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O baile da tripeça perante o choro da carochinha é manifestamente estranho. Não é o bailar uma expressão de alegria e de regozijo? Como é que, pois, a tripeça exulta com a morte do João Ratão? A resposta a estas questões tem diversas componentes. Comecemos pela mais simples, a semântica.

A tripeça é, segundo os dicionaristas, um pequeno tamborete ou «assento de três pés e sem respaldo».435

O termo é sinónimo de tripé, o qual aparece numa das versões de recolha recente (V11). Conotado com ambos está a «trempe» que designa um objecto de uso

corrente nas cozinhas rurais, constituída por um «arco ou triângulo de ferro, assente sobre três pés, onde se colocam as panelas para ir ao lume»,436

bem como frigideiras e outros instrumentos de fritura ou cocção de alimentos.437

Tripeça, tripé, e trempe teriam origem na mesma palavra latina, tripede, que, por sua vez, vem do tripode grego.438

Servindo para elevar coisas em relação ao chão da casa ou a uma fonte de calor, a trempe é utilizada apenas na cozinha. A tripeça, porém, também é usada em outros lugares da casa, mesmo hoje, sendo utilizada para assento.

A coincidência entre o significado da palavra e a simbólica feminina da tripeça é afirmada na etnografia. Um «conto de caminho», coligido em Baião, ajuda a perceber estas relações.

T5.1: O frade e a tripeça

Uma mulher casada queria andar com um frade, e para isso ia pedir a Deus todos os dias à igreja que lhe cegasse o homem para que o pudesse fazer. O homem, escondido detrás da tribuna respondeu com voz disfarçada que lhe desse galinha e caldos gordos, que o marido cegava. A mulher assim fez

435

J. Almeida COSTA e A. Sampaio e MELO, Dicionário de português, s.v.

436

ID. ibid., s v.

437

O termo «têmporas» é também usado, por vezes, na linguagem popular em vez de trempe: «naquele tempo [usavam] umas caçoilas de barro preto, punham aquilo sobre umas têmporas». Alda SOROMENHO e Paulo SOROMENHO, Contos populares... I, p. 222.

438

Sinónimo de tripé é ainda a trípode, a «tripeça em que sentavam as pitonisas quando pronunciavam os seus oráculos» (ID. ibid., s. v.). Mas o termo também era usado na Grécia antiga para designar o utensílio culinário que se colocava «sobre o fogo ardente» e servia «para aquecer água» (HOMERO, Odisseia, VIII, 435 e X, 358-9 (pp. 139-40 e 172) tal como as panelas de ferro com três pés das cozinhas rurais portuguesas.

e ele ia dizendo que lhe parecia que estava mal da vista, até que disse estar cego de todo. «A mulher assim que ouviu isto meteu o frade em casa. Nesse tempo usavam-se umas bancas furadas, e o frade, sentando-se numa, deixou pendentes os testículos pela abertura da banca em que estava sentado». O marido, pretendendo ensinar seu filho a atirar à «frecha», «apontou-a às partes do frade, atravessou-lhas, de modo que não podia soltar-se, e largou com tripeça e tudo. Diz-lhe o homem: ‘O frade, larga a tripeça!’ Responde o frade: ‘Agora não, que levo pressa.’»439

A conotação feminina da tripeça, de tão evidente, não precisa de ser comentada.440

Mas não é este o único texto em que a imagem é empregue, como se pode comprovar pela seguinte prática mágica recolhida em Brinches.

T5.2: Cura do raquitismo

«Quando aparece uma criança raquítica e enfezada, e que aos circunstantes se afigura como sendo mais um triste caso de bruxaria, para libertar a infeliz vítima do terrível maleficio», faz-se o seguinte: «Chamam-se à casa onde se encontra a creança embruxada, um Manuel e uma Maria. Coloca- se no meio da dita casa uma tripeça, e, em torno desta, sentam-se no chão o Manuel e a Maria, ficando Manuel dum lado da tripeça e Maria do lado oposto. Em seguida, Manuel, pegando na creança, benze-a e diz: ‘Fulano! (o nome da creança) quem t’encalhou?’ Maria responde: ‘Uma alma perdida que por aqui passou.’ Torna Manuel: ‘Quem t’encalhou, t’há-de desencalhar. Em nome de Deus e da Virgem Maria. Toma lá, Maria.' Manuel, ao proferir as ultimas palavras, passa a creança por debaixo da tripeça para as mãos de Maria, que diz: ‘Deita cá, Manuel.’ A seu turno, Maria, com a creança nos braços, exclama: ‘Fulano! (o nome da criança) quem t’encalhou?' Responde Manuel: ‘Uma alma perdida que por aqui passou.' Acrescenta Maria: Quem t’encalhou, t’ha-de desencalhar. Toma lá, Manuel.’ ‘Deita cá, Maria.’ Diz Manuel, recebendo a criança das mãos de Maria, igualmente por debaixo da tripeça. A criança tem de passar assim nove vezes por debaixo da tripeça; e a cada passagem é necessario que sejam pronunciadas as mesmas palavras acima mencionadas. No fim das nove passagens, rezam-se cinco Padre-Nossos, cinco Ave-Marias e cinco Glorias-Patri; e estas orações oferecem-se a S. Cipriano, para que livre aquela criança do mal que a aflige. Tudo isto tem de executar-se durante nove dias successivos. E só assim a creança conseguirá restaurar a saúde.»441

O texto é de si mesmo elucidativo da utilização mágica da tripeça. Mas a trempe também é referida explicitamente num contexto de bruxaria numa tradição de Castelo

439

Leite de VASCONCELLOS, Contos populares..., II, pp. 56-7. Há outros dois contos, semelhantes no essencial, em Alda SOROMENHO e Paulo SOROMENHO, Contos populares..., II, pp. 37-9 e 39-41, no primeiro dos quais, no entanto, não se diz em que é que o frade estava sentado. Mas no segundo, há um padre que se senta descomposto numa cadeira (óbvia actualização da tripeça).

440

Bernardino BARBOSA, Contos populares de Évora, ed. de Rui Arimateia, Lisboa, Aríon, 2000, pp. 171-2, edita um conto com um contexto semelhante: um soldado observa uma tripeça para cima da qual tinham saltado uma mulher e um frade dando um «beijo á napolitana» de que nunca ouvira falar. Mas, «morto de curiosidade, começou a estender o pescoço para ver dar [tal] beijo [...]. E em cima da trepeça havia um cortiço cheio de nozes», que ele fez cair, com grande barulho.

441

Branco: «Se desconfiamos que alguém que nos visita tem arte do demónio ou é bruxa e queremos adquirir a certeza, bastará colocar detrás da porta as trempes e a vassoura. Por mais que a visita queira sair não o conseguirá sem que primeiro se retirem esses objectos.»442

E num conto da colectânea de Leite e Vasconcellos é dito que as bruxas «põem a sertã sobre as ‘têmporas’ (trempes) sem lume»,443

certamente para significar a alteração da ordem das coisas produzida pela bruxaria. Esta simbologia justificaria a recomendação de colocar «um banco de pernas para o ar detrás de uma porta» quando alguém se quer ver livre de visitas indesejáveis ou quando demoram muito, porque assim ela logo sairá.444

E não deixa de haver quem pense que ainda melhor para produzir tal efeito é utilizar uma tripeça, com uma vassoura colocada sobre ela.445

O rito referido em T5.2 é atestado noutros textos. Num deles, a criança com

quebradura é passada pelo abertura feita num carvalho pequeno, aberto ao meio, estando de um dos lados um João e do outro uma Maria,446

assim simulando a cópula que produziu originalmente aquele ser. Estes símbolos estão, por outro lado, por detrás da expressão «Para curar uma criança de quebranto, é bom passá-la por uma meada de linho»447

e do rito a que ela corresponde, supondo-se que tal meada esteja aberta à maneira da matriz no parto; ou ainda do rito atestado em Brinches, segundo o qual a criança embruxada é passada por uma pepia (coroa) de trovisco numa encruzilhada pela uma hora da noite,448

ou por uma pepia de farinha peneirada com a mão esquerda por um Manuel e três Marias.449

De facto, as varas de vime, amieiro ou carvalho, as meadas de linho, ou as pepias de trovisco e de pão são como que matrizes simbólicas onde se reintegra o quebrantado, quebrado ou embruxado, sendo dado novamente à luz belo, livre e inteiro. Um dos textos utilizados di-lo explicitamente: «aqui tens a tua afilhada sã e salva /como na hora em que foi nada.»450

As pernas da tripeça do T5.2 teriam a mesma função que o carvalho, a meada ou a

pepia abertos: refazer simbolicamente o acto da concepção. É mesmo possível que, na sua «origem», o rito de passagem da criança pela tripeça fosse feita através de uma abertura semelhante à suposta no T5.1. A impraticabilidade do gesto teria levado à utilização das

442

Jaime Lopes DIAS, Etnografia da Beira, III, 2ª ed., pp. 215-6.

443

Leite de VASCONCELLOS,Contos populares..., I, p. 434.

444

ConsiglieriPEDROSO,Contribuições..., p. 130.

445

Jaime L.DIAS,Etnografia da Beira, V, p. 276. Este costume é atestado na Sertã.

446

ID.,op. cit., I, 2ª ed., p. 174.

447

ConsiglieriPEDROSO,op. cit., p. 137.

448

FILOMATICO, loc. cit., pp. 75-6.

449

ID.,loc. cit., A Tradição, 1 (7 Jul.) 1899, p. 111. Segundo o Almanaque de Lembranças para 1866, p. 311 (Cf. F. Adolfo COELHO, Obra Etnográfica, I, p. 364) o mesmo rito era praticado em Alva, no Alentejo, com a particularidade de que à pepia se chama ‘biscoito’, por ser feito com farinha de centeio por três Marias. Segurado por duas delas, numa encruzilhada, a outra e um Manuel faziam passar por ele três vezes a criança embruxada. No final eram lá deixadas as vestes para que a bruxa ficasse «entretida com elas a procurar a criança». Se alguém, no regresso, olhasse para o lugar em que ficou a roupa, ficaria embruxada. Ritos similares são mencionados por Leite de VASCONCELLOS, Tradições populares..., pp. 147-9, a propósito da noite de S. João, na qual se passam as crianças quebradas por varas de vime, de amieiro, de olmo ou de carvalho cerquinho, abertas ao meio, etc. Num destes rituais, provindo do Minho, as três Marias vão para o local onde se corta a vara de vime a fiar na roca.

450

pernas, as quais prolongam a matriz. Em alternativa, a forma da tripeça seria a da trempe aberta, o que ainda mais incute a ideia do cozimento sexual do frade, paralela da assadura do rei, de que se fala no final da lengalenga da carochinha.

Para algumas destas deduções há confirmação em imagens míticas referidas por eruditos. No Fausto diz-se: «Na chave um guia certo e seguro tens; / Segue-a! Com ela descerás às Mães! / [...] Uma tripeça em brasa é o sinal / de que ao fundo dos fundos, abismal / Chegaste. [...] E vai direito ao dito tripé. / Toca-o com a chave.»451

Segundo a interpretação de Jung, «No reino das mães, [Fausto] encontra o tripé, o vaso hermético no qual deve ser celebrado o ‘casamento real’. Aqui Fausto tem necessidade da vara mágica fálica para realizar a grande obra que é a criação de Páris e de Helena.»452

No fundo há, pois, concordância entre a tradição oral portuguesa e o texto de Goethe, o que só pode decorrer de que as estruturas simbólicas que os determinaram relevam do mesmo complexo de significados e de suas formas organizativas. Por isso é que, se a história da carochinha apenas fala de uma tripeça que se põe a dançar ao ouvir o pranto da carochinha pela morte do João Ratão, o seu sentido segundo ou terceiro depende da feminilidade simbólica da tripeça, que o contexto mais alargado impõe.

De tudo isto deduz-se facilmente que a questão de fundo dos textos colacionados – carochinha, T5.1, T5.2, e Fausto – é a da fecundidade feminina, a qual também está suposta

tanto na primeira parte da história da carochinha como na lengalenga, designadamente na porta que se abre e fecha e na rainha que anda em fraldas na cozinha, comentadas mais adiante. Estas observações permitem, aliás, obter uma resposta suplementar às questões do início deste ponto: sendo difícil pôr a tripeça a mostrar qualquer sentimento de pesar a não ser pela mudança do seu estado natural – os três pés assentes no chão – não se encontra aí a única razão do seu bailado. O que possivelmente nele está implicado é que a tripeça, de acordo com as atitudes da carochinha de que é isomorfa, exprime a disponibilidade feminina para a geração. Por isso dança. É possível mesmo que este segundo sentido seja o mais essencial. Malgrado a morte do rato, a carochinha e seus homólogos podem continuar a festejar a sua fertilidade intacta. Estando o tempo do luto e da celebração sintetizados num só gesto, é este último o que parece sobressair do texto.