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H ETERÓNIMOS

5. O FORMICÁRIO FERVILHANTE

Como referimos anteriormente, a formiga substitui a carochinha em duas versões do corpus.225

O contributo que esta personagem traz ao significado da história necessita, pois de ser analisado, o que faremos examinado as suas características físicas e caracterológicas, quer em termos das ciências naturais, quer da etnografia.

No primeiro aspecto, refere-se que estão identificadas mais de seis mil espécies de formigas. Fortes e resistentes, conseguem sobreviver sem se alimentar, na terra húmida, perto de um ano.226

Têm, além disso, uma vitalidade surpreendente: decapitadas, continuam «a viver durante cerca de vinte dias [...]; conservadas debaixo de água durante oito dias, quatro formigas em cada sete voltam a viver». Sensíveis ao frio que não as mata mas adormece, esperam «num entorpecimento economizador, o regresso do sol.»227

A sua espe- rança de vida é bastante variada, vivendo as rainhas ou fêmeas fecundas uma dúzia de anos, as obreiras três ou quatro, e os machos, menos numerosos, entre cinco e seis semanas.

Entre as espécies de formigas contam-se as pastoras que têm predilecção pelas evacuações açucaradas de certos pulgões que «apascentam, tratam, seleccionam». «Outras, as micrófilas ou fungícolas, só se alimentam de cogumelos que cultivam [...] Formigas há que se dedicam à cultura de gramíneas, sendo por isso chamadas formigas agrícolas». E admitem junto dos seus formigueiros animais parasitas, sobretudo coleópteros,228

o que leva a supor que têm alguma predisposição para a associação com algumas carochas.

Não fazendo certamente estas características parte do rol de conhecimentos dos mitógrafos populares, a tradição guarda sobretudo as características da laboriosidade e da insensibilidade da formiga perante as necessidades alheias, como graficamente se diz na

224

Fernando PESSOA, Mensagem, Lisboa, Assírio e Alvim, 2004, 4ª ed., p. 19.

225

V15 e V35.

226

Grande enciclopédia portuguesa e brasileira, XI, s.v., p. 643.

227

Op. cit., p. 645.

228

bem conhecida fábula da cigarra e da formiga, de que reproduzimos em seguida uma versão popular extremamente tersa, recitada por uma mulher analfabeta de 80 anos, na Glória do Ribatejo.

T2.6: A formiga

«Foi uma cigarra pedir um pão à formiga. E depois a formiga assim: ‘Então, ó comadre cigarra, o que fazes tu no Estio? Levas o Estio a cantar? Pois olha, quem leva o Estio a cantar cantiguinhas ao ceifeiro do pão, leva o Inverno o dançar com fome.’»229

A fábula é muito antiga e tem sido contada de muitas maneiras. La Fontaine, começa com ela a sua obra mais conhecida, dizendo: «A formiga não gosta de emprestar / É esse o seu defeito mais pequeno / [...] Que fazias no tempo quente? / [...] / ‘Noite e dia a toda a gente / Eu cantava, que te não desagrade.’ / ‘Cantavas, estimo muito, / Pois bem, dança agora»,230

o que mostra que a tradição erudita coincide com a popular na caracterização destes dois animais em termos da respectiva industriosidade e preguiça.231

No entanto, estas notas caracterológicas pouco têm a ver com o nosso contexto. Nenhuma cigarra, com efeito, aparece na história da formiguinha que se quer casar. Mas o contraste feito com ela torna mais claras as qualidades de trabalho da formiga que é, com a abelha, um dos paradigma dos animais sociais. A sua perfeita organização está, de resto, tão interiorizada na cultura que se diz que sonhar com formigas significa ter a «vida bem encarreirada»,232

numa óbvia metáfora dos carreiros que elas fazem em conjunto em busca de alimento.

No entanto, são pouco estimadas pela população em geral, por constituírem «por vezes uma praga causadora de avultados prejuízos»,233

e por se alimentarem de substâncias animais e vegetais (frutos, cereais, pão, açúcar etc.) que os humanos também consomem. E a sua voracidade natural faz com que sejam associadas ao rato: «O diabo leve os ratos / Mai-los dentes das formigas, / Que me roeram os livros / Onde eu ‘studava as cantigas».234

Estes dizeres parecem sugerir que são as semelhanças entre estes dois animais que levaram o mitógrafo a uni-los pelo casamento. Mas a dedução não está correcta. A união proposta não se restringe ao simples acasalamento natural: estende-se a um casamento com resso- nâncias no próprio entendimento da situação humana.

229

Alda SOROMENHO e Paulo SOROMENHO, Contos populares..., I, p. 6. Normalizou-se a ortografia. Uma outra versão, originária de Herrera e Cedillo, Espanha, diz o seguinte: «Ó comadre formiguinha / empres- tas-me lá um pão. / Ó comadre cigarrega, / Que fizeste tu no verão? / ‘Andei a cantar cantiguinhas / Aos ceifadores do pão.» ID.,op. cit., p. 7.

230

LA FONTAINE, op. cit., p. 51.

231

Por ex., Leonardo DA VINCI (op. cit., p. 18) refere que «A formiga, por natural conselho, provê-se no verão para o inverno, matando as sementes colhidas, porque não renascem; e delas depois se alimenta.» Cf. texto original em http://www.letteraturaitaliana.net/pdf/Volume_3/t57.pdf, p. 38.

232

Camilo de OLIVEIRA, O concelho de Gondomar, Apontamentos monográficos, IV, Porto, Livraria Avis, 1979, p. 364.

233

Grande enciclopédia portuguesa e brasileira, XI, s.v., p. 645.

234

Leite de VASCONCELLOS, Tradições populares de Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986, p. 173.

Neste quadro de relações podem ser ainda referidos duas características atestadas pela tradição, a ctonicidade e a negridão, as quais associam a formiga aos dois actores da história da carochinha. No que se refere à ctonicidade regista-se o que é dito pelo fabulário português: «Tu, formiga mesquinha, sempre nas covas da terra [...] tu não comes senão trigo [...] tu bebes água da terra, [...] tu andas com os pés na lama.»235

Este dizer de uma mosca (que obviamente se opõe à formiga por ser aérea e não estar ligada a nenhum lugar), afirmando três vezes a ctonicidade – vive nas covas da terra, anda com os pés na lama e bebe água da terra – só se justifica pela necessidade de tornar bem clara a sua natureza e hábitos. De facto, do elenco feito, apenas o comer trigo pode ser interpretado em termos da para-domesticidade.

No seu conjunto, estas características vincam o carácter não totalmente domesticado da formiga. A ctonicidade estabelece uma relação com a terra física, distante da terra simbólica que significaria a aculturação. E a cor que a tradição registou – «É negra como o pez / E agarra como a torquez»236

–, seja ou não conforme com a que é dominante no formicário nacional, resume todas as outras. Em razão da sua negridão é que a formiga terá sido associada às bruxas. Esta associação está possivelmente na base de um costume de Mondim da Beira, onde os rapazes só debaixo de telha é que falavam dos ninhos encontrados. No exterior apenas diziam que tinha pedrinhas ou caçapinhos em vez de ovos ou passarinhos, de forma a enganar as formigas, que assim não iam lá comê-los.237

Sendo terrestres e silvestres, ficava fora de seu espaço divinatório o que se passava no interior das habitações.

Em função de tudo isto e do que afirmámos acerca da aculturação necessária ao casamento, dir-se-ia, pois, que a formiga estaria, de seu natural, mais preparada para o matrimónio do que a carochinha e a doninha, nas quais a aptidão resulta do controle de comportamentos instintivos. Mas também ela tem necessidade de se revestir de enfeites para casar (V15 e V35). A aculturação necessária às relações metaforicamente humanas não se

confunde, pois, com a sociabilidade natural. Não é por ser um animal social que a formiga se casa com o rato, mas porque assume as atitudes de um ser aculturado.

Estas deduções da tradição oral podem ser aprofundadas, perscrutando o sentimento popular a respeito das associações domésticas das formigas com outros animais. Podemos vê-lo nas histórias que passamos a referir, em forma sintetizada.

T2.7: O coelhinho branco

Uma vez um coelhinho foi à horta buscar couves para um caldinho e encontrou a porta de casa fechada pela cabra que lha não abriu, ameaçando-o de lhe saltar em cima e o fazer em três. O coelhinho foi pedir ajuda ao boi que lha negou por ter medo. O mesmo aconteceu com o cão e o galo. Foi finalmente ter com a formiga que se dispôs a lá ir. À ameaça da

235

ID.,«Fabulário português, manuscrito do século XV», Revista Lusitana, 8 (2) 1903-4, p. 118.

236

ID.,Tradições populares..., p. 173.

237

ID., Etnografia portuguesa, IX, p. 123; e ID., Tradições populares..., p. 172. Consiglieri PEDROSO

(Contribuições..., p. 259) refere uma variante desta tradição: «Quando se encontra um ninho com ovos ou passarinhos, deve-se chamar aos ovos ‘pedrinhas’ para as formigas lhes não fazerem mal, e aos passarinhos ‘sapinhos’ por causa dos sapos lá não irem.» É possível que esta versão seja mais «original» do que a referida no texto.

cabra de que lhes saltaria em cima e os faria em três, responde: «Eu sou a formiga rabiga / Que te tiro as tripas / E furo a barriga», depois do que entrou pelo buraco da fechadura, matou a cabra cabrês, abriu a porta ao coelhinho «e ficaram a viver juntos, o coelhinho branco e a formiga rabiga.»238

T2.8: A cabra-cabriola

Uma pobre mulher com dois filhos pequenos costumava «trabalhar para alheio, fechando sempre a porta com medo de que a cabra-cabriola» lhos matasse e comesse. Tendo saído um dia, mandou-os esconder «debaixo da cama, saiu e fechou a porta com um alfinete». A cabra-cabriola entrou e fechou a porta. A velha foi ter com a raposa para a auxiliar, mas esta teve medo da cabra que dizia: «Não saio daqui pra fora / Corro cerros corro vales / Como meninos aos pares / E como também a ti se também aqui entrares.» A raposa fugiu. O mesmo aconteceu com o lobo. Finalmente a formiga a quem a mulher prometeu «sopinhas de mel e azeite», entrou por debaixo da porta, picou a cabra-cabriola na barriga, esta teve medo e «saltou para a rua pelo telhado». A pobre viúva encontrou os filhinhos escondidos debaixo da cama a tremer de medo. A formiga encheu a barriga de sopinhas de mel e azeite.»239

T2.9: O lobo e a formiga

Uma vez uma cabrinha estava dentro de uma casa. O lobo foi lá pedir aga- salho. A cabra deu-lhe marradas; ele fugiu e disse à formiga «se queria ganhar um convite». Esta disse que sim; entrou por baixo da porta, subiu para as pernas da cabra e matou-a. O lobo mandou a formiga levar a cabra para muito longe. A formiga quando voltou pediu ao lobo o que tinham combinado. O lobo não quis pagar, foi para a casa da cabrinha e agarrou-se à chave. A formiga foi por baixo da porta, matou o lobo e deixou-o no mesmo sítio.240

As características destes textos são demasiado complexas para serem tratadas aqui por inteiro, grande parte não sendo mesmo referidas por nada terem a ver com o presente contexto. Outras terão de aguardar o comentário à tradição espanhola, no Cap. 6, onde serão aduzidos elementos que permitem voltar ao que é embrionariamente dito agora, designadamente que a formiga é dotada de grande intrepidez, apetência pela domesticidade e capacidade de penetração nos locais mais recônditos.

Em termos das características das personagens e das suas relações tópicas, vê-se que as duas primeiras versões se opõem entre si. À excepção da formiga, comum aos três textos, todos os outros animais são, ou só domésticos (T2.7), ou só selvagens (T2.9) ou

domésticos e selvagens (T2.8). As oposições entre as personagens de T2.8 estão extremadas: a

personagem a quem a cabra-cabriola (pseudo-papão que não chega a comer ninguém) se opõe é o mais doméstico de todos os animais, a mulher. O T2.9 tem o condão de dizer o

destino definitivo dos seres, invertendo o desenlace, pois tanto a cabra como o lobo são

238

Cf. Adolfo COELHO, Contos populares..., pp. 87-9.

239

F. X. d’Athaíde OLIVEIRA, Contos tradicionais..., II, pp. 307-9.

240

mortos. E sucede o improvável: a cabra «domesticada» é lançada depois de morta para o exterior, enquanto que o lobo, selvagem por antonomásia, é deixado no mesmo sítio, portas adentro, por uma formiga que lá não fica.

A formiga, essa, recebe a domesticidade como recompensa do seu feito, juntando-se ao coelhinho, quando se opõe a seres domésticos para ajudar um ser domesticado. Mas, quando se opõe ao ogre que quer comer os filhos humanos de uma mulher, recebe apenas sopinhas de mel e azeite. Quando finalmente se opõe a um ser domesticado (a cabrinha) que um ser selvagem tenta desalojar, inverte as posições destes, depois de mortos. Estando ela em termos de características, em situação intermédia entre o doméstico (humano) e o selvagem, é lógico que tudo o que faz tenha efeitos equívocos. Se, pois, os actores destas histórias se dividem em domésticos e selvagens, a categoria mediadora, a dos domesticados é representada pela formiga que tanto acarreta animais domésticos para o exterior como torna patente a sua contribuição para a tranquilidade doméstica, deixando dentro da casa os despojos da sua acção.

Em termos mais directamente relacionados com o nosso argumento, parece poder retirar-se destes dados que, havendo neles uma associação entre seres de espécie diferente, o desenlace é bastante variado, aparecendo a formiga como intermediária entre a domesticidade e a selvajaria. Mas a tradição não é consistente, possivelmente porque nestas histórias se não trata de verdadeiros casamentos mas apenas de convivência entre animais diferentes. Na verdade, a associação entre o coelhinho e a formiga do T2.7 não significa que

tenham casado. Não se encontra, pois, em nenhum destes textos o problema posto pela história da formiga e do João Ratão. A «aculturação» sofrida pela formiga apenas é expressa em termos de convivialidade (T2.7) e de manducação de coisas boas (T2.9) mas não da

superação da natureza. E a análise mostra que a formiga é um ser somaticamente resistente que busca a domesticidade.

Seja como for, destes dados deduz-se, tal como nas análises feitas anteriormente a respeito da carochinha e da doninha, que as características naturais da formiga são am- bíguas. Ora a ambiguidade é o pressuposto obrigatório do nosso argumento que supõe que as personagens femininas entram na história não em resultado das suas características naturais mas por força das sobredeterminações culturais por elas adquiridas. No entanto, não é claro se foi qualquer das notas identificadas a partir das características somáticas que contribuiu para que a formiga substituísse a carochinha na história em análise ou se teriam sido outras, indocumentadas ou desconhecidas, que levaram a tal substituição. De qualquer maneira, os caracteres detectados são consentâneos com os que determinam a acção da carochinha em relação aos seus pretendentes e ao casamento.