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Esta análise fenomenológica do comportamento do actores da lengalenga é, porém, elementar e imperfeita, não atingindo as razões que levaram o povo a incluir estes três níveis de realidade na bela demonstração da diafania do mundo feita na lengalenga, cujo significado interessa aprofundar.

Uma primeira achega ao sentido é uma observação de Leite de Vasconcellos, apensa a uma das versões por ele recolhidas: «Toda a natureza e a sociedade, toma luto pela morte de um rato!»,428

com o que chama a atenção para que este facto não suscita apenas sentimentos individuais de quem sofre a perda de alguém, mas se repercute num vasto conjunto de seres em reverberações não esperadas. No entanto, a afirmação do etnógrafo ucanhense refere apenas parcialmente o conteúdo da lengalenga. A natureza e a sociedade seguem-se a uma outra categoria claramente expressa no texto, a casa. E não comenta o autor (não ocorrendo fazê-lo numa breve nota ocasional no fim de um texto coligido) o facto estranho de a carochinha chorar sozinha a morte de seu esposo, sem que mais ninguém das suas relações familiares ou de vizinhança a acompanhe no seu pranto. Estranho, porque o contexto tópico e social da morte do João Ratão é o mesmo da primeira parte do conto: a casa, o povoado aldeão, a mãe, as vizinhas, a igreja onde é realizado o casamento, ou seja a comunidade onde os acontecimentos relacionados com os ritos de passagem são partilhados. Surpreende, pois, esta solidão em que só a acompanham três «carpideiras» domésticas não humanas: a tripeça, a porta e a trave.

Sendo, pois, a ausência de familiares, parentes e amigos inexplicável num meio popular como aquele que esta história supõe, forçoso é considerá-la intencional e supor que os seres foram nela colocados por razões simbólicas, transparentes para quem elaborou a série. Para as identificar, colocamos todos os actores da versão de referência pela ordem em que nela são mencionados na Tabela 5.1. Deste ordenamento emergem os primeiros desígnios de significação, detectáveis nas categorizações apresentadas nas colunas [2] e [3].

Tabela 5.1: Actores da parte cumulativa da V1 Actores [1] Natureza [2] Categorias [3] João Ratão AA Carochinha AA Tripeça OC Porta OC Casa Trave OC Pinheiro EN Passarinhos EN Natureza Fonte EN Meninos SH Rainha SH Sociedade Rei SH

Legenda: AA = Animal Antropomorfizado; OC = Objecto Cultural; EN = Elemento Natural; SH = Ser Humano.

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Começando pela coluna [2], observamos que, após os dois actores principais – João Ratão e carochinha –, categorizáveis como animais antropomorfizados, aparecem três objectos culturais feitos de madeira – a tripeça, a porta e a trave –, que podem ser agrupados sob a designação genérica de «casa», como consta da coluna [3]. Os três elementos seguintes – pinheiro, passarinhos e fonte – são elementos provindos directamente da «natureza», sem que tenham sido objecto de qualquer transformação. Os três últimos – meninos, rainha e rei – são seres humanos que configuram a categoria «família-sociedade». Estes nove actores estão, pois, agrupados em três grupos de três elementos cada, como se a repetição três vezes feita de um número perfeito elevasse a perfeição à sua expressão máxima.

Olhando com atenção para os três elementos do primeiro tríptico, nota-se que, sendo objectos culturais, no sentido de que são o resultado da acção humana sobre a natureza, representam as várias funções da casa. A primeira delas é a da fruição, representada na tripeça, a qual permite a ocupação cómoda e agradável da habitação. Não fazendo sentido uma casa onde todos ficassem de pé, a tripeça serve paradigmaticamente para o homem se sentar diante da lareira, como se verá mais adiante. A porta, por outro lado, tem a dupla função de comunicação com o exterior e de delimitação do habitáculo, a primeira mais imediata do que a segunda. Instrumento de mediação por excelência, a porta faz a transição entre a casa e a natureza e estabelece o limite de ambas, colocada como está sobre o limen no sentido da horizontalidade. De facto a comunicação não se faz senão entre seres contidos em si mesmos e distintos de outros.

A trave, por seu vez, estabelece o limite da casa no sentido da verticalidade. No fundo é ela – em conjunto com o tecto que sustenta e que metonimicamente representa – que define a habitabilidade da casa, separando-a do cosmos e, por extensão, do transcendente. Mais do que pelas paredes – e pela porta que a abre ao exterior – a casa é constituída pela trave que sustenta o tecto. E tanto assim é que se diz de alguém que não tem casa, «não tem um tecto» onde se abrigar.429

A relação trave-tecto-habitabilidade é intrínseca e necessária. A porta e a trave é que permitem, pois, a domesticidade significada na tripeça. No conjunto, estes três elementos definem a casa como espaço protegido e habitável, dela fazendo parte um utensílio (a tripeça), um elemento de mediação (a porta), e um outro estruturante (a trave).

Na expressão dos sentimentos de compaixão destes seres o mais estranho é, em primeira análise, o bailado da tripeça; no fundo, porém, não é diferente das atitudes da porta e da trave. As três colocam-se na situação de não poder cumprir a função que lhes é reservada na casa: uma tripeça que baila não pode ser utilizada para descansar ou facilitar as actividades domésticas; uma porta que está continuamente a abrir e a fechar não resguarda a casa do exterior e não permite a intimidade; e uma trave que se parte torna impraticável a casa como local de habitação, nela deixando penetrar todas as intempéries provindas do céu.

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Complementarmente refere-se a expressão com que se significa o não ter nada: «sem eira nem beira», sem eira significando que não tem meios de sustento, tradicionalmente malhados ou secados na eira; sem beira, que não tem casa, metonimicamente reduzida ao seu beiral.

Os três elementos seguintes – pinheiro, passarinhos e fonte – provêm da natureza não transformada culturalmente, cada um deles representando um dos seus reinos – vegetal, animal e mineral –, respectivamente. A sua associação ao pranto da carochinha é feita de maneira semelhante à dos elementos da casa: todos deixam de executar as suas funções naturais, o pinheiro arrancando-se, os passarinhos tirando os olhinhos e a fonte secando-se. Deixam, pois, de existir como seres vivos ou funcionais. Que pinheiro pode, com efeito, subsistir sem estar bem agarrado pelas raízes à terra? E que passarinho pode voar sem olhos? E que água pode manar de uma fonte seca?

A escolha destes seres obedeceu, pois, a regras precisas de produção simbólica, ao impor a toda a natureza – para a qual abria a porta, mediadora entre ela e a casa – a compaixão pela morte do rato. De resto, a observância das regras estruturais não se fica por aqui: o elemento de transição deste segundo grupo para o terceiro, a fonte, também está no interior do respectivo grupo, como para significar que a função mediadora destes dois elementos não é só tópica (dentro do respectivo grupo), mas também ontológica (entre categorias de seres).

Os três elementos finais – meninos, rainha e rei – , em termos imediatos, personi- ficam a família, hierarquicamente definida. Mediatamente, no entanto – e talvez seja este o aspecto que mais interessa para a interpretação – o que está neles sugerido é a categoria sociedade. Personagens como a rainha e o rei, que evocam as noções de poder e ordenamento legal, fazem, com efeito, pensar na estrutura social. A família significaria, por antonomásia, a cidade organizada. Por outro lado, os actos destas personagens ainda são mais estranhos do que os das primeiras seis, atingindo as raias do inimaginável e incom- preensível. Que sensatez pode, com efeito, haver no quebrar gratuito dos cantarinhos por parte dos meninos do rei, no andar em fralda pela cozinha por parte da rainha e no arrastar o c. nas brasas por parte do rei? Porquê esta insanidade progressiva de três actores, os únicos que pertencem ao grupo dos seres racionais e inteligentes?

A resposta a estas questões necessita de vários desenvolvimentos ulteriores, para os quais serão carreados outros materiais de análise e conceitos suplementares ainda não formulados. Mas não se deixará de dizer, desde já, que a oposição {água / fogo} com que começa o primeiro tríptico da lengalenga e termina o segundo, remete para o contexto culinário da parte contística, sendo os seus elementos retomados na rainha e no rei, com que simbolicamente com cada um deles se identifica.

Admitindo, pois, como boa e correcta esta análise, designadamente nas suas implicações estruturais, conclui-se que a escolha dos actores da lengalenga não é casual. Tão perfeita, exacta e precisa é que só podem resultar de um aprofundado trabalho simbó- lico que eliminou tudo o que era supérfluo e insignificante. Por isso, os mundos da domes- ticidade, da natureza e da sociedade são nela inteiramente permeáveis, como se o sentido pudesse deslocar-se sem peias, de elemento a elemento, no fácil trânsito das analogias e das proximidades tópicas e simbólicas.

Neste conjunto, a rainha e o rei estão, em certa medida, à parte, por serem imagens directas da carochinha e do rato. Assim o rei arrasta o c. pelas brasas porque repete o rato que morre «cozido e assado»; e a rainha conforma-se com as atitudes da carochinha antes

do casamento, não chorando, mas proclamando a sua feminilidade e desejo na cozinha onde o rei ainda não tinha morrido.