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João Ribeiro e o carácter murino

7. O S PROCESSOS DE DIFERENCIAÇÃO TEXTUAL

Um outro aspecto a considerar neste quadro genérico de análise das versões diz respeito à evolução dos seus conteúdos. O tema já foi ocasionalmente tocado nos pontos anteriores, mas merece ser completado com algumas reflexões suplementares sobre o que significam as variantes encontradas nos textos, identificando alguns dos processos que terão estado na sua origem.

O primeiro destes processos tem a ver com a capacidade de elaboração simbólica dos mitógrafos populares, a qual os leva a compor e recompor indefinidamente os materiais recebidos da tradição. Recebendo dela os esquemas fundamentais de elaboração simbólica, com eles reorganizam, segundo modelos mais ou menos pré-determinados, os símbolos de

150 V15, V17, V18, V20, V22, V25, V26, V27, V28, V29, V30, V31, V34, V36, V37, V38, V40, V43, V45, V47, V52, V59, V75, V76, V77 e V79. 151 V2, V4, V7, V8, V12, V13, V16, V71, V72. 152

Teófilo BRAGA, O povo português... op. cit., II, p. 312. Note-se que os textos a que o autor(ibid.) também aplica a designação de «histórias de acumulação», são três verdadeiras lengalengas, editadas por Rodrigues de AZEVEDO (Romanceiro... op. cit., pp. 454, 457, 463 e 467): «Conto do Macaco», «Lenga-lenga do gatinho» e «Lenga-lenga da formiga».

que foram imbuídos pela socialização. Não têm, por isso, de inventar nada de verda- deiramente novo; têm, sim, de colocar as pedras simbólicas na casa do sentido que dá pelo nome de contos, superstições, ensalmos, etc. Embora com arquitecturas diferentes, os blocos usados na sua construção são, em certa medida, universais. Os mitógrafos, por serem participantes e interventores numa cultura de origem que intuitivamente entendem, reinventam o significado colocando essas pedras ou blocos em novos contextos para afirmar, redizer e inculcar o sentido alguma vez intuído. A variabilidade das versões mais antigas do nosso corpus decorreria essencialmente da aplicação de tal conceito. Por isso é que nelas se não detectam grandes diferenças de significado, embora tenham alguma variedade de elementos constitutivos.

Todavia, em várias versões, sobretudo nas mais recentes, entrou em acção um segundo mecanismo, que apelidamos folclorização, no sentido de que por ele se repro- duzem quase automaticamente os dizeres e fazeres tradicionais. De acordo com este mecanismo, as narrativas, uma vez aprendidas, são repetidas sem alterações substanciais, esgotada que está a capacidade de reinvenção do significado por parte de contadores, que passam a considerá-las obscuras e ininteligíveis. De facto, quando a cultura tradicional entra em processo de esboroamento, os mitógrafos transformam-se em simples contadores- repetidores, por já não conhecerem as regras e imperativos da elaboração simbólica. Os símbolos, para eles, não fazem parte de um sistema de relações íntimas e plurais em que a realidade é intersignificada; são apenas estranhezas que se repetem sem se saber exac- tamente porquê. Em razão deste efeito de folclorização o texto tende a ser racionalizado e moralizado. A quase fixidez textual que se encontra em muitas das versões mais recentes proviria daqui.

O terceiro processo tem a ver com as diferenças entre os textos populares – espontâneos, simples, expressivos e repetitivos – e os literários. Com se viu, algumas das versões do corpus dão corpo à preocupação de alguns contadores-literatos em utilizar os instrumentos da sua arte para «melhorar» a tradição. Mas o resultado nem sempre é brilhante. A razão disso está em que nem se deram ao trabalho de conhecer os modos de produção tradicional, nem se submeteram aos seus ditames, nem entenderam o sentido das histórias que recontaram. Impuseram, por isso, à tradição um modo de produção que lhe é alheio. De facto, a regra de ouro da produção literária está em reiniciar e reinventar tudo em termos de arquitectura imagética, de expressividade e de enredo. Uma das notas distintivas do escritor é a originalidade. Fraca conta dá de si quem repete o que outros disseram. Qualquer zelador da grandeza da profissão apodará de plagiário quem faça uma simples contrafacção dos textos pronunciados pelo povo. E ninguém deseja correr o risco de cometer tal crime de lesa-belas-letras e de ser considerado literato de segunda classe. Por isso é que as versões de autor adulteram, às vezes profundamente, o sentido da história, na intenção de a reinventar de acordo com os modelos da arte literária.

Aplicando estes conceitos, dir-se-ia que o cotejo feito a propósito dos conteúdos mais discrepantes da maioria das versões relativamente à versão de referência, mostra que guardaram estruturas e esquemas narrativos muito aproximados. Mesmo algumas das versões recentes, escritas em contexto erudito, mantiveram elementos simbólicos tão tradicionais que subministram elementos válidos para a interpretação de lições mais antigas.

Isto só acontece, porém, quando o redactor apenas coloca em letra de forma a história que ouviu a testemunhas «autênticas» da tradição, sem tentar melhorá-la com conceitos, mesmo que de origem popular, estranhos à história,. Ao contrário, as versões de autor, enveredam frequentemente pelo caminho da dissolução dos significados do legado tradicional. Não são, pois, os acidentes de transmissão ou de recolha que produziram esse resultado, mas a vontade explícita de contar diferentemente um texto «original».

Seja como for, as versões coligidas são suficientes para recompor, num processo que tanto pode partir das versões mais antigas para as mais recentes como ao invés (embora o primeiro seja geralmente mais profícuo), algumas das fileiras de transmissão do texto por entre as racionalizações introduzidas, verificando quais os elementos carreadores do significado e identificando os que estão mais fortemente dotados de resistência ao processo de decomposição simbólica, resistência esta que utilizou a incompreensão dos contadores e a folclorização para os fazer sobreviver.

A possibilidade de utilização de todos estes elementos não impede, porém, de ver duas coisas: que a folclorização – ao dar importância a elementos que não têm referenciais ideacionais ou accionais reconhecidos – é cada vez mais dominante; e que a repetição mecânica substitui a reinvenção, ainda viva no século XIX. De qualquer maneira, todas as versões do nosso corpus dão indicações preciosas para a verificação das condições de perpetuação narrativa e dos processos de recriação que vigoravam quando a criatividade simbólica não era uma expressão sem significado.