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Antes, porém, de procurar o significado que dela pode ser retirado, coloquemos uma questão prévia sobre a natureza das lengalengas e dos processos nelas utilizados, relem- brando e aprofundando o conceito de dilação da predicação, já antes mencionado, com o qual queremos dizer que o sujeito e o predicado estão separados por diversos elementos que têm como função preencher a distância temporal, local ou lógica, que vai do sujeito – colocado no início do texto juntamente com um predicado provisório – ao predicado definitivo, posto no fim. Entre estas situações inicial e final, em certa medida repetidas, são colocados vários actores, os quais são escolhidos de forma aparentemente incoerente, na verdade, porém, obedecendo a princípios lógicos precisos, copulativos ou tópicos (ou seja de proximidade predicativa ou local). Pelos procedimentos copulativos afirma-se explici- tamente um sentido (para todos os efeitos, aparente, trompe l’oeil associado à imediatez do

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Jaime Lopes DIAS, Etnografia da Beira, X, pp. 140-2. Há um paralelo deste texto em Francisco MASPONS Y LABROS, Lo Rondallayre, 3. série, Barcelona, 1874, pp. 48-50, intitulado «A ratita», onde se trata de coser a boca à ratita, o que no final consegue porque todos os intervenientes fizeram dom daquilo que era necessário ao sapateiro.

significado); e pelos tópicos aponta-se para sentidos segundos, decorrentes da contiguidade dos elementos utilizados e do complexo por eles assim criado.367

O significado da lengalenga decorreria, pois, não só do que é dito acerca do sujeito logo no início e do que lhe é acrescentado pelo predicado final mas também do conjunto de elementos escolhidos e das suas relações copulativas e posicionais. A sequência e a articulação dos elementos utilizados teriam como função evocar sentidos que estão para além das características ontológicas, locais e funcionais dos actores; e as relações entre eles apontariam para sentidos mais abrangentes do que os que estão expressos racionalmente nas frases utilizadas. Ou seja, o significado da lengalenga como um todo estaria quer nas afirmações explícitas quer na forma como é preenchido o vazio narrativo entre o sujeito do início e o predicado diferido.

Como todo o discurso, a lengalenga é regulada e relacional. Mas estas características aplicam-se-lhe de uma maneira específica, justamente porque ela é como uma espécie de máquina em que todas as peças são substituíveis. A facilidade com que isso pode ser feito é, na verdade, enorme, nisto se distinguindo de todos os outros géneros literários tradicionais. Apenas o conto dela se aproxima e com ela se pode comparar, visto que também para ele foram pré-definidos motivos que são continuamente rearranjados segundo configurações e esquemas diversos, de forma a produzir várias imagens do mundo. No entanto, a compac- tação e a variedade dos elementos usados na lengalenga dão-lhe um lugar à parte, mesmo em relação ao conto. A mudança das suas mais pequenas peças implica um reajustamento iterativo do todo. Ora isto não acontece no conto de forma tão expedita.

Sendo, pois, a lengalenga uma espécie de máquina de configuração dinâmica, as implicações no sentido de qualquer mudança não dependem apenas da organização discur- siva ou do obscurecimento que daqui pode resultar mas também das regras de estruturação que decorrem do seu meta-sentido. E estas podem ser totalmente perturbadas com a introdução de novos itens ou com a substituição de outros. Por isso é necessário atingir a sua arquitectura organizativa original ou transformada, tentando adivinhar aquela nesta.

São, pois, várias as dificuldades que se encontram no estudo deste género literário popular, sobretudo se as regras da sua criação não são compreendidas pelos contadores. Em tal caso, a qualidade da narrativa depende mais da capacidade de retenção do que se ouve, do que do exercício de uma liberdade criadora que permita reinventar-lhe ou melho- rar-lhe a expressão ou o conteúdo. Por isso é que o analista não pode deixar de estar atento aos acidentes na transmissão do texto, designadamente quando o predicado é eliminado ou substituído por outro, ou quando os elementos são mudados sem que se lhes reconheça a função, ou ainda quando os actores são acrescentados ou retirados sem respeitar nenhuma regra de estruturação. De facto a labilidade da memória e a contaminação intertextual propiciam a contínua emergência de toda a espécie de situações ilógicas, incoerentes e anódinas.

Quando o número de variantes é, porém, suficiente para o estudo da sua estrutura primeira, estes mesmos condicionamentos podem contribuir para o acesso ao sentido intentado nos textos. E sendo a cultura conservadora, é de supor que o essencial dos

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Uma teorização completa da questão deveria também incluir as relações entre os elementos e seus referentes intertextuais, o que não se justifica fazer neste texto inicial.

significados pretendidos tenha sido transmitido. Mas isso não dispensa a atenção a todos os sinais que eventualmente apontem para as deturpações introduzidas, reconhecíveis através da comparação entre as versões disponíveis, tomando como ponto de partida a sequência dos actores nelas utilizados. Não obstante, este cuidado nem sempre é suficiente para descobrir a razão do encadeamento dos elementos. A lógica da escolha nem sempre é clara. Partindo, com efeito, de uma situação inicial qualquer, é sempre possível encontrar outras sequências que sigam os mesmos procedimentos simbólicos, sejam eles lógicos, sejam metalógicos.

Em síntese, dir-se-á que o sentido da lengalenga está nos actores, nas acções, e no seu agenciamento segundo princípios de semelhança, de complementaridade e de oposição. Por isso é necessário identificar as mediações que levam ao seu desenlace final. Assim, para além do sentido imediato de cada uma das afirmações nela contidas, a análise deve revelar o que está subjacente à dilação da predicação, em complemento com o que a arquitectura dos seres e das suas acções veicula.