesca

«Três estudantes que seguiam para casa em férias, encontraram um lobo morto», que, segundo um, merecia «um necrológio». Quem o fizesse melhor, não pagaria o jantar. O primeiro declamou: «Aquele lobo / Por onde andou, / Quanto comeu / Nada pagou.» O segundo: «Sim, esse lobo, / No seu sentido, / Comeu só cru, / Nada cozido.» O estudante do alvitre disse; «Quando este lobo / Dormia a sesta, / Não dormiu nunca / Uma como esta. // Eis aí um lobo, / Pelo que manifesta, / Das suas jornadas / A pior foi esta.» O juiz a quem pediram que decidisse que quadra tinha mais chiste disse que todas tinham pilhas de graça: «Pelo que os senhores dizem, / E eu vejo nos autos / Os três pagam o jantar / E comeremos quatro.» Os estudantes «combinaram pregar uma peça ao juiz» mandando

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Cf. F. X. d'Athaíde OLIVEIRA, Contos tradicionais..., II, p. 91 (ed. 1905, pp. 127-8). Texto da tradição de Algoz, concelho de Silves. Derivam de idêntica inspiração poética as seguintes quadras de um conto de Aquilino RIBEIRO (Quando ao gavião cai a pena, Amadora, Bertrand, 1972, p. 107), possivelmente de origem popular: «Este lobo não ia à missa, / Nem à missa nem ao sermão; / Comia cabra à sexta-feira, / Não tem absolvição.» «Este lobo era herege, / Devoto de Barzabu, / Comia cabra, comia ovelha, / Ferrem-lhe as ventas no cu!» A incivilidade do lobo é aqui referida à sua não observância dos preceitos da religião e à sua preferência pelo comércio com o demónio. A religião seria, pois, a expressão máxima da cultura, significada no ir à missa e ao sermão e não comer carne à sexta-feira.

301

J. Leite de VASCONCELLOS,Contos populares..., II, p. 111. No texto acima não há nenhuma indicação do que significa a expressão «ido a ela», embora se deva supor que tenha a ver com o oposto a andar descalço.

302

Alda SOROMENHO e Paulo SOROMENHO, Contos populares..., II, p. 225-6. Texto recolhido em 1975, em Barral, concelho de Ponte da Barca.

que «cozessem um paio e o pusessem partido na mesa em três partes: Sentaram-se à mesa e um dos estudantes espetou logo o garfo num dos bocados, dizendo: ‘Em nome do Padre / Este me cabe.’ O segundo fez o mesmo, e nomeou: ‘Em nome do Filho / Este comigo.’ O juiz, com acção executiva, agarra o último pedaço: ‘Em nome do Espírito Santo / Antes que fique em branco.’ O juiz lembrou-se a tempo do tempo que fora estudante.»303

Estilisticamente, as quadras do elogio fúnebre do lobo não são do melhor que há na literatura oral, embora as dos T3.1 e T3.4, de metro pouco comum, pareçam ter tido

tratamento erudito. Em todas elas, porém, os conceitos são consentâneos com as concep- ções populares sobre a natureza dos animais selvagens representados no lobo, ao porem em evidência não só o que é comum a todos os animais, domésticos ou não (morrer, não pagar nada pelo que comem), mas também o que é específico do lobo (fazer grande estrago, comer tudo cru e nada cozido). Dizem, pois, que a civilização e a domesticidade se manifestam no comer cozido; e a selvajaria, no comer cru.304

Estas conclusões são tão claras que quase dispensam outros testemunhos. Não se deixará, no entanto, de incluir um texto da tradição francesa que as confirma, de forma muito original.

T3.5 Quando o lobo quer fazer cozer a carne

«Era uma vez um lobo apanhou uma ovelha. Comera-a quase toda – só lhe restava uma perna – quando deu conta que o luar brilhava na noite, longe, muito longe, no extremo dos campos: era a lua que nascia [...] ‘Há gente que faz fogo lá além. E se aproveitasses? Ouviste dizer que a carne de

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Teófilo BRAGA, Contos tradicionais..., I, pp. 255-6. Não é indicada a localidade de origem deste conto. Cf. três outras versões em A. Nunes PEREIRA, Os contos de Fajão, Coimbra, Museu e Laboratório Antropológico, 1989, pp. 57-9, nas quais se encontram versos semelhantes aos reportados acima, a saber, na primeira: «Este lobo desde que nasceu / Nunca tal aconteceu [...] Este lobo logo que foi nado / andou mais tempo descalço do que calçado [...] Este lobo em toda a sua vida / Comeu mais carne crua que cozida»; na segunda: «Este lobo desde que foi nado / andou sempre mais descalço do que calçado [...] Este lobo, em vida / Comeu mais carne crua que cozida [...] Este lobo desde que nasceu / Foi esta a pior jornada que deu»; na terceira: «Este lobo, enquanto vivo / Comeu mais carne crua que cozida [...] Este lobo enquanto nado / andou mais tempo descalço do que calçado [...] Este lobo dormiu muita sesta / Mas nunca dormiu nenhuma como esta».

Temos na nossa colecção uma outra versão, semelhante às anteriores, contada por D. Silvina Santos, de Algodres: «Iam três estudantes por um caminho fora e encontraram um lobo morto. E depois também passou outro sujeito e o outro sujeito vai ele assim: os senhores se forem capazes de dizer uma quadra a este lobo que seja certa vão ali comigo à taberna e pago-lhes uma merenda. Pois bem. Disse assim um deles muito depressa: ‘Este lobo, quando foi vivo, comeu tudo cru, nada cozido.’ Vai outro assim: ‘Este lobo, quando pelo mundo andou, quanto comeu nada pagou.’ E o outro: ‘Este lobo, quando dormiu a sesta, nunca dormiu uma igual a esta’. E o sujeito lá foi para a taberna e em vez de mandar vir quatro, que eram quatro, mandou vir três sandes e três copos de vinho. Vai o primeiro estudante: ‘Em nome do Padre, este preparado.’ [Vai o segundo]: ‘Em nome do Filho, este peguilho.’ E o terceiro: ‘Em nome do Espírito Santo, antes que fique em branco.’ E ele [o sujeito] ficou em branco.»

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A ideia é reforçada nos textos pela expressão, de tudo o «que comeu / nada pagou». A oposição {cru / cozido} é menos clara em T3.3 e nos textos referidos na nota anterior, onde se diz que o lobo comeu mais carne crua que cozida, o que parece resultar de uma adulteração de um texto semelhante ao recolhido em Algodres. Mas mesmo estas fórmulas depauperadas manifestam a natureza selvática do lobo no que se diz ser uma «preferência» pela carne crua quando na realidade come sempre cru.

ovelha era melhor cozida do que crua: eis o momento de saber se é verdade.’ Sentou-se sobre o rabo, bem direito, e começou a expor a perna da ovelha à luz, voltando-a bem para aquela mancha de luz. De tempos a tempos, dava-lhe uma mordidela. ‘Hei! Não acho muita diferença. Deixemos cozer.’ E recomeçava. Voltava-a de um lado, depois voltava-a do outro. E ia provando. Esteve assim um bom pedaço. ‘Bah! bah! disse por fim, basta! Eh! estaria aqui ainda amanhã de manhã. Tudo isto são tolices. Eu sou como o meu pai: gosto tanto dela crua como cozida.’ E engoliu o seu pedaço de carne e partiu, pelos campos, à procura de outras rezes. E desde então continuou sempre a comer carne crua.»305

Este conto dramatiza o que a tradição portuguesa diz, ser da natureza do lobo comer cru. Tanto ele como seu pai não dominam o fogo. Assim, a sua tentativa de apropriação do que coze a carne, não se dirige aos raios do sol ou ao fogo terrestre mas aos raios de luar, não sabendo que o fogo reflectido na lua não cozinha os alimentos. E porque não ultrapassa a sua natureza selvagem, só pode comer selvaticamente.

Este conjunto de observações pode ser resumido na fórmula, {cru / pré-cozido // selvagem / doméstico}, ou seja: o cru está para o pré-cozido assim como o selvagem está para o doméstico. O lobo seria o representante máximo da selvajaria.