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As características do comer selvagem só aparecem com clareza no lobo. Os outros animais – meio-selvagens, para-domésticos ou domésticos – colocam-se ao longo de um continuum que vai da radical selvajaria às atitudes totalmente civilizadas. E, sendo mínimas as diferenças existentes entre eles, não é fácil a sua categorização. Este facto, reflecte-se, aliás, na interpretação trabalhosa suscitada por alguns textos, como o que apresentamos em seguida numa versão simplificada, em que também normalizamos a dicção e a grafia original.

T3.6: O burro e o porco.

O burro e o porco estavam cada um no seu curral. O burro, «com as orelhinhas direitas só comia uma boca de palha que o dono lhe deitava seca»; e «o porco, boa farinha». O porco diz para o burro: «Então, estás aí a comer um pouco de palha seca. És um gajo muito selvagem. Estás aí a comer uma boca de palha! Não vês aqui eu a comer boa farinha, bom grão, bom tudo? E diz assim o burro: ‘Está bem. Eu concordo com isso. Olha eu já aqui estou há sete anos. Já aqui estou há sete anos.’ ‘Mete-te de barriga para o ar, como uma pata.’ ‘Então porquê?’ ‘Então já não comia mais disso, porque mais depressa me mato.’»306

Uma primeira observação a respeito deste texto refere-se à última fala do burro, incorrectamente dita pelo informador ou transcrita pelos editores. O texto correcto deverá ser – «porque mais depressa te matam» – já que se trata de um remoque dirigido pelo burro

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Marie Louise TENEZE, Le conte populaire français, III, Paris, Maisonneuve et Larose, 1976, p. 138.

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Alda SOROMENHO e Paulo SOROMENHO, Contos populares..., I, p. 4. Texto oriundo de Juncal, do concelho de Porto de Mós.

ao porco. A segunda é relativa às gradações de domesticidade implícitas no texto e ao resultado do comer selvagem e elaborado, as quais não têm paralelo na história da carochinha, onde se supõe que todos os animais rejeitados (burro, porco, cão, etc.) são tomados como incivilizados por comerem coisas naturais. No T3.6, ao contrário, procede-se

a uma análise mais fina das diferenças entre o comer do burro e do porco, descobrindo-se- lhe diferenças que não estão presentes na nossa história. A terceira, diz respeito à expressão utilizada pelo porco, comer de tudo o que é bom, pela qual o pensamento popular esta- belece a distância entre o comer puramente natural e o que incorpora algum investimento cultural.

O tratamento diferenciado da domesticidade em função da comida quando compa- rado com os T3.1-T3.4 e com a V1, mostra que o que determina o sentido é a posição que as

características dos actores ocupam na narrativa. Na verdade, para a história da carochinha não era importante a distinção entre o burro e o porco, mas entre todos os animais e o rato. Por isso, nela foram eliminadas as distâncias alimentares entre aqueles dois animais. Ou seja, ao polarizar o comer do rato por contraposição com o de todos os outros animais, o porco e o burro só poderiam ser tomados como idênticos em termos alimentares.

Mas o valor do T3.6 para o nosso argumento não se fica por aqui, já que nele é

estabelecida uma relação entre o comer aculturado e a morte. Como refere o texto (colocando «matam» em vez de «mato» na frase final), o burro diz ao porco que morre porque come um alimento não inteiramente natural, a farinha (semelhante ao queijo em termos da cultura nele incorporada), a qual pode ser codificada como um elemento-pré- culinário-trabalhado-culturalmente. O que parece implícito no texto é que o comer «selvagem» permite ao burro ter uma estadia em casa dos donos mais longa do que o porco que come coisas elaboradas. A farinha, «cultural» no sentido referido, estaria, pois, asso- ciada a uma morte precoce. A domesticidade dos animais seria, pois, tanto mais perigosa quanto mais extrema. O texto insinua, além disso, que o burro come parcimoniosamente enquanto o porco se ceva de comida. A vida longa resultaria de comer natural e comedido e a morte precoce do comer cultural excessivo. Assim, no conjunto destes textos, os animais selvagens opõem-se aos domésticos, e estes desdobram-se em mais ou menos domésticos, conforme comem mais cozido ou mais cru. E os que comem mais cultural- mente têm uma vida determinada não pela natureza mas pelo homem.

Estas noções também estão presentes na história da carochinha: ela contém o desejo de comer, renunciando às guloseimas, ao passo que o rato come o que não deve, quando e como não convém. Mas é o facto de comer coisas «culturais» que terá induzido a carochinha a escolher o rato como noivo. Os sinais retirados dos textos são claros; e o argumento também: sendo o casamento a manifestação máxima da aceitação das regras sociais, é necessário que os noivos mostrem uma disposição, natural ou adquirida, para as cumprir. A carochinha possuía-a em abundância: não só come bens culturais (sendo mesmo deles produtora) como até se dá ao luxo de lhes preferir outros ainda mais expres- sivos da sua sobreaculturação. A sua preferência pelos enfeites em vez das guloseimas seria a expressão de uma caminhada de socialização há muito concluída e bem sucedida.

No que se refere ao rato, atendendo apenas ao que diz de si mesmo, dever-se-ia pensar que ele teria concluído um percurso de aculturação semelhante. Mas não: só passou

do comer cru ao comer cozido por cocção natural. Por isso prefere bens imperfeitamente culturais. Não deu, pois, o salto para a sobrecultura exigida pelo casamento, nem controlou os seus instintos primários de manducação. Assim, no dia do casamento, come alarve e solitariamente – ou seja naturalmente – bens que estavam destinados a ser comidos ceri- monial e colectivamente. E tão radical é a sua atitude que se esquece da missão por si assu- mida: buscar o leque consubstanciador dos bens necessários à relação.

Em síntese, a comida ingerida pelos actores exprime não só a natureza de cada um mas também o seu caracter e aptidão para a sociabilidade necessária ao casamento.

A elocução

Entre os critérios usados pela carochinha para escolher o seu noivo está a voz deles: os que a têm feia são preteridos, o que a tem bela é recebido em casa. A voz é mesmo um dos critérios mais frequentemente utilizados no corpus, quer isoladamente,307

quer associado, excepcionalmente, à manducação e a outros critérios. São várias as versões que a referem simplesmente sem a classificar, como a V12: à pergunta da carochinha, o cão responde,

«Tenho a voz que Deus me deu, ão ão», ao que ela replica, «Ai não, a ti não quero, melhor marido que tu espero». A razão está (como se diz expressamente a respeito do gato) no facto de a voz lhe não agradar. Mas não é dito explicitamente porquê.

Algumas versões ainda são mais parcas em justificações. A V18, por exemplo, diz

simplesmente que «A prova que [os animais] tinham de fazer para ser aceites era mostrar a voz. Veio o boi, mas ela não quis. Veio o burro, depois o cão, o gato, o cavalo mas ela não quis nenhum deles. Veio por fim o rato. Ela gostou muito dele e aceitou-o para marido». Todavia há versões que avaliam a voz em termos estéticos. Na V6, por exemplo, é rejeitado

quem tem a voz grossa e aceite quem a tem fina; na V17 é mencionada a voz feia,

desagradável, ou temerosa; e na V15 fala-se de vozes que espantam o sono.

Pondo de lado uma ou outra excepção, o grupo é bastante sóbrio em justificações. As que são referidas apontam para os conceitos de {beleza / fealdade}, estando este último termo, por vezes, codificado em termos do barulho (V33, V49) que impede de dormir (V53),

ou do susto que ele provoca (V31). No entanto, também há versões, como a V19, que

mencionam simplesmente o fundamento psicológico da rejeição dizendo que a carochinha gostou ou não da voz dos pretendentes. E não faltam exemplos que, aos conceitos de beleza e fealdade, juntam outras qualificações das vozes – {ásperas / doces} ou {invasivas / discretas} – que determinam, respectivamente, o mau ou o bom entendimento conjugal ou familiar. Algumas versões dizem, com efeito, que as vozes dos animais rejeitados acordam a carochinha de noite, ou os meninos, ou a carochinha e os meninos.308

O bem-estar da família é, assim, uma das preocupações maiores da nossa heroína, sendo as características da voz do rato propícias ao sono tranquilo. Na V27 os pretendentes

são mesmo rejeitados porque a falta sonoridade das suas vozes causam dores de cabeça à carochinha.

307

V6, V12, V17, V18, V19, V31, V33, V38, V43, V46, V49, V53.

308

Carochinha: V5, V20, V25; meninos: V1, V9, V11, V25, V30, V52, V60, V62: carochinha e meninos: V21, V22, V58, V61.

Nas V7 e V8, o som desagradável das vozes animais não se refere só à carochinha e ao

seu grupo doméstico restrito, mas também à vizinhança. Na primeira, ao porco que guincha, ao cão que faz ão, ão, ao burro que zurra e ao gato que faz miau, miau, a carochinha diz: «Ai, Deus me livre, que me acordas a vizinhança!», nada se dizendo do rato. Mas a V8, que repete quase ipsis verbis estas expressões, refere explicitamente que o rato não

incomoda ninguém.

Sendo estes os factos, pode-se perguntar se estas duas versões reproduzem um traço tradicional ou se, pelo contrário, não resultam de uma originalidade da sua redactora, Ana de Castro Osório. Sabe-se, com efeito, que a etnógrafa mangualdense costumava reelaborar os textos tradicionais, por vezes substancialmente, fazendo deles breves peças literárias.309

Deve-se, no entanto, dizer que, pesem embora esses manuseamentos, por vezes reconhecíveis, interpretava bem a tradição, guardando os contos por si reescritos as boas marcas das histórias populares. Por outro lado, não se pode deixar de ver no critério «acordar a vizinhança» uma simples extensão do que é dito nas versões que falam do bem- estar familiar. Difícil seria, com efeito, que houvesse paz na vizinhança se alguém zurrasse, grunhisse ou ladrasse de forma a acordar a carochinha e seus meninos, sobretudo nas casas em correnteza, contíguas e juntas umas às outras, como acontece em muitas aldeias portuguesas. O que está, pois, suposto na V7 e V8 é que o casamento instaura novas

relações entre os esposos e com a vizinhança, sendo a mulher, no contexto do casamento ginelocal em que a história decorre, a sua principal guardiã. E dada a aculturação desta, nada mais natural que não queira introduzir em sua casa alguém que, pelo seu comporta- mento nocturno pouco civilizado, prejudique o equilíbrio relacional por ela conseguido.

Pode-se, pois, concluir que neste conjunto de versões se fazem várias extensões do critério da elocução, desde a simples estética da voz à ressonância sociológica dos seus efeitos domésticos e comunitários. Ora estas extensões, naturais e necessárias, são como que interpretações do que está implicitamente contido nas versões que apenas mencionam a voz. Nelas se diz que as atitudes da carochinha são as de uma boa mãe de família e dona de casa, preocupada não só com o bem-estar de todos os seus, principalmente dos mais pequenos, mas também com a harmonia das suas relações sociais imediatas. Ora as atitudes subsequentes do rato estão no polo oposto, o que define um ser fechado em si mesmo, egocêntrico e, em última análise, anti-social.