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O fogo e a água

9. A S REGRAS DE COMER E VESTIR

As reflexões anteriores mostram que é fundamental para o entendimento da nossa história a natureza dos bens apetecidos e usados por cada um dos actores, deles depen- dendo a sua sorte. De forma a sintetizar a temática, distinguimos três questões: a origem das necessidades que colmatam, o efeito de favorecimento da individualidade ou da colectividade, e o seu modo de consumpção. No que respeita à origem das necessidades, o comer é natural e o vestir cultural. Por outro lado, no que releva da finalidade dos bens, a comida destina-se primariamente a satisfazer necessidades fisiológicas do indivíduo, ao

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passo que os bens do vestuário se destinam a cumprir o que a cultura considera adequado ao desenvolvimento das relações interindividuais e comunitárias.

Finalmente, no que concerne ao modo de consumpção, distinguem-se dois níveis, ordinário e cerimonial. No que respeita à comida, o modo ordinário de consumpção é intrinsecamente individual, embora de ordinário se faça em grupo, ou em comunidade, quando cerimonial. O requinte aumenta em função destes modos: «comemos» indivi- dualmente, «almoçamos» ou «jantamos» em grupo, e «banqueteamo-nos» cerimonialmente. Estes graus estão, de resto, correlacionados com os graus de aprofundamento da relação, sendo o banquete o paradigma máximo da sociabilidade, nele se afirmando os laços indeléveis que o regozijo sustenta e produz.

Ao contrário, os modos ordinário e cerimonial de utilização do vestuário são sempre intencionalmente sociais, apenas mudando os tipos que são adequados a cada circunstância. No dia-a-dia apenas se exige a cobertura do corpo com um traje comum, ou «féria». No modo dominical exige-se um vestuário mais cuidado e limpo; e no cerimonial que o vestuá- rio seja novo ou requintado. Mas o casamento tem uma particularidade: o vestuário nele usado tem uma dupla função: mostrar a mudança de funções, expressa no rito de passagem, e exaltar a beleza que favorece a relação amorosa. 417

Por se tratar de uma acto de significação única, exige-se que, pelo menos idealmente, não seja usado em mais nenhuma ocasião, ideia que foi implementada plenamente no ritual cigano do casamento, como pudemos testemunhar nos anos 80 na Cova da Beira, pois tanto o vestido da noiva como o fato do noivo e dos parentes mais próximos foi retalhado no último dia das festividades matrimoniais.

Acrescente-se, por outro lado, que o comer é ambíguo. O seu excesso é sempre condenado, segundo o que dizem dois provérbios: «barriga cheia, sepultura cheia»; e «de lautas ceias, sepulturas cheias». Esta apreciação não diz, porém, respeito aos alimentos requintados, destinados, em princípio, à boda, em relação à qual a consumpção excessiva não é inteiramente reprovada. Em conformidade com isso, o que está condenado na história da carochinha, não é tanto o comer em excesso ou o comer requintado que prejudicaria fisicamente o indivíduo («faz mal aos dentes», dizia a carochinha), mas sim o comer individual de bens que se destinam à afirmação dos laços da vizinhança (sociais) e do

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Faz-se notar que esta filosofia popular das funções do vestuário é aparentemente contrária aos ensinamentos de alguns padres da Igreja. S. Gregório, interpretado por Chaucer, diria o seguinte: «that precious clothing is blameworthy for the costliness of it, and its softness and its choiceness and elaboration, and for the superfluity and the inordinate scantness of it.» Chaucer prossegue com a definição do primeiro pecado, luxo no vestir: «that the superfluity of clothing, which makes it so dear, to the harm of the people; not only the cost of embroidering, the modish notching or striping, waving, panelling, winding, or bending, and like waste of cloth in vanity; but there is also costly furring in gowns, so much punching of holes, so much slitting with shears; further, the excessive length of the aforesaid gowns, trailing in the dung and in the mire, on horse and also on foot, men’s as well as women’s, so that all that which trails is verily in fact wasted, consumed, threadbare and rotten with dung, instead of being given to the poor; to the great loss of the aforesaid poor folk.» G. CHAUCER, The Canterbury Tales, in suo Selected Works, London, Chancellor Press, 1994, p. 257 («The Parson’s Tale») Texto original em G. CHAUCER, The Canterbury Tales, ed. A. C. Cawley, London, J. M. Dent, 2004, p.557. Notar, porém, que, mesmo aqui, o que é verdadeiramente condenado é o excesso do uso «ordinário» de vestuário festivo quando os pobres não têm vestes para se cobrir. De qualquer maneira trata-se de uma visão cristã relativa ao vestuário luxuoso que não coincide obrigatoriamente com a forma tradicional de ver da questão.

aprofundamento amoroso (interindividuais). Mas as atitudes relativamente ao vestir são diametralmente opostas a estas, porque é o excesso que permite o desenvolvimento das relações humanas com benefício evidente da sociabilidade. Só este excesso permite o seu contrário cerimonial, a nudez que dá lugar ao aprofundamento das relações produtoras da vida.

Uma fórmula sintética do que foi dito até aqui em termos das estruturas simbólicas organizadoras do significado da história da carochinha pode ser a seguinte: {rato / carochi- nha // comer / vestir // indivíduo / espécie // interior / exterior // natureza / cultura // morte / vida}, onde os termos comer, vestir e vida, têm significações complexas, como se viu em diversos lugares tanto deste capítulo como dos anteriores. E a conclusão a que estas reflexões conduzem é que, segundo a cultura portuguesa, é bom vestir-se esplendoro- samente com todos os atavios possíveis de forma a que o namoro e o casamento sejam possíveis; e é conveniente que a boda tenha olha e que os convivas comam bem, mesmo excessivamente, socialmente, e não isolada e alarvemente. Ou seja, é bom o que favorece a relação social, a interacção ou a sociabilidade festiva. Ao contrário é negativo o que remete o indivíduo para o centro de si mesmo, para as suas necessidades básicas, quando satisfeitas solitariamente. Daí as atitudes antagónicas dos actores principais.