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O fogo e a água

6. A MUDANÇA DE NOME

As breves observações feitas no ponto anterior acerca do nome da principal personagem masculina da história merecem ser completadas, referindo que, sobretudo nas versões mais antigas, o noivo começa por ser identificado simplesmente pelo nome da sua espécie – rato ou ratinho – e que, por ocasião do casamento, passa a ser chamado João Ratão ou João Ratinho. Menos numerosas são, com efeito, as versões que dizem indiscri- minadamente João Ratão antes e depois do enlace.392

Entre as que referem a mudança de nome encontra-se a V1: «o ratinho casou com a

carochinha e ficou-se chamando o João Ratão»; ou a V3: «Entrou o ratinho que, depois de

casar com a carochinha, se ficou chamando João Ratão.» Entre os textos mais explícitos desta categoria estão a V4 – «E casaram. Ele ficou daí por diante a chamar-se João Ratão» –

e a V11 – «o ratinho que começou a chamar-se João Ratão...» Outras assinalam o nome

humanizado por ocasião da boda mas não sugerem a sua mudança, como a V2 que reza

assim: «Casaram-se, e ele chamava-se o João Ratão». A V5, de forma mais ambígua, diz:

«No dia do casamento a doninha arranjou um caldeirão de papas para a boda. Enquanto eles se arranjavam disse a doninha para o João Ratinho», etc.

Poder-se-ia pensar que o facto de o rato se chamar João Ratão, mal ele entra na história, resulta de um processo de contaminação narrativa, como acontece frequentemente em textos da literatura oral, por força de uma eliminação das transformações carac- terológicas ou funcionais das personagens. Tal hipótese não explica, no entanto, o texto das versões em que o rato começa por ter um nome comum e passa a ter nome de homem no casamento. Por outro lado, não parece a priori incorrecto supor que a atribuição do nome de João Ratão ao rato por ocasião do casamento resulta do facto de se dever logicamente começar por identificar a espécie animal para, em seguida, lhe atribuir um nome próprio. Com isso concordaria a V27 quando refere que passou diante da janela da carochinha «um

rato muito pequenino, muito bonito» que disse chamar-se «João Ratão».

Parece, no entanto, que também esta hipótese não explica convenientemente os factos já que o tempo narrativo se não repercutiria nas acções e transformações dos actores. Nesse caso seria irrelevante quer a trama quer a natureza das acções. Se, na verdade, se deve dar alguma razão à crítica de Mary Douglas à proposta estruturalista,

392

quando afirma que «A linguística e qualquer análise modelada na linguística só podem ser ciências do sincrónico [e que a] análise estrutural só pode revelar os mitos como sem tempo, estruturas sincrónicas fora do tempo»,393

não se pode deixar de ver que as versões – certamente as mais recentes – que não supõem a mudança do nome retiram à história mais significado do que qualquer análise estruturalista. Só o conto com princípio, meio e fim, em termos das acções e características dos actores é que faz sentido. Por isso é que insistimos acima sobre a sua diferenciação relativamente às lengalengas, onde a intemporalidade é parte integrante do seu modo de produção. No conto porém, a história e a sequência dos actores não pode ser desvinculada do sentido.

Não sendo nenhuma destas hipóteses suficiente, impõe-se formular uma outra. Segundo ela, a diferenciação dos nomes entre o princípio e o meio da história teria por finalidade significar uma mudança de funções. Os fundamentos desta hipótese são três: o primeiro é que as versões que a justificam têm mais qualidade; o segundo, que convém que haja, por razões narrativas e sociológicas, uma simbolização da mudança de estado; e o terceiro, que a mudança de nome não pode ser derivada mas primitiva. A primeira razão, já suficientemente documentada, terá novas achegas no ponto seguinte. Por isso apenas explanamos a segunde e a terceira, intimamente ligadas, as quais derivam de que todos os momentos de passagem têm vantagem em ser ritualizados pela assunção de um nome que lembre a transformação social dos actores, as suas novas responsabilidades e o seu novo status.

Tal obrigatoriedade é expressa numa tradição popular antiga relativa ao nome das crianças que, antes de serem baptizadas e de receberem um nome próprio, davam pelo nome comum de Custódio ou Custódia.394

Da mesma maneira a mudança de estado de sol- teira para casada por parte da mulher nas sociedades modernas implica a substituição do seu nome de família pelo do marido. Na Bíblia, por outro lado, as novas funções ou vocações especiais são assinaladas da mesma forma: Jacob passa a chamar-se Israel (Gn 35,10) quando recebe a bênção de Deus em Betel, por ela sendo feito pai de uma multidão de povos; e Simão recebe o nome de Pedro (Mt, 16, 17-18) quando Cristo lhe atribui funções especiais na Igreja nascente. Em consonância com estes factos, quase todos os papas mudaram de nome ao assumir funções. E a entrada em religião em muitas ordens monásticas foi durante séculos significada pela assunção de um novo nome. Numa palavra, em muitos ritos de passagem – baptismo, casamento, tomada de votos, eleição papal – o novo nome indicava um novo estatuto, função ou missão.

Faz, pois, sentido a atribuição de um nome humano ao rato por ocasião do casa- mento. Por ele o mitógrafo significaria a sua nova condição social e as suas novas funções na família e na comunidade; nome que, em termos teóricos, deveria representar a sua «humanização», ou seja o domínio sobre as suas tendências instintivas e naturais; nome que

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Mary DOUGLAS, «The Meaning of Myth, With Special Reference to 'La geste D'Asdiwal'», in Edmund LEACH, ed., The Structural Study of Myth and Totemism, London, Tavistock, 1968, p. 67.

394

Diz J. J. Gonçalves PEREIRA («Crenças e Superstições», Almanach de Lembranças 1921, p. 205) que na freguesia de Cidadelhe, «Existe o costume de chamar ás crianças, antes de serem baptizadas: Custódio, sendo menino, e Custódia, sendo menina.» O mesmo se faz em Pedroso, concelho de Gaia, segundo refere J. D. da Rocha BELEZA, «Crendices e linguagem de Pedroso, Concelho de Gaia», Revista Lusitana, 19 (3-4) 1916, p. 286: «Costumam chamar Custódios aos recém-nascidos, emquanto não são baptizados.»

deveria implicar, por arrastamento, uma metamorfose comportamental, à semelhança da que a carochinha, a formiga e a doninha tinham sofrido, mesmo mantendo o seu nome animal ao longo das respectivas histórias,395

e que é significado na renúncia às guloseimas e na sua domesticidade plena. Metamorfose que o rato não sofreu, porque tudo nele é logro e engano.

7.A MORTE DO JOÃO RATÃO

A afirmação de que a mudança de nome do rato não foi acompanhada de uma mudança comportamental e que isso teve funestas consequências necessita de ser funda- mentada na análise dos textos, o que corresponde a avaliar a coerência entre o que o João Ratão diz no namoro e o que faz depois de casado e as consequências disso. Vejamos, pois, o que diz o corpus.

A versão de referência fala dos noivos por ocasião do casamento nos seguintes termos: «Viveram alguns dias muito felizes, mas tendo chegado o domingo, a carochinha disse ao João Ratão que ficasse ele a tomar conta na panela que estava ao lume a cozer uns feijões para o jantar. O João Ratão foi para junto do lume e para ver se os feijões já estavam cozidos, meteu a mão na panela e a mão ficou-lhe lá; meteu a outra, também lá ficou; meteu-lhe um pé, sucedeu-lhe o mesmo; e assim em seguida foi caindo todo na panela e cozeu-se com os feijões.» A V2, dizendo o mesmo, acrescenta alguns pormenores:

«Domingo à missa / Ambinhos vão, / Feijões ao lume / No caldeirão. / Viu-se a carochinha / Sem leque na mão. / ‘carochinha sem leque! / Que não dirão? / Vai-me por ele / Meu João Ratão.’ Chega ele a casa / Vai ao caldeirão, / Meteu um pé, / Meteu a mão / Caiu lá dentro / O João Ratão».

A V8, por seu lado, dá destes factos uma justificação plausível ao dizer que, tendo o

rato ficado em casa a tratar do almoço, «para se tornar prestável, foi deitar uma casca de cebola na panela, caindo de cabeça para baixo». A atitude é, aliás, consentânea com o que, segundo a V3, ele diz por ocasião do namoro: «Varro-te a casa, lavo-te a roupa, saio contigo

à missa». De resto, a disponibilidade do rato para as tarefas domésticas é confirmada pela

V6 que diz: «e quando já iam a caminho da igreja para se receberem, toparam uma folha de

couve. Queria a carochinha voltar a casa para a meter na panela; mas ele acudiu: ‘Eu lá vou, eu lá vou.’ E foi.»

Num outro grupo de textos está a V3 que escamoteia a verdadeira razão da ida do

Ratão a casa, dizendo: «Dias depois foram ambos à missa e, na igreja, disse João Ratão: ‘Estou com tanta debilidade!’ E a carochinha respondeu: ‘Vai num instante a casa, abre o armário, tira um bocado de pão, molha uma sopa na panela e come. Aqui te espero.’ Foi o João Ratão e fez o que a carochinha lhe tinha dito; quando, porém, meteu o pão na panela,

395

É conhecida uma excepção numa versão coligida em Portel por António Fontinha em 1999 e não incluída no corpus, onde a personagem feminina é chamada «Maria Carochinha» (comunicação pessoal do colector). Na tradição hispano-americana, como se verá mais adiante, a personagem feminina também assume um nome humano: Señorita Matínez e posteriormente, segundo parece, Señorita Martina. Estamos em crer que, tanto no exemplo português como na tradição espanhola e hispano-americana, a atribuição de um nome à carochinha decorre de uma contaminação pelo facto de o rato também ter um nome próprio.

ficou-lhe dentro o braço; acudiu com o outro e lá ficou também; apressou-se a apanhar os braços com a boca e a cabeça caiu na panela, e bem assim o corpo todo do João Ratão.»

Factos semelhantes são referidos na V4 que dá uma justificação ligada à sua apetência

pela comida: «Quando ela saiu para a fonte, o João Ratinho fechou a porta e pôs-se a lamber as papas com a mão, mas, como estava seguro só numa, escorregou e foi dentro.» Finalmente, a V7 aplica-lhe epíteto de guloso como explicação do infausto acontecimento:

«No domingo foram à missa e quando estavam na igreja a carochinha teve muito calor e como tinha esquecido o leque, mandou o João Ratão a casa para o trazer. Mas o João Ratão que era muito guloso, ao cheirar a panela, meteu a mão para tirar um pedaço de toucinho que andava a boiar. Escaldou-se e: / Meteu o pé, / Meteu a mão / E pela olha da panela / Caiu na sopa o João Ratão.»

Estas citações permitem fazer um balanço da transmissão do texto. As V1 e V2, bem

como grande parte das versões mais antigas (V3-V5), não se delongam em explicações.

Limitam-se a relatar de forma simples os factos associados à morte do rato, quase dando a impressão de que ela acontece por acidente. No entanto, as V6 e V8 mostram a preocupação

do noivo em cumprir um dever doméstico, na sequência das aptidões afirmadas na fase do namoro. Por outro lado, a V3 avança um pouco mais na expressão de sentimentos masca-

rando a gulodice sob o conceito de debilidade que teria acometido o João Ratão num momento particularmente importante de expressão da vida comunitária – a missa – o que reforça a ideia da sua impreparação para assumir as funções de um ser plenamente inte- grado na sociedade.

Fica, pois, em evidência um paradigma de evolução que parte de relatos mais tersos para outros em que a narrativa é comandada por interpretações progressivamente psicolo- gizantes e moralizantes. Assim o qualificativo «guloso» aparece explicitamente num grande número de versões,396

e implicitamente nas que referem ser o rato incapaz de resistir ao cheirinho agradável que emanava da cozinha397

ou de não provar o que estava no caldei- rão.398

A matéria é, aliás, tão clara que não se justificam mais desenvolvimentos. De resto, as poucas lições que não coincidem com estas justificações – ter fome (V18), ou ser curioso (V11 e V25) – constituem manifestos eufemismos desta mesma gulodice.

Ainda no quadro dos comentários não substantivos, merece ser notado que em várias versões se não especifica que alimentosestavam na panela onde o rato caiu.399

Mas numa grande parte delas (designadamente nas mais antigas) são mencionados os feijões, quer sós, quer em feijoada de chouriço e toucinho.400

Noutras, menos numerosas, fala-se de carne de porco (toucinho, presunto, chouriço, paio),401

bem como de papas, cebola, galinha, linguiça

396 Guloso: V7, V13, V16, V17, V20, V21, V22; lambão: V23, V27, V29, V31, V33, V35, V38, V44; glutão: V45, V54, V57, V59, V62, V65, V66, V67, V68, V70, V71, V73. 397 V11, V19, V24, V25, V26, V28, V30, V34, V41, V48, V52, V53, V55, V56, V60, V63, V77. 398 V9, V14, V15. 399 V3, V4, V9, V11-V16, V19, V22, V23, V26-V28, V30-V33, V36, V37, V40-V42. 400 Só feijão: V1, V2, V9, V10, V13, V18, V19, V21, V24, V25, V29, V30, V33, V39, V40, V61, V64- V69, V72; feijoada: V34. 401 V16, V17, V34, V68, V69, V71, V76.

e toucinho, ou simplesmente de sopa.402

Assim, a festa de casamento, referida implícita ou explicitamente, incluía muitos comeres, com predominância de alimentos de «sustância», como diz o povo, em que o feijão e a carne de porco teriam o lugar principal.

Nesta gama de alimentos cerimoniais, surpreende a ausência de doces. A etnografia mostra que, pelo menos em tempos recentes, não há boda sem eles, mesmo em celebrações simples. E a surpresa é tanto maior quanto as guloseimas figuram em várias versões no ponto [1.1.2], como foi referido, como um alimento rico e excepcional, senão festivo. Por

outro lado, do ponto de vista das estruturas narrativas, pareceria adequado que houvesse, por ocasião do casamento, o mesmo tipo de bens que a carochinha tinha rejeitado no início da história.

Cremos, porém, que esta exclusão se justifica pela necessidade de adequar o jantar à medida da aculturação do rato. Ora este, em termos da sequência {cru  «cozido»-pelo-sal-

ou-fermentação  cozido-na-água-pelo-fogo  assado | doce}, o mais que podia atingir

era o penúltimo estádio e não o do {assado | doce}, já que nele se exprime a suprema aculturação não atingível por ele. De facto, a primeira parte da categoria {assado | doce} só aparece no fim da história em forma de trauma. Trazer ao banquete um alimento de excelência culinária seria, pois, introduzir um elemento espúrio e perturbador do sentido. Assim, todas as iguarias consumidas estão no terceiro grupo da série, ou seja, {cozido-na- água-pelo-fogo}.

O aspecto mais importante dos textos está, porém, no que se pode deduzir do significado da boda em termos das condições em que os bens cerimoniais devem ser con- sumidos e da sua função de desenvolvimento das relações comunitárias. A respeito do pri- meiro aspecto, refere-se que todo o festim é antes de mais o espaço de superação dos com- portamentos estritamente egoístas, conquanto seja dado livre curso à satisfação de desejos viscerais, dada a abundância e variedade de alimentos disponíveis. Se a festa tem como função «encher a pança», como diz o povo, é imperativo que os bens excelentes e abundantes sejam consumidos pelos convivas durante ela. Se, pois, é criticado quem «mete nos bolsos» o mesmo não acontece com quem come demais. Mas o que é verdadeiramente contraditório da natureza do festim e, portanto, anti-social, é o comer solitário.403

Parece ser este entendimento das funções do banquete que terá levado o mitógrafo a sugerir que a rato morre porque come solitariamente. A sua apetência exagerada pela comida cultural – ele que apenas conhecia os bens culturais pré-culinários – mostra um défice de socialização que lhe não permitiria viver harmoniosamente com a carochinha, toda ela centrada na procura de uma relação não egoísta. O sinal deste défice está, pois, em que não come civilizadamente, ou seja cerimonial e comunitariamente, os bens culturais propor- cionados na boda.

Várias particularidades das versões poderiam ser postas em evidência neste vasto conjunto de informações relativas às circunstâncias em que ocorre a morte do João Ratão.

402

Sopa da boda: V7, V27, V33, V36, V48, V62, V71, V72,V75; papas: V5, V20; galinha, linguiça e toucinho: V17; olha: V6, V7, V8, V41. A V45, muito recente, menciona o arroz-doce.

403

A V45 exprime de forma exemplar esse comer solitário e associal: «Durante a boda do casamento do João Ratão e da Carochinha todos os convidados estavam sentados à mesa e o João Ratão atraído pelo cheiro da comida que vinha da cozinha resolveu ir espreitar. Estava ao lume um imenso caldeirão de arroz doce. E o João Ratão, como era guloso, tentou provar o arroz doce e acabou por cair dentro do caldeirão.»

Não nos adiantariam, porém, muito mais na sua compreensão. Não resistimos, porém a fazer um breve apontamento acerca da olha, de forma a situar melhor o conjunto de alimentos em que entra a carne de porco no contexto da tradição etnográfica portuguesa e preparar algumas observações a respeito a tradição espanhola.

Os termos da questão podem ser deduzidos do texto da V6: «ao revistar a panela, [o

João Ratão] bispou lá um naco de toicinho e, querendo prová-lo, caiu dentro», o que leva a carochinha a dizer: «João Ratão caiu na olha, carochinha chora»,404

sendo de presumir que a rima tenha contribuído para a escolha. Expressões semelhantes encontram-se na V7: «E pela

olha da panela / Caiu na sopa o João Ratão».

Poucos são os paralelos da tradição portuguesa, de nós conhecidos, em que o termo olha aparece. Vale, por isso, a pena referi-los. O primeiro é um provérbio alentejano que diz: «Olha que muito ferve o sabor perde»,405

o qual poderia eventualmente justificar a preocupação da carochinha em velar pelo cozimento do caldeirão, afirmada ou insinuada por algumas versões. O segundo encontra-se em D. Francisco Manuel de Mello que, nas suas associações de ideias, assimila a olha à comida com chouriço, «em metáfora de cheirar»: «Essa é outra; e se ferve será cousa que cheire». E pergunta: «Pois havia de haver olha sem chouriço?»406

A olha culinária teria o odor agradável associado à comida com gordura de porco.

Estes sentidos são, porém, contrários aos do contexto mítico-mágico, onde o borbu- lhar da água por ocasião do solstício de verão também é chamado olha, sendo os seus efeitos muito diferentes dos que se lêem na nossa história. De facto, segundo uma crença registada em Madeirã, «A primeira água que nasce às primeiras badaladas da meia-noite de S. João, chama-se primeira olha. O que a beber será feliz. Daí a luta que se trava àquela hora junto das bicas do chafariz, na ânsia de todos serem os primeiros a bebê-la.»407

O termo olha é usado, pois, em dois sentidos antagónicos: a olha culinária destina-se a produzir, por meio do fogo, um bem-estar físico; a olha sobrenatural, que só simbo- licamente ferve, atinge as próprias «veras da alma» no seu borbulhar simbólico, só uma pessoa dela beneficiando. Ao contrário, a olha do festim destina-se a ser partilhada: com- plexa e elaborada, podendo ser muitas vezes repetida, está relacionada com o desenvol- vimento das relações interindividuais e comunitárias.

Estas deduções, segundo parece bem fundamentadas, não têm, porém, a ver directamente com os textos sob comentário, embora estabeleçam o quadro genérico do seu significado. Atendo-nos, pois, ao que está neles explícito, parece correcto dizer que o rato morre de desejo de comer; e tão forte é o seu desejo que come sozinho o que estava destinado à boda. A gula marca-lhe a caminhada incompleta para a sociabilidade; e condu- lo à morte.

404

Segundo os dicionaristas, olha significa: «Caldo gordo, ou a gordura de caldo; cozinhado feito e chouriço, carne, grão de bico ou ervilhas, pimentos, etc.» (J. A. SAMPAIO e A. S. e MELO, Dicionário de português, s.v.), ou ainda «guisado feito com carnes variadas e legumes» (Dicionário Houaiss da língua portuguesa, s.v.)

405

Thomaz PIRES, «Investigações ethnographicas», Revista Lusitana, 14, 1911, p. 112.

406

D. Francisco Manuel de MELLO, A feira de anexins, p. 119.

407