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Uma rainha que anda em fralda de camisa na cozinha configura, no mínimo, uma situação estranha: em primeiro lugar porque a sua presença nestas dependências do palácio, em vez dos salões reais, corresponde a uma degradação da sua alta posição; e, em segundo, porque não parece decente que a rainha vá para a cozinha com as vestimentas que só ficam bem nas câmaras privadas reais. Por isso, de acordo com o princípio de que, quanto mais invulgar mais significativo é um comportamento, não pode o facto deixar de prender a atenção do analista.

Para melhor lhe identificar o significado teremos de recorrer ao que é dito na tradição popular sobre coisas semelhantes. Mas o termo fralda não é frequente nos textos da literatura oral. Uma pesquisa exaustiva na colectânea de contos editada por Leite de Vasconcellos mostrou-nos que o termo só é utilizado numa facécia em que uma família, toda ela com nomes feios, pretende ocultá-los, não o conseguindo, por descontrole verbal de um dos seus membros. O texto, coligido no Porto, diz o seguinte:

T5.8: Nomes vergonhosos

«Havia numa aldeia um homem casado, que tinha dois filhos muito atolados, e toda a família tinha nomes muito esquisitos. O pai chamava-se João de Quilondres; a mulher, Madre Gonez; a filha Sim-Serias, e o filho Robalho Boutez. Os pais, como viam que a filha estava na idade de tomar estado, trataram de lhe arranjar noivo. O pai falou ao compadre dele, para consentir que o filho dele casasse com a filha. O compadre foi falar com o filho, que estava bastante distante, e propôs-lhe o contrato, ao que ele respondeu que primeiramente iria ver a noiva, e depois daria a decisão. Os compadres combinaram o dia em que o noivo devia ir a casa deles, e o pai da noiva preparou uma grande ceia para essa noite, recomendando a todos da família que ninguém falasse diante do noivo nos nomes deles, porque, como eram muito esquisitos, o noivo podia desgostar-se. Quando estavam todos reunidos à lareira, já prontos para cear, o irmão da noiva notou que ela estava mal composta e disse-lhe: ‘Ó Sim-Serias, olha que queimas a fralda da camisa!’ E ela, já quezilada por o irmão falar no nome dela, diante do noivo, disse para a mãe: ‘Ó minha mãe, Madre Gonez, olhe o que diz o nosso Robalho Boutez’. Levanta-se o pai muito zangado e diz: ‘Por vida de João de Quilondres, quem aqui tornar a falar, as orelhas lhe hei-de cortar!’ O noivo levantou-se arrebatadamente e disse: ‘Não virá João de Massaroco casar em casa de nomes de bico roboto’. E pela porta fugiu com todos os vapores.»509

O texto tem alguns pontos comuns com o da desmazelada de Trancoso, estudado anteriormente (T4.10), com a diferença de que o desmancho do casamento do T5.8 não se

deve ao facto de a noiva comer demais, mas ao excesso de desejo sexual, significado na sua descompostura perante o seu irmão. Aliás todos os nomes dos actores podem ser tomados

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Leite de VASCONCELLOS, Contos populares..., II, pp. 95-6. O autor, na sequência (pp. 96-7) reproduz um outro texto, muito semelhante, em que uma das meninas diz à outra: «Ó Sederica, Sederica, / Que se te queima a fraldica!», não havendo menção de estar ou não descomposta. Mas a visada ofende-se igualmente. E a resposta do pai é: «Pelas barbas do Calhantrampos [o próprio nome], / Que me haveis de pagar ambos!»

como eufemismos de termos sexuais, o que indiciaria uma transferência do comer real do

T4.10 para o comer simbólico do T5.8. Assim, nas atitudes da rapariga deste último texto

estaria explicitado o significado da fralda de camisa da rainha. Na verdade, em ambos os casos se trata de estar descomposto junto de uma lareira. E o facto é repulsivo para o noivo do T5.8 porque vê nisso uma confirmação dos nomes – manifestamente indecorosos e

indiciando palavras soezes – dos seus possíveis futuros familiares.

O contexto sexual da atitude da rainha pode, por outro lado, ser confirmado pelos conceitos, aparentemente descosidos, que D. Francisco Manuel de Mello utiliza a propósito do tema «em metáfora de camisa», como se lê em seguida.

T5.9: Anáforas da manga e da fralda

«Homem, se você não vinha faziam de mim mangas ao demo. ‘Você para minha defesa vale mais do que uma manga de mosqueteira.’ ‘Com que, só com o meu mangalho se acha você bem?’ ‘Olhem o mangaz, o pago que me dá!’ ‘Até aqui, meus amigos, vai isto muito frio: necessitam os chistes de manguito.’ ‘Ainda agora a metáfora anda com manguitos: deixe-a você ir remangando, que os equívocos virão aí pelo cabeção.’ ‘Pois dizem vocês algum sotaque, que não seja tão fraca roupa ou abaixe a frauda?’ ‘Já você meteu sua nesga?’ ‘Venha para cá; chegar-lhe-ão a roupa ao couro.’»510

Tal como no T5.8, as associações feitas pelo autor são bastante evidentes e por isso

não necessitam de justificação. Se tomarmos apenas o que interessa ao nosso argumento, notaremos que algumas palavras-chave – mangalho, mangaz, manguito e fralda – remetem para um contexto sexual.

Sejam, pois, as situações de origem popular, sejam as insinuações de que o povo usa e um autor junta, sobredeterminando-lhes o sentido, qualquer delas permite-nos concluir que a rainha da história da carochinha, ao andar em fralda na cozinha, mesmo não estando tão descomposta como a noiva do T5.8, mostra estar igualmente desejosa de relações

sexuais; e tanto que até estaria disposta a tê-las num lugar tão impróprio, diria alguém bem- pensante, como a cozinha.

Por outro lado, estes dados reforçam a ideia de que a cozinha é o lugar mais adequado à manifestação do verdadeiro sentido da história, em razão de o fogo que nela se produz ser um dos símiles do fogo sexual. A sua utilização no conto deriva, aliás, de uma preocupação da boa tradição popular em economizar meios. Se, com efeito, a acção fosse colocada noutra dependência da casa, seria necessário dizer por muitas palavras o que está implícito no facto de a acção ali decorrer. Indo, pois, o percurso feito pela lengalenga da cozinha à natureza e retornando a ela, numa espécie de circularidade simbólica, mais não se faz do que mostrar o lugar central que a sexualidade ocupa no sentido da história, como aliás se conformará no ponto seguinte.

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