• Nenhum resultado encontrado

Teófilo Braga e os animais diurnos e nocturnos

Teófilo Braga é, tanto quanto conseguimos apurar, o único intelectual português que fez um «estudo sobre o conto da carochinha». Incluiu-o no segundo volume de O povo português, onde ocupa, na edição mais recente, sete escassas páginas,105

nas quais está incluído não só o texto da V2, mas também outros extractos de obras que têm a ver com o tema. O

autor mostra-se sobretudo preocupado com a questão das origens e do «sentido mítico da história da carochinha», que pensa ter encontrado no conto décimo terceiro do terceiro livro do Pantchatantra.106

Teria chegado a esta filiação a partir de um lai de Marie de France onde um rato guloso casa com uma rata, sendo a gulodice «a cena principalmente desen- volvida».107

Por isso afirma: «por este lai remontamos às suas origens orientais do Pantchatantra, e daí ao elemento mítico desta parlenda infantil.»108

Com base nas fontes referidas na introdução de Benfey ao Pantchatantra e nas notas de Lancereau à tradução francesa do mesmo livro, considera que o conto teria sido transmitido «do Oriente para a Europa da Idade Média e para as tradições populares.»109

Seguindo a escola mitológica, sobretudo na acepção que lhe foi dada por Angelo de Gubernatis, Teófilo Braga identifica a carochinha com a noite, pois «este nome de carocho é sinónimo de escuro e negro».110

A confirmá-lo estaria o facto de a carochinha ser substi- tuída por uma velha, «a personificação mítica da noite», em algumas tradições estran-

104

http://www.riototal.com.br/coojornal/ vasques005.htm.

105

Teófilo BRAGA, O povo português..., II, pp. 309-15.

106

ID.,op. cit., II, p. 314.

107

ID.,op. cit., II, p. 313. Parece que o autor faz alguma confusão neste ponto. Na p. 315, refere e «fábula 64» desses lais como tendo um texto paralelo do Pantchatantra. Mas nenhum dos 12 lais escritos por Marie de France trata deste tema, como se pode verificar pelo texto original, em francês antigo, em http://www.umanitoba.ca/faculties/arts/french_spanish_and_italian/leslais.htm, ou em Marie de FRANCE, Lais, ed. Jean Rychner, Paris, Champion, 1983, ou em ID. Lais, trad. Pierre Jonin, Paris, Champion, 1982. O termo «souris» não existe em nenhum dos lais como se vê no índice completo dos termos neles utilizados em http://www.uottawa.ca/academic/arts/lfa/activites/travaux_ling/lais/slais.html. Noutra obra, da mesma ou de outra Maria (cuja existência é admitida por L. Harf-Lancner, «Intrdoduction», in Marie de FRANCE, Lais, Paris, Livre de Poche, 1998, pp. 7-9), Ysopets, ou seja Fables, escritas no estilo de Esopo, há uma fábula (n.º 6) sobre «o casamento do sol» que possivelmente tem origem no Pantchatantra. A outra fábula que fala de ratos (n.º 9) «o rato da cidade e o rato do bosque», nada tem a ver com a questão.

108

ID.,op. cit., II, p. 313.

109

ID.,op. cit., II, p. 315.

110

T. Braga segue frequentemente de forma acrítica as opiniões de Gubernatis nos seus Contos tradicionais do povo português, I, Lisboa, Dom Quixote, 1987, passim (por ex.: pp. 86, 90, 97, 98, 106, 111...).

geiras.111

E, seguindo Monier, Imbriani, Pitrè e outros, refere tradições de diversos lugares e nações em que se faz o casamento de alguém com um rato. Em Avelino o rato casa, num «singular casamento», com uma gata;112

em Pomigliano, com uma velhinha; na Catalunha, a carochinha é uma rateta;113

numa versão da Lorena é um piolho que casa com uma pulga; em Otranto, Itália, tal como numa versão grega, é uma formiga que desposa um rato.114

Teófilo Braga chega à conclusão de que «o sentido mítico da parlenda infantil portu- guesa, acha-se na segunda parte da história da carochinha, quando morre João Ratão, e é chorado pela natureza inteira, como Balder e todos os outros heróis solares».115

Mas não justifica as suas afirmações; apenas acrescenta: «A lenda portuguesa acaba por o rei não chorar, e é por isso como na de Balder, que representa a vaga claridade da noite, que João Ratão não ressuscita».116

No entanto uma leitura atenta do mito nórdico117

leva-nos a colocar

111

ID.,O povo português…, II, pp. 312 e 314-5.

112

ID.,op. cit., II, p. 313. O comentário não é original: encontra-se em Marc MONIER, «Les contes de Pomigliano», Revue des Deux Mondes, 24, (1, Nov.) 1877, pp. 140-1.

113

ID.,op. cit., II, p. 313.

114

ID.,op. cit., II, p. 313. Alguns dos textos a que o autor se refere serão estudados mais adiante.

115

ID.,op. cit., II, p. 315.

116

BRAGA.,op. cit., II, p. 315.

117

Para se avaliar a questão refere-se o que SNORRI STURLUSON (1179-1241) (The Prose Edda, transl. by A. G. Brodeur, New York, The American-Scandinavian Foundation, 1916, pp. 36 e 71-5) diz no seu Gylfaginning (XXII): «The second son of Odin is Baldr […] He is best, and all praise him; he is so fair of feature, and so bright, that light shines from him. A certain herb is so white that it is likened to Baldr's brow; of all grasses it is whitest, and by it thou mayest judge his fairness, both in hair and in body. He is the wisest of the Æsir, and the fairest-spoken and most gracious […] He dwells in the place called Breidablik [ = Broad- gleaming], which is in heaven; in that place may nothing unclean be.» Mais adiante (XLIX) o texto afirma: «Baldr the Good dreamed great and perilous dreams touching his life. When he told these dreams to the Æsir, [estes decidiram] to ask safety for Baldr from all kinds of dangers. And Frigg [mãe de Baldr] took oaths to this purport, that fire and water should spare Baldr, likewise iron and metal of all kinds, stones, earth, trees, sicknesses, beasts, birds, venom, serpents. And when that was done and made known, then it was a diversion of Baldr's and the Æsir, that he should stand up in the Thing [a assembleia dos homens] and all the others should some shoot at him, some hew at him, some beat him with stones; but whatsoever was done hurt him not at all […] But when Loki Laufeyarson saw this, it pleased him ill that Baldr took no hurt. He went to Fensalir to Frigg, and made himself into the likeness of a woman […] Then said Frigg: 'Neither weapons nor trees may hurt Baldr: I have taken oaths of them all.' Then the woman asked: 'Have all things taken oaths to spare Baldr?' and Frigg answered: 'There grows a tree-sprout alone westward of Valhall: it is called Mistletoe; I thought it too young to ask the oath of.' Then […] Loki took Mistletoe and pulled it up and went to the Thing. Hödr [irmão de Baldr] stood outside the ring of men, because he was blind. Then spake Loki to him: 'Why dost thou not shoot at Baldr?' He answered: 'Because I see not where Baldr is; and for this also, that I am weaponless.' Then said Loki: 'Do thou also after the manner of other men, and show Baldr honor as the other men do. I will direct thee where he stands; shoot at him with this wand.' Hödr took Mistletoe and shot at Baldr, being guided by Loki: the shaft flew through Baldr, and he fell dead to the earth.» Odin enviou seu filho Hermódr até junto da guardiã dos mortos para saber como poderia trazer Baldr de volta. Hermódr «told all those tidings which he had seen and heard. Thereupon the Æsir sent over all the world messengers to pray that Baldr be wept out of Hel; and all men did this, and quick things, and the earth, and stones, and trees, and all metals [itálico nosso], -- even as thou must have seen that these things weep when they come out of frost and into the heat. Then, when the messengers went home, having well wrought their errand, they found, in a certain cave, where a giantess sat: she called herself Thökk. They prayed her to weep Baldr out of Hel; she answered: Thökk will weep | waterless tears / For Baldr's bale-fare; / Living or dead, | I loved not the churl's son; / Let Hel hold to that she hath! And men deem that she who was there was Loki Laufeyarson, who hath wrought most ill among the Æsir.» Cf. também, Voluspo e Baldrs Draumar, in The Poetic Edda, transl. from the Icelandic by H. A. Bellows, Princeton/New York, Princeton Univ. Press/American Scandinavian

sérias reticências a esta assimilação entre o rato e Balder. De facto, Balder, por ser deus da luz, não pode ser identificado com a «vaga claridade da noite». Por outro lado, nada no mito se assemelha à história da carochinha. O único ponto de contacto entre ambas é que «todas as coisas mortas ou vivas» excepto Loki choram a morte de Balder.118

Mas tal dedução não justifica a assimilação feita. De resto, nenhuma personagem da lengalenga «chora» verdadeiramente a morte do João Ratão à maneira dos «homens, animais, terra, pedras, árvores e todos os metais», «como se saíssem do gelo para o calor», como diz Snorri. Algumas até dançam, como a tripeça e a rainha. E não pode deixar de considerar incorrecto assimilar o rei a Loki. Muito menos há referências a qualquer irmão cego do rato que o tivesse morto com ramos de visco guiadas pela mão de um semideus.

Desta sorte, tem de se dizer que a história da carochinha e o mito de Balder provêm de contextos totalmente inconciliáveis e que as conclusões de Teófilo Braga estão apenas fundadas na tese mitológica, que usa cegamente, e a que chega viciosamente: o rato tinha de ser solar porque não podia deixar de ser a reincarnação simbólica de Balder. De resto, as relações entre animais, astros e fenómenos meteorológicos, supostas por Gubernatis,119

em que o nosso autor se baseia, nem se justificam nem se sustentam. A tese mitológica – há tanto tempo posta de lado, e por boas razões120

– não capta o essencial do sentido da história. Pelo contrário, desvia dele a busca.

Apesar disso, Teófilo Braga faz algumas observações úteis e dá algumas pistas de investigação, que obviamente seguimos, ao identificar vários paralelos da história. Assim, de uma versão grega onde se afirma que «a formiga fica viúva, porque aquele que é rato deve ser guloso», conclui a respeito da preferência da carocha pelo rato que «Na versão insulana [de S. Jorge], o rato é também considerado guloso e por isso preferido.»121

Um

Foundation, 1936, pp. 1-28 e 195-200; e o estudo de Georges DUMÉZIL, «Balderus et Hoterus» in suo Du mythe au roman, Paris, PUF, 1983, 2ème éd., pp. 159-62.

118

O choro pela «morte de Baldr» por parte de «todas as coisas criadas, homens, animais, plantas e pedras» é igualmente assinalada, num outro contexto, por Adolfo COELHO,Obra Etnográfica, I, p. 450.

119

Cf., por exemplo, Angelo de GUBERNATIS, Mythologie zoologique ou les légendes animales, II, Paris, A. Durand et P. Lauriel, 1874, pp. 43-4, onde diz que o gato, enquanto branco [mârgâra], «o varredor da noite», «é a lua»; mas enquanto aranyamârgâra, gato da floresta, negro, «simboliza a noite escura e persegue» os animais inocentes. E mais adiante (p. 44) diz que «o gato-lua come os ratos cinzentos da noite»; ou ainda, que «a lua, também ela personificada sob a forma de um gafanhoto ou locusta, é, por outro lado, o pretenso idiota que tudo conhece, tudo vê, tudo compreende e tudo ensina» (p. 50). O idiota é o adivinhão (ou Grilo) de alguns contos portugueses, como se verá mais adiante (Cap. 4).

120

Referem-se dois comentários em abono da afirmação. James Frazer, a respeito da interpretação feita, segundo a mesma teoria, por Sir George W. Cox, do mito de Édipo, diz o seguinte: «Édipo era o sol, o seu pai Laio, a escuridão da noite e a sua mãe Jocasta, o céu violeta; enquanto a sua filha Antígona poderia ter sido, como M. Bréal pensava, ‘a luz que algumas vezes raia a oriente, quando o sol se afunda em sono no ocidente’.» E comenta: «Assim a velha história trágica de crime e arrependimento é eliminada e um agradável quadro de pôr-do-sol e nascer-do-sol é pintado em tons róseos, na tela vazia». Cf. J. FRAZER, «The legend of Oedipus», in Lowell EDMUNDS and Alan DUNDES, eds., Oedipus, A Folklore Casebook, New York, Garland, 1984, p. 34, n. 8. O segundo, mais substantivo, é de Cl. LÉVI-STRAUSS (Mythologiques, IV, Paris, Plon, 1971, p. 38): «Max Müller e a sua escola tiveram o imenso mérito de descobrir e decifrar em parte o código astronómico que os mitos utilizam frequentemente. O seu erro, comum a todos os mitólogos desta época e de outras mais recentes foi querer compreender os mitos por meio de um código único e exclusivo, quando há muitos simultaneamente em acção.»

121

T. BRAGA, O povo português..., II, p. 313. O Almanaque do Arquipélago dos Açores para 1868, p. 106 precisa que o dinheiro está «enterrado». Cf. Adolfo Coelho, Obra Etnográfica, I, p. 433

outro comentário digno de menção refere-se ao pormenor de «a velha dos contos italianos e inglês, ou a carochinha no conto português, acharem a moeda ao varrer a cozinha». Segundo o autor isto estaria «ligado nas superstições populares à crença de que na casa em que há baratas existe dinheiro.»122

Mas, se a ideia de fundo parece estar correcta e pode ser demonstrada, como faremos mais adiante, o seu fundamento parece ser diferente do suposto por Gubernatis, seguido por T. Braga: «A rata nunca é concebida senão em relação com as trevas nocturnas, e por consequência, dando extensão ao mito, em relação também com as trevas do inverno, donde saem mais tarde a luz e as riquezas.»123

Em síntese, pode-se dizer que, apesar de algumas intuições correctas, o breve ensaio de Teófilo Braga chega a um verdadeiro impasse interpretativo. O pressuposto único de onde parte – a oposição {dia / noite} – não o poderia levar mais longe. A principal razão das insuficiências do seu estudo resulta, pois, das limitações teóricas da escola que adoptou; e de tentar erradamente retirar significações de personagens isoladas e exteriores ao contex- to literário e cultural da história, independentemente do que lia nas versões de si conhe- cidas. A questão é crucial: a narrativa, ela mesma, nunca pode ser deixada de lado em qualquer momento da interpretação.

Estas deficiências têm, porém, a vantagem de nos precaver contra as ideias simplistas e contra a metodologia de caçador de borboletas: em primeiro lugar porque nos alertam para o perigo de desprezar o trabalho simbólico feito, com grande mestria, ao longo de centenas e centenas de anos, por milhares de gerações de mitógrafos; e, em segundo, porque nos obrigam a atentar em aspectos irrelevantes e anódinos, que, não tendo o brilho de borboletas de mil cores, nos levam a descer ao fundo do poço do sentido, à maneira dos personagens dos contos que ali encontram princesas encantadas e jóias refulgentes. A prudência, assim ganha, obriga, pois, a procurar significações na pluralidade das versões e nas suas comunalidades, numa atitude reverencial pelo trabalho dos pensadores populares. Seja como for, não podemos deixar de dizer que o ensaio de T. Braga nos ajudou a circunscrever-lhe o «espaço mítico», embora por vias completamente diferentes das por ele intentadas.