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Os meninos do rei, quando tomam conhecimento da morte do João Ratão, partem os seus cantarinhos. Este gesto precisa de ser explicado. Mas começamos por debater a questão do género simbólico destas personagens. A hipótese de que partimos é a consi- gnada na Tabela 5.2, segundo a qual os meninos que partem os cantarinhos são simbolica- mente femininos e não masculinos, contrariamente ao que a lógica e o senso comum parecem indicar.

Para ilustrar e fundamentar esta afirmação, seria vantajoso trazer à colação textos da cultura popular portuguesa onde esta inversão entre o sentido simbólico e o gramatical fosse clara; mas não identificámos nenhum. A busca feita em tradições alheias trouxe-nos, porém, ao conhecimento um conto swahili onde a questão é colocada de forma exemplar. Todavia, a sua utilização coloca questões metodológicas e teóricas que não podem ser ignoradas. Parece, com efeito, incorrecto pegar numa tradição totalmente diferente da portuguesa para resolver uma questão que poderá ser classificada como «local», já que se refere a questões sociológicas mais do que antropológicas. De facto, segundo os princípios acolhidos nesta investigação, só se aceita que os mesmos factos, objectos e actores desem- penhem funções semelhantes quando o contexto narrativo, social e simbólico se assemelha ou contrapõe. Há, no entanto, argumentos para arriscar a utilização deste texto. O primeiro está em que os contos só reflectem a côr da cultura local em aspectos secundários; e o segundo, em que alguns esquemas simbólicos estão incorporados em produtos culturais de nações que nunca tiveram contactos significativos entre elas.

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C. G. JUNG,Methamorphoses..., p. 364.

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Mas mesmo sendo isto verdade, nunca se terá a certeza de que o paralelo em causa não resulte precisamente de um traço específico da cultura swahili. De facto, a estrutura das relações familiares nela existente é muito diferente da que se encontra nas sociedades em que terá sido produzida a história da carochinha. A poligamia é apenas uma das expressões mais notórias dessa distância cultural. No entanto, não se pode estabelecer com precisão em que medida essas diferenças terão tido implicações na questão relativa ao estatuto social das crianças e dos adolescentes nas fases de crescimento. De facto, os estudos consultados não são tão específicos que nos permitam deslindá-la.500

E mesmo que o fossem poder-se-ia sempre dizer que os contos não são imagens sociológicas das situações concretas de um de- terminado tempo ou lugar mas paradigmas que ajudam a perceber essas mesmas relações.

Além disso, a história da carochinha não é um texto que reflicta estruturas específicas da sociedade portuguesa; nem possivelmente a narrativa swahili reproduz as dessa etnia africana. O quadro de produção de ambas terá sido possivelmente mais genérico, derivado de paradigmas próprios de sociedades colectoras ou agrícolas muito mais antigas. E, nesse caso, faz todo o sentido a hipótese de que o estatuto dos jovens dentro da família nas respectivas culturas fosse muito menos diferente do que hoje. Com as cautelas necessárias e a título de ilustração utilizamos, pois, o texto que apresentamos em seguida.

T5.6. Nunda, devorador de homens

Um sultão tinha sete filhos. Tinha orgulho em seis, por serem «fortes e viris», mas não gostava do mais novo, um Cinderello («sitting in the kitchen as was his custom»). O sultão tinha uma tamareira donde eram roubadas todas as tâmaras. Os seus seis filhos mais velhos, vencidos pelo sono, não conseguiram impedir que uma ave, após o canto do galo, as roubasse. O mais novo, manteve-se acordado, mascando milho e grãos de areia. Veio a ave, que ele agarrou por uma asa e não deixou fugir, mesmo quando subiu tão alto no céu que a terra brilhava como se fosse uma estrela. Só a largou quando esta lhe deu poder sobre a chuva, socorrendo-o sempre que a chamasse do fundo do mar. Assim o Cinderello revelou «a sua face diante de seu pai», colocando-lhe na boca a primeira tâmara da árvore. O sultão disse então que dantes tinha seis filhos e agora tinha um só. Mas logo a seguir o tigre do sultão, Nunda, começou a matar vitelas, vacas, macacos, cavalos, camelos, homens e finalmente três dos seus filhos. O Cinderello foi em sua perseguição e conseguiu matá-lo enquanto ele dormia. O sultão «sentiu então que não havia homem na terra que fosse mais feliz do que ele». E toda a gente se curvava diante do Cinderello e lhe dava presentes porque «os tinha livrado da escravidão do medo».501

De todas as temáticas abordadas neste texto, a que nos interessa presentemente refe- re-se ao reconhecimento do sétimo filho do Sultão como seu verdadeiro filho. Chamado Cinderello «porque gastava todo o seu tempo entre as mulheres da casa», só adquire o seu novo estatuto quando sai desse meio de socialização primária e revela pelos seus actos estar

500

Refere-se apenas um: Morris ZELDITCH, Jr. «Cross Cultural Analyses of Family Structure», in Harold T. CHRISTENSEN, ed., Handbook of Marriage and the Family, Chicago, Rand McNally, 1976, pp. 462-500, especialmente pp. 479-84.

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preparado para assumir funções sociais de adulto, o que consegue quando apanha uma ave que rouba tâmaras – tornando-se, assim, senhor da chuva – e quando mata um tigre. Por estes actos, que o retiram do harém, revela a sua face – ou seja a sua verdadeira identidade de homem «forte e viril». Por isso é proclamado filho de rei. Esta sua nova condição é exaltada pelo sultão ao elegê-lo como seu verdadeiro filho e único homem da família. O texto consagra, pois, a passagem da condição social de Cinderello à de filho do sultão, ela- borando-a em termos simbólicos, numa espécie de rito de passagem difuso em que vai assumindo papéis masculinos até atingir o estatuto de caçador de mamíferos selvagens. Aí chegado, abandona as suas tarefas mulheris anteriores, relacionadas com a comida e a cozinha.

Se bem repararmos, notaremos que a condição do filho do Sultão, enquanto Cinderello, é homóloga da dos meninos do rei da história da carochinha. Nos dois casos vivem com as mulheres da casa e desempenham funções femininas. Carrear água é, com efeito, em termos de definição do género simbólico, semelhante a cuidar do fogo. Com efeito, na concepção tradicional da repartição do trabalho, ambas as tarefas são femininas. Por isso é que os meninos do rei, física e gramaticalmente ‘masculinos’ e sexualmente ainda indefinidos, são sociologicamente ‘femininos’.

Continuando na busca de paralelos de paralelos de outras culturas, encontramos um texto da Odisseia que parece contradizer as deduções feitas, ao apresentar Ulisses, homem endurecido em batalhas e trabalhos do mar, como um «Cinderello». De facto, ao chegar este homem de mil artimanhas à casa de Alcínoo, rei dos Faeces, quase no final da sua errância por mares e lugares míticos e muito depois dos actos que fizeram dele um dos heróis mais conhecidos da guerra de Tróia, «foi sentar-se na lareira, no meio das cinzas, junto do fogo». Se fôssemos fiéis aos princípios interpretativos anteriores deveríamos, pois, dizer que Ulisses se tinha infantilizado. Mas é óbvio que não é disso que se trata. O texto apenas confirma o que se disse acima: Ulisses só se senta nas cinzas com as mulheres da casa enquanto não é recebido como hóspede. O velho herói Equeneu chama, de resto, a atenção a Alcínoo para que aquela não era «a melhor maneira (nem sequer fica bem) de se receber um estrangeiro, assim no chão, no meio das cinzas.» E recomenda-lhe: «Levanta dali o estrangeiro e senta-o num trono embutido de prata».502

Só então o suplicante Ulisses foi admitido na sociedade masculina e deixou a sua condição de Cinderello.

Todas estas deduções estão de acordo com as estruturas etárias das comunidades tradicionais onde nem as crianças nem os jovens adolescentes tinham os mesmos direitos que os homens, só os adquirindo, em princípio, quando se casavam, ou então depois das «sortes» – ou seja, por ocasião do apuramento para o serviço militar – em que adquiriam algumas dessas prerrogativas, que incluíam, entre outras coisas, segundo os costumes de uma aldeia beirã de que fizemos o levantamento etnográfico, sair de noite e associar-se a todas as actividades relacionadas com a manutenção da tradição e com a posse de alguns dos seus segredos. Por isso, quando algum adolescente era encontrado fora de casa depois do sol-posto, os jovens mandavam-no «a toque de caixa» para junto dos seus, dando banho aos reincidentes, mesmo nas noites frias de inverno, num dos fontanários da aldeia.503

502

HOMERO, Odisseia, VII, 153-163 (p. 120)

503

A correcção destas deduções acerca do género simbólico dos meninos é confirmada pelas versões da história da carochinha que usam personagens femininas – menina, criada do rei, filha do rei, princesinha, criada da rainha, filha da rainha, cozinheira, ou a mesma rainha504

–- em vez de meninos do rei, filhos do rei ou infantinhos505

para significar os actores do início do tríptico relativo à sociedade. Tais versões são mesmo mais numerosas do que aquelas que usam seres gramaticalmente masculinos; e algumas delas são antigas. Mas não é a antiguidade ou o número que constituem o argumento decisivo para considerar que os meninos são femininos do ponto de vista simbólico-sociológico, mas sim as reflexões feitas anteriormente a respeito dos papéis por eles desempenhados. As versões que fazem coincidir o género gramatical dos actores com o simbólico não fazem mais do interpretar correctamente o que é referido de forma velada pela versão de referência e por aquelas que lhe seguem os dizeres.

A discussão do segundo aspecto do problema colocado no início desta partição – o quebrar o cantarinho – ajuda a clarificar ainda mais estas deduções. De acordo com o que se disse a propósito da fonte, o recipiente de transporte da água, seja ou não feminino em termos linguísticos, tem óbvias conotações femininas, como se deduz de algumas reflexões feitas acima. Tudo pode, de resto, ser confirmado num conto recolhido em Ourilhe e apresentado em seguida em versão muito sintetizada, onde existem situações semelhantes às da história da carochinha.

T5.7: A enjeitada

Uma mulher tinha uma filha e uma enjeitada em casa. A enjeitada era muito bonita. Mandou-lhe guardar a vaca, dando-lhe um peso de estopa para fiar e dobar. Ajudada primeiro por uma rapariga, que se assanhou com ela, uma mulher ensinou-lhe a dobar a estopa nos chifres da vaca. A mulher pediu à rapariga que lhe fosse buscar um cantarinho de água. Quando lhe foi levar a água a casa, a mulher abençoou-a dizendo que quando falasse deitaria pérolas pela boca, que colheria no avental. Chegou a casa com a meada fiada e a mãe ficou muito contente com as pérolas. Sabendo como as tinha obtido, mandou a filha a ver se lhe acontecia o mesmo. Mas esta quebrou a cantarinha e por isso a mulher amaldiçoou-a, começando a lançar saramagos da boca. Ajustou-se o casamento da rapariga que deitava pérolas pela boca com um rapaz, mas os pais meteram-na numa cuba e substituíram-na pela filha. Desfeito o engano, o rapaz casou com a enjeitada.506

O conto coincide com muitos dos textos e testemunhos aduzidos na definição das qualidades necessárias à boa dona de casa, simbolizando-as dialecticamente. Delas se destaca o transporte da água em cântaros ou cântaras de barro, em canecos de madeira, em cântaros de zinco, conforme a tecnologia existente. Registando os sucessos antagónicos das duas personagens relativamente aos cantarinhos, o conto associa o transporte da água ao

504 V3, V5, V6, V7, V8, V10, V42, V64, V71 e V72. 505 V1, V2, V4, V11. 506

fiar e dobar do linho, já abundantemente identificadas neste trabalho como funções tipicamente femininas.

O cantarinho, ou cantarinha, é celebrado na cultura portuguesa como símbolo da fragilidade associada à mulher. O «mote próprio» que Camões desenvolve numa das suas mais belas cantigas – «Descalça vai para a fonte / Leanor pela verdura; / Vai formosa e não segura. / Leva na cabeça o pote, o testo nas mãos de prata / [...] / Chove nela graça tanta / que dá graça à fermosura; / Vai fermosa, e não segura.»507

– apenas confirma, na singeleza dos motivos poéticos, a importância do pote ou cantarinho para a definição das funções femininas. De facto os outros elementos associados à insegurança são a «cinta de fina escarlata», o «sainho de chamalote», a «vasquinha de cote», a «touca» que descobre a garganta, as tranças d’ouro, a fita de «côr d’encarnado», as quais apenas proclamam a «graça tanta» de Leanor: os três últimos delineando os enfeites da cabeça e os dois primeiros os do resto do corpo. No entanto, a insegurança de Leanor está toda no pote, o único adereço que não tem a ver com os enfeites. Posto na cabeça de Leanor ele é o sinal por excelência da sua graça frágil. Não custa, de facto, imaginar os requebros do colo equilibrando o pote, mais difícil de conseguir quando vazio do que quando cheio. E também numa interpretação psicanalítica «um vaso é um símbolo indesmentível da mulher.»508

Refira-se para terminar este ponto que a atitude dos meninos, infantinhos, infantas ou criadas, ao quebrar os cantarinhos e ao deixar de ter a possibilidade de carrear água para o palácio do rei, põe em causa a hipótese formulada anteriormente de que, subjacente aos símbolos femininos da casa, estaria a ideia da manutenção da possibilidade de geração por parte da personagem feminina de quem estes seres são homólogos. Na quebra dos canta- rinhos, tal como na fonte que se seca, de que falaremos mais adiante, isso é completamente posto de lado. Essa potencialidade está, no entanto subentendida nas atitudes da rainha que anda em fralda de camisa na cozinha. Não se repetindo, porém, em todos os actores femi- ninos da lengalenga, não se pode afirmar que a ideia seja estruturante. Por isso não discri- mina os seres masculinos dos femininos; o que, aliás, não surpreende. Supor que todas os elementos pudessem ser coerentes em todos os planos em que são simbolicamente utili- zados seria exigir do mitógrafo uma agilidade mental inacessível a quem não conhecesse os meandros possíveis da interpretação.

Apesar disso, não é impossível ver nestes factos a implementação de um esquema dialéctico em que se afirma duas vezes (quando no âmbito doméstico) e nega outras tantas (quando no meio natural) a predisposição das personagens femininas para a geração, para no final restar definitivamente a rainha exageradamente disposta a gerar alguém. O mitógrafo é, com efeito, perito na implementação destes esquemas. Mas não ousamos supor que tivesse pretendido fazê-lo, mesmo que subliminarmente, apesar de ser possível esta leitura dialéctica.

507

Luís de CAMÕES, Rimas, pp. 55-6

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S. FREUD, The Psychopathology of Everyday Life, Harmondsworth, Penguin, 1976, p. 226. Poder-se-ia aprofundar esta leitura do quebrar o(a) cantarinho(a) estudando um paralelo referido por Freud (pp. 226-7) relato de Jekels sobre o quebrar de um vaso de flores por parte de um médico.