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João Ribeiro e o carácter murino

9. A QUESTÃO DA AUTENTICIDADE

A coerência da tradição e os seus fundamentos teóricos necessitam de ser completados com algumas reflexões sobre as características dos contadores e da sua intervenção no conto que receberam, elaborando um pouco mais os problemas da autenticidade e da fidelidade à tradição e pondo em evidência duas questões: se as qualificações literárias dos transmissores fazem com que os seus testemunhos sejam bons ou maus; e se há procedimentos ligados intrinsecamente às boas práticas de transmissão.

As hipóteses de que é habitual partir para este tipo de reflexões dizem que os textos da tradição popular são criações espontâneas de analfabetos, os quais guardariam mais fiel- mente os seus traços originais (não tendo mais fontes de informação, reproduzi-los-iam menos reflexivamente); e que a passagem da tradição oral para a escrita teria tido como consequência a sua fixação e degradação. Em conformidade com isso estariam as observações feitas anteriormente a propósito da qualidade de algumas das versões recentes onde a qualificação literária dos contadores teria tido implicações negativas na fidelidade ao conteúdo «original» das histórias populares. Os factos precisam, no entanto, de ser olhados mais em pormenor.

É certo que grande parte dos textos utilizados neste estudo teve como contador um popular com pouca instrução e que as suas histórias parecem ter uma verdade e au- tenticidade que encanta a quem – etnólogo ou estudioso da literatura oral – está fami- liarizado com os mecanismos da narratividade popular: simplicidade, atenção à acção de preferência às descrições de ambientes, sedução pela estruturação simbólica, gosto pelas repetições, etc. E também é certo que mesmo as versões rimadas, simples como são, parecem resultar da capacidade poética espontânea do povo, de que há tantos e tão belos exemplos nas quadras populares. Ao invés, algumas das versões escritas por estudantes e literatos dão imediatamente a impressão de que foram objecto de um trabalho de racionalização e psicologização.

Não obstante tudo isso, tem de se dizer que não é a idade, a instrução ou a condição social dos contadores que definem a boa ou má qualidade das versões. Qualquer pessoa convenientemente iniciada na cultura tradicional pode ser sua guardiã e transmissora fiel. Por isso, o analfabeto não tem um estatuto privilegiado em relação ao letrado: ambos são testemunhas e autores de conteúdos potencialmente autênticos. De resto, os melhores contadores de histórias são aqueles que as recriam e reinventam. Por isso é que, alguns dos mais belos textos da tradição popular, não terão sido possivelmente narrados tal e qual por

nenhum contador, mas foram reescritos por literatos particularmente versados nos modos de produção da literatura oral.153

A transmissão «autêntica» não se reduz a uma reprodução automática dos conteúdos recebidos: implica a sua reelaboração em função dos contextos que o viver social vai impondo. Uma cultura viva é o resultado de um trabalho contínuo de reapropriação da tradição. E se isso é verdade, a única competência requerida de um bom intérprete é que se identifique consistentemente com o programa que a cultura criou, não recuse as suas matrizes simbólicas e não aceite indiscriminadamente modelos diferentes dos que molda- ram a visão do mundo em que foi criado.

Não havendo, pois, testemunhas privilegiadas da cultura e sendo indiferente a instrução do contador para a reprodução «autêntica» da obra colectiva, impõe-se-lhe que guarde fielmente a memória dos dizeres e fazeres tradicionais. Isto é necessário sobretudo quando uns e outros são fixados por escrito. Perdendo então a capacidade de transfor- mação e reinterpretação dos primeiros transmissores, a cultura corre o risco de ficar bloqueada e inerte. Nesta situação de fixidez, a função dos mitógrafos e mistagogos advirá aos intérpretes, também eles criadores e testemunhas da tradição, que tentarão identificar traços, resolver dilemas, desenhar sentidos. Ao revelar-lhe as linhas de força, instauram um entendimento eventualmente novo das coisas, o qual determina as formas de sua compre- ensão futura, à maneira do que aconteceria se os primeiros autores ainda tivessem verve criativa.

Por tudo isso é que se aceitam todas as versões como instâncias de uma narrativa única, de acordo com Lévi-Strauss que diz ser o mito composto de todas as suas versões, estando Freud ao lado de Sófocles como fonte do mito de Édipo: «as suas versões merecem o mesmo crédito que outras mais antigas e, na aparência, mais autênticas.»154

Mas isso não obriga a dizer que todas elas tenham a mesma qualidade, pois algumas testemunhas têm mais saber e são mais capazes do que outras de reproduzir ou de reinventar os paradigmas básicos da sua cultura.

Estas afirmações põem em causa a ideia de que a antiguidade dos textos seria o mesmo que autenticidade, valor e significado, e de que os traços culturais contemporâneos estariam marcados pela insignificância. O mito da idade de ouro155

não constitui uma regra espistemológica aceitável, pois supõe que a totalidade do sentido teria estado disponível apenas no início de tudo e que o tempo não teria feito mais do que diminuí-lo. Tal regra é, de facto, incorrecta filosófica, psicológica e historicamente. Todos os criadores são contemporâneos. O sentido está continuamente a ser produzido pela palavra que o diz ou o interpreta. Indefinidamente redescoberto, a sua verdade não decorre de significados fixos

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Haja em vista, entre muitos outros, Madame d’Aulnoy, em França, os Irmãos Grimm, na Alemanha e Ana de Castro Osório, em Portugal.

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Claude LEVI-STRAUSS, Anthropologie structurale, p. 240. Esta posição é contestada por Alan DUNDES

(The Morphology of North American Indian Folktales, Helsinki, Academia Scientiarum Fennica, 1980, p. 46) segundo o qual, Lévi-Strauss esticaria o «sentido do termo ‘variante’ até ao absurdo». Aceita-se a posição de Lévi-Strauss, pelo menos em termos metodológicos, no sentido de que é necessário examinar todas as versões de forma a perceber a coerência dos traços culturais.

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Cf OVÍDIO, Metamorfoses, I, 113 e 142-143: «Aurea prima sata est aetas [...] / Flumina jam lactis, jam flumina nectaris ibant / Flavaque de viridi stillabant ilice melba.»

no tempo. São os novos contextos que lhe dão sempre novas dimensões, inimagináveis por quem os não conheceu.

A haver, pois, diferença entre os mitógrafos antigos e os actuais, ela estaria em que o homem «arcaico» possuía referências mais completas e integradas relativamente aos temas sobre que efabulava. Não estando tão condicionado pelo pendor taxonómico que se intro- duziu na mentalidade moderna, sobretudo a partir de Descartes, tomava as coisas pelas suas semelhanças ou contradições e criava estratégias de significação que, mesmo quando obscuras, eram, em geral, adequadas. A liberdade com que relacionava as coisas em função de um simbólico que lhe era transparente, permitia-lhe reproduzir e reorganizar incansavelmente acontecimentos e experiências até lhes descobrir o sentido, como diz Lévi-Strauss, no seguimento de Boas.156

Por isso, poderia procurar as suas ilustrações na vasta gama de motivos tradicionais, segundo regras estabelecidas, e de si conhecidas, pelo menos intuitivamente. E se nem todas as suas produções têm a mesma amplitude simbólica nem subministram as mesmas mediações é porque é próprio dos textos populares exprimir os mistérios da existência de maneira parcelar e, por vezes, contraditória. A questão de fundo não é, pois, saber se os textos têm origem popular ou erudita mas se os seus autores são bons ou medíocres intérpretes da tradição. Dito de outra maneira, o problema está nos referentes usados, em termos da sua coerência interna e posicional.

Seja como for, estes pressupostos teóricos e os factos oportunamente registados permitem dizer que os textos recolhidos incorporam um alto grau de representatividade, não no sentido de uma reduzida variabilidade estatística, mas da sua exemplaridade e para- digmaticidade. A validade das configurações de sentido que neles se encontram não depende, pois, da quantidade ou qualidade das testemunhas mas da coerência dos teste- munhos com os modos de produção simbólica tradicional.

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