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Da aplicação destes princípios ao T4.1 não parece que se obtenha, numa primeira

abordagem, colheita muito abundante. A noção de diferimento da predicação conduz apenas à conclusão de que o rato, ao rasgar a sua orelha num silvado, morreu no ribeiro aonde se dirigiu ao demandar uma cerda de que o sapateiro precisava para coser a sua orelha. Ora tal resultado é relativamente escasso para tantas palavras.

Partindo, porém, deste enquadramento geral, sintetizável na relação {comer 

morte} (temática já encontrada a propósito de outros textos do capítulo anterior, de forma menos explícita do que aqui), dever-se-á verificar se ela não está subentendida na escolha dos outros actores. De forma a circunscrever a questão, atente-se, antes de mais, no enca- deamento dos actores e dos objectos a obter. Aos actores {sapateiro > porco > padeira > moleiro > tulha > campo}, correspondem os seguintes objectos: {cerdas > farelos > farinha > grão > milho > água}. Os outros quatro actores – rato, sapateiro, campo e rio – enquadram, dois a dois, estes actores centrais, os dois primeiros colocados no início da lengalenga e os dois últimos no seu final.

Excluindo o primeiro e o último termo da segunda sequência (cerdas e água), todos os restantes se referem ao milho ou às suas transformações. O que os actores pretendem obter em troca da sua ajuda é, pois, uma forma de alimento, tanto mais «natural» – e portanto distante do pão «cultural» – quanto mais a série se aproxima do fim. Não tendo, porém, em conta esta regressão, a série dá a entender que os seres que exigem estes bens (porco, padeira, moleiro e tulha) são funcionalmente homólogos do ponto de vista do significado.

Esta superabundância de actores com as mesmas funções faz com que a estrutura subjacente ao seu encadeamento não seja tão clara como noutras lengalengas em que os itens são menos monocórdicos. Aqui, com efeito, as habituais estruturas triádicas dão lugar ao paralelismo. Vários actores são como que alter-egos uns dos outros, o que diminui as distâncias semânticas entre eles. Assim, o porco, a padeira, o moleiro ou a tulha não se distinguem no que respeita à capacidade de absorção do milho ou dos seus derivados: tal

como para o porco na ceva, parece não haver limite para o milho que a padeira, a moleira ou a tulha podem usar ou reter.

Por tudo isto se pode dizer que estes actores replicam a voracidade do porco e são semelhantes entre si, em termos de consumo de alimento, seja qual for o estado em que este se lhes apresente. Por outro lado, o porco é homólogo do rato, como está sugerido na designação da orelha do rato como ‘orelheira’. Por mais repugnante que pareça do ponto de vista alimentar, a aplicação do termo orelheira (a qual designa uma das partes mais apreciadas do porco) à orelha do rato só pode significar a semelhança entre elas. Desta forma, a oposição fundamental das personagens desta lengalenga seria a que existe entre o rato e o homem (sapateiro), porque este o não quer ajudar, de acordo com a ideia comum de que o homem deve destruir o rato.

O actor determinante da superação desta oposição é o porco. Todos os outros são, com efeito, simples figurantes ou mediadores preparatórios do último actor, o rio, onde o rato afinal se afoga. Neste sentido, o porco seria o epígono de todos os vícios relativos ao comer, como resulta da expressão popular «comer como um porco», ou seja muito, alarve- mente e em ambiente sujo. E sendo o rato seu homólogo, tende a comer porcinamente. Por outro lado, quem lança o rato na busca da farinha é o porco, o qual tem apetência por comidas culturais, como se viu anteriormente (Cap. 3.3). No entanto o rato da lengalenga afasta-se progressivamente do meio civilizado e vai novamente para o exterior, donde não volta. O rio representa assim a exterioridade máxima e natural, nele caindo e morrendo o rato.

Fazendo uma comparação entre esta lengalenga e a história da carochinha, vê-se que em ambas o rato faz uma tentativa infrutífera de se inserir no meio civilizado. No T4.1, no

entanto, ele não tem a ousadia do João Ratão pois não chega a entrar no meio doméstico. Por outro lado, em termos de condições de morte, o rato, morrendo afogado no rio frio, inverte o João Ratão que morre cozido na água a ferver. Por isso a lengalenga em análise inculca a ideia de que o rato é selvagem e não domesticável. Por outro lado, olhando para as circunstâncias em que ocorre a morte destes dois ratos, vemos tratar-se de acidentes: o João Ratão cai no cozido quente do caldeirão e o rato da lengalenga, na água fria do rio.

As semelhanças ficam-se, porém, por aqui. O rato de T4.1 anda em busca da restau-

ração de uma integridade física perdida, ao passo que o João Ratão busca o seu bem-estar corporal. Por outro lado, o momento decisivo da lengalenga não se passa no interior de casa mas na natureza exterior. E se os três primeiros actores a quem o rato se dirige (sapateiro, porco, padeira) estão num meio aldeão civilizado, os três últimos (moleiro, tulha e campo) estão no exterior, junto da água do rio. De alguma maneira, pois, nesta lengalenga também se passa de um conjunto de três elementos que dizem respeito à casa e seu {interior} para outros que apontam para a categoria {exterior} que se poderia genericamente comparar com a natureza da história da carochinha. Mas tais categorias não têm a consistência das encontradas na lengalenga da V1, como veremos no Cap. 5.

De referir ainda que ao porco não é pedido aquilo por que é mais apreciado, a sua orelheira, mas uma cerda para coser um «orelheiro». Porém, quem a pede é o sapateiro que parece ter como função sublimar o papel do porco, fazendo-o passar do contexto culinário para o do vestuário. Tendo o sapateiro como mister produzir uma protecção para os pés,

retirando-os da situação pré-civilizacional da nudez, ele tenta «revestir» o rato com as suas orelhas mediante a utilização de uma cerda do porco. Mas não o consegue, possivelmente porque há uma contradictio in terminis: a reconstrução da orelha não traria o rato para o âmbito da cultura.

Estas deduções parecem bastante seguras, em razão de o elemento mediador e deter- minante do encadeamento ser a busca da cerda por parte do sapateiro, a qual traz a lengalenga para o âmbito da comida. De facto, nada impedia que tivesse sido escolhida uma outra série que falasse de vestuário, bastando para isso que o sapateiro procurasse linho, também necessário à linha de coser o calçado, para refazer a orelha do rato. A escolha da cerda não é, pois, acidental: responde à intenção de dar à lengalenga um quadro de signi- ficações alimentares. A sua temática de base parece, pois, ser a oposição {comer / vestir}, tal como na história da carochinha, embora o {vestir} esteja apenas subentendido.

Não tendo encontrado nenhum conto ou lengalenga que confirme estas deduções, buscámos na tradição outros elementos que fossem consentâneos com elas. Mas apenas encontrámos dois textos muito sucintos e, por isso, obscuros e de interpretação difícil. O primeiro vem em Leite de Vasconcellos: «Ninguém deve fiar no dia de Entrudo, porque se fiam as barbas ao Entrudo;368

quando alguém aparece a fiar nesse dia, queimam-lhe a estriga.»369

Aparentemente esta prescrição não tem qualquer relação com o nosso tema. Mas se for relacionada com um texto, recolhido em 1880 junto de mulheres de Paços de Ferreira, segundo o qual elas «não fiam em tal dia [de Entrudo], por temerem que os ratos lhes destruam depois o seu trabalho»,370

o enigma parece esclarecer-se um pouco, pois aponta para o contexto que temos vindo a estudar.

O ponto de partida do entendimento destes textos está em que referem que o rato devora não só elementos comestíveis mas também tudo o que pode ver a constituir um adorno, por ex., uma peça de vestuário; e em que, no Entrudo, o homem é homólogo do rato por estar substancialmente votado à função de comer. O Entrudo é o momento por excelência da satisfação das necessidades fisiológicas básicas, significadas no rato que tudo come, sejam as barbas do Entrudo fiadas, sejam as maçarocas das meninas no serão referidas no ponto 2 deste capítulo, com as suas conotações sexuais mais sou menos explícitas. Por isso se macaqueia a função vestir, sendo a forma popular e tradicional de o fazer a dos foliões que se revestem de roupas esfarrapadas, disparatadas e brincalhonas, eventualmente ratadas, de qualquer maneira, não cerimoniais.371

Com efeito, o Entrudo não só eleva a função manducação carnavalesca à sua forma mais plena – desde o domingo gordo se comem as carnes de porco mais saborosas, como o salpicão «malaio» (por corruptela de himalaio), feito com a língua do porco metida no cego do intestino grosso do porco372

– mas também se reduz a função vestir à sua expressão mais

368

Idêntica crença é reportada por Manuel J. DELGADO,A etnografia e o folclore do Baixo-Alentejo, Beja, Assembleia Distrital, 1985, 2ª ed., p. 149.

369

Leite de VASCONCELLOS, Etnografia portuguesa, VIII, p. 150.

370

ID.,op. cit., VIII, p. 150.

371

Os bailes de máscaras das classes burguesa e superior com suas vestimentas esplêndidas, embora baralhadas, bem como o esplendor dos vestuário dos corso brasileiro e de outros carnavais seriam uma transformação desta função, expressa na negação «primária» do vestir.

372

simples e de qualquer maneira deceptora. O carnaval é o tempo da demonstração do que se não é. Qualquer espécie de máscara é obrigatória nesse tempo. Daí o temer-se que o rato, deceptor por excelência, venha destruir o que se fia nesse tempo, já que o fiar corresponde ao que é socialmente significativo e, em si mesmo, não transitório. Fiar nesse dia corresponderia, pois, a contrariar o que é específico do carnaval em que nada deve ser composto e coerente mas tudo deve ser feito ao contrário do que se espera fazer no tempo normal.