• Nenhum resultado encontrado

Fazem parte deste grupo 18 versões portuguesas65

e uma brasileira (V64). Neste

conjunto encontram-se os textos mais perfeitos, quer do ponto de vista dos elementos heurísticos, quer das estruturas narrativas, quer ainda do seu significado expresso ou implícito. No breve comentário que se segue põe-se em evidência as características mais notórias de cada uma delas, deixando para mais tarde a utilização conjunta dos seus ele- mentos específicos.

A V2, publicada pela primeira vez, em 1885, no 2º volume do estudo de Teófilo Braga

sobre O povo português nos seus costumes, crenças e tradições, reproduz, segundo o editor, a tradição do Porto e da Ilha de S. Jorge. Foi dada à estampa pelo menos mais três vezes: em 1901, no jornal O Século, na reedição da obra de Teófilo Braga em 1996 e numa colectânea de Adolfo Simões Müller.66

Escrita em verso, esta versão é substancialmente idêntica, em termos de conteúdo, à V1.67 Omite, no entanto, um ponto importante: a consulta feita às

vizinhas sobre o modo de utilizar o dinheiro encontrado. Por outro lado, os animais aparecem por ordem diversa da utilizada na V1; e o critério de aceitação do rato, não é a

voz, mas o que ele come. No episódio do casamento, há um pormenor que completa a versão de referência, ao dizer que o João Ratão foi da igreja a casa buscar o leque da carochinha. Não deixa também de ser curiosa a afirmação, no final da parte contística, de que o João Ratão morreu «cozido e assado no caldeirão», em contradição com o que está implícito no texto.

A V3, oriunda de Loulé, foi publicada por Athaíde Oliveira, em 1900. Entre as suas

particularidades está que a situação inicial é reduzida à sua expressão mais simples, nem se fazendo referência ao varrer da cozinha, nem ao dinheiro encontrado nem a nenhum conselho a respeito da sua utilização. Por outro lado, não é a carochinha a ter a iniciativa do

65 V1-V13, V16, V41, V42, V71 e V72. 66 Cf. final da V2, no Apêndice I. 67

Teófilo BRAGA, O povo português..., II, pp. 310-2. Segundo o autor (p. 309), a história da carochinha, que está «na tradição portuguesa diversos estados de conservação», teria sido primitivamente escrita em poesia: «em Coimbra, a sua primeira parte acha-se dissolvida em prosa, tendo o final, na sua forma de lengalenga, ainda a estrutura poética». O texto em que Teófilo Braga baseia esta conclusão é a nossa versão de referência, pois cita os Contos populares portugueses de Adolfo Coelho. A afirmação da primitividade das formas poéticas sobre as outras formas narrativas não é segura. Os elementos de crítica literária de que dispomos parecem indiciar uma génese inversa.

namoro mas sim os seus pretendentes, cuja série é diferente da V1. Além disso, é a «debi-

lidade» do Ratão que leva a carochinha a aconselhá-lo a ir a casa comer. Na lengalenga, finalmente, apenas há como actores, a porta, o passarinho, as meninas, o rei e a rainha, por esta ordem, acontecendo que o rei corta as barbas e a rainha se assenta nas brasas, sendo possível que este final tenha sido induzido pela rima entre barbas e brasas, só estas podendo ser associadas à rainha, que assim foi posta no fim.

A V4 é muito semelhante à V2, tendo as suas variantes interesse quase só morfológico,

pois constituem arranjos métricos que o seu editor, Jaime Cortesão, introduziu, possivel- mente para melhorar estilisticamente a V2, de que depende. Tem, não obstante, duas par-

ticularidades dignas de nota: a primeira é que o boi, o gato e outros animais são substi- tuídos pelo galo; a segunda é que elimina na lengalenga final os dois últimos actores – a rainha e o rei – certamente porque o texto se destinava a ser lido por crianças e não terá parecido adequado ao editor pôr a rainha em fraldinha e o rei a assar nas brasas. O título da obra em que está inserida, Cantigas do povo para as escolas, justifica tal dedução.

A V5, sob o título de A doninha e o João Ratinho, é a primeira versão em que aparece

uma personagem feminina diferente da carochinha. No entanto é muito próxima, em termos de conteúdo, da V1. De próprio tem a menção do achamento do dinheiro ao varrer

a casa e o tê-lo utilizado para se assear por conselho da mãe e não das vizinhas. A semelhança com a V1 estende-se ainda à lengalenga, onde falta, no entanto, a trave, e os

meninos são substituídos pela criada, variante esta com interesse interpretativo, pois ajuda a dirimir a questão do género simbólico dos meninos do rei mencionados na V1, como se

verá mais adiante. Por outro lado, a rainha e o rei têm os mesmos comportamentos que na versão de referência: a primeira dança em fralda de camisa na cozinha e o rei assenta-se nas brasas. Uma diferença interessante é que a doninha pede a um serralheiro que lhe abra a casa para nela entrar ao voltar da fonte, o que a aproxima de algumas versões espanholas, comentadas no Cap. 6.

A V7, publicada por Ana de Castro Osório para ser utilizada pelas mães na educação

de seus filhos, é muito semelhante à V2 e à V4. Das suas diferenças em relação a estas

versões, põe-se em destaque, na parte final, que o rei corta as barbas antes de a rainha se assentar nas brasas, no que coincide com a V3. À mesma escritora se deve a V8, onde, tal

como nas V2, V4 e V7, a carochinha encontra o dinheiro ao varrer a cozinha. No que se

pode considerar um desenvolvimento literário, frequente em Ana Osório (o que não quer dizer que interprete mal a tradição), descreve-se de forma gráfica o choro da carochinha ao ver o João Ratão morto: «ficou varada e, no maior desespero, desgrenhou-se e arrepelou-se, chorando em altos gritos». Por outro lado, a sequência final diz: «a carochinha arrepelou-se, a tripeça pôs-se a dançar, a janela a abrir e a fechar, o telhado destelhou-se, o passarinho depenou-se, a árvore desfolhou-se, o boi esmurrou-se, a fonte secou-se, a criada da rainha quebrou a cantarinha, a rainha assentou-se nas brasas e o rei corta as barbas.» Nesta série é digno de nota a substituição da porta pela janela e da trave pelo telhado, e ainda a adição do boi que «quebra a armação», particularidades que serão comentadas mais adiante.

A V9, redigida em 1980 por um estudante universitário, atesta a continuidade na

memória do povo dos elementos tradicionais, designadamente a consulta a uma vizinha acerca de como gastar o dinheiro encontrado, e a sequência final, algo sintetizada, onde os

dois últimos actores são a rainha que chora na cozinha e o rei que se arrasta nas brasas. A mesma atestação é feita pela V10, também escrita em 1980 para o presente estudo. Na sua

série lengalengática, há menos actores do que o habitual – porta, andorinhas e meninas –, os quais são completados por um rei e rainha que têm sortes idênticas: sentarem-se nas brasas.

Um terceiro testemunho da manutenção da tradição em anos recentes é a V11,

originária de Trás-os-Montes e coligida em 1981, embora de tradição mais antiga (cerca de 1960). Nela se reproduzem, com pequenas diferenças, as situações da versão de referência. Na segunda parte, os intervenientes são os mesmos, não havendo, porém, menção do rei. A história termina com a rainha descalça na cozinha. Não é de excluir a hipótese de esta alteração resultar de uma censura feita pelo pai da nossa colaboradora, que terá feito o mesmo raciocínio que Jaime Cortesão, alterando a versão que conhecia.

A V12, igualmente recolhida em 1981 para o presente estudo, foi contada por uma

senhora de 65 anos, em Miraflores, Lisboa. É semelhante à versão de referência, excepto num ou noutro pormenor. Especifica que a carochinha chorou o seu João Ratão «cozido e assado no caldeirão», e que ao seu lamento se associaram a porta, a janela, a árvore, o passarinho e a fonte, faltando, pois, os actores que na V1 representavam a sociedade – os

meninos, a rainha e o rei. Possivelmente a contadora aprendeu a história num livro para crianças. Não obtivemos, porém, informação específica a este respeito.

A V13 teria sido aprendida por um menino, em Angola, o qual a ditou, com 12 anos

de idade, a uma familiar sua, que no-la transmitiu em 1981. Tem a particularidade de não mencionar a varredela da casa e o achamento do dinheiro. A situação inicial refere apenas que a carochinha, triste, resolve enfeitar-se para procurar marido. Escolhido o rato, e já no local da festa, lembra-se de que tinha deixado a panela de feijões a cozer, tendo-se o João Ratão oferecido para ir apagar o lume. Sendo no essencial conforme com a V1, a caracte-

rística mais saliente desta V13 está na lengalenga final que se resume a uma única

personagem, a vizinha, a qual inquire da carochinha porque chora, respondendo esta: «João Ratão caiu no caldeirão. E assim termina a história da carochinha, com todos muito tristes a dizer: ‘João Ratão, por ser guloso, morreu assado e cozido no caldeirão.’» Está, pois, quase totalmente eliminada desta versão a segunda parte da história.

A V16, publicada por Carlos Cascais em 1955, embora não seja versificada, segue no

essencial o texto da V2, designadamente no que respeita aos motivos da rejeição dos preten-

dentes. Mais notórias são as suas particularidades na lengalenga. Refere, em vez duma tripeça, um banco que se partiu e «atirou a carochinha de pernas para o ar», e uma porta que se abriu tão depressa que só deu tempo à carochinha «para dar um pulo, pois de contrário morreria esmigalhada». No essencial, atesta a tradição, mas não o faz de forma regular pois termina quase logo em seguida dizendo: «Carochinha saiu de casa e foi sentar- se debaixo de uma pereira, a chorar e a dizer: ‘Morreu o meu João Ratão cozido e assado no caldeirão.’ A árvore sacudiu-se a chorar, e as pêras caíram em cima da nossa carochinha, magoando-a. Levantou-se a custo e já não foi capaz de dizer que morrera o seu João Ratão não fosse qualquer coisa ter pena dela e acontecer molestá-la.» Da pluralidade de seres da

Fazem ainda parte deste grupo as V41 e V42, que terão sido coligidas, a primeira em

Palmela e a segunda em Loulé, em época recente, a julgar pela data da sua publicação, 1997 e 2000, respectivamente. Notamos duas características na primeira destas versões: não ter praticamente nada da parte contística da história e alterar a série de seres que choram a morte do rato. Termina, além disso, em tom quase apocalíptico: «Acabou-se a água, não há mais água. Pronto, acabou. Não há água, a água secou, não há mais nada.» Por outro lado, a

V42 tem algumas particularidades na lengalenga final. A mais curiosa e significativa é que o

rei não aparece nela explicitamente, apenas sendo evocado numa frase final enigmática – «E o conto acabado e o rabo chamuscado» – o que só faz sentido se se supuser que o rabo chamuscado é o do rei. Este pormenor, sem qualquer importância hermenêutica, não deixa de ser ilustrativo da inércia simbólica dos textos que guardam sob forma residual elementos já totalmente esquecidos e ininteligíveis, porque deslocados.68

O exemplo não é, de resto, único: a fórmula «cozido e assado» que se encontra em muitas das versões que eliminam a lengalenga final, deve-se possivelmente a esse mesmo mecanismo de mnemónica cultural. Por fim, nota-se que a série lengalengática desta versão é muito diferente da V2, embora

recolhida na mesma localidade.

Entre as versões portuguesas podem ainda ser referidas as V71 e V72, as quais

deveriam, em boa verdade, ser estudadas entre as de efabulação erudita. São, com efeito, exercícios literários que usam de alguma liberdade na referenciação da tradição. Por con- terem a lengalenga, são comentadas aqui. A V71, da autoria de Luísa Ducla Soares, mantém,

na primeira parte, quase todos os elementos tradicionais. Mas a lengalenga só de longe reproduz as características das primeiras versões, pois deixa de ser cumulativa e põe em acção o banco, a porta, a fonte, o garfo e o rei, e deixa de lado a rainha. Nesta série original, é particularmente estranho o garfo, cuja lógica de inserção se não entrevê, como se deduz da transcrição seguinte: «‘Ai que desgraça, / Que grande azar!’ / A fonte disse: / ‘Vou já secar.’ // ‘Ai que desgraça, / Que grande azar!’ / O garfo disse: / ‘Vou-me espetar.’» Igualmente surpreendente é o final feliz da história: «‘Ai que desgraça, / Que grande azar!’ / Disse o rei / Que ia a passar. / Meteu a espada / No caldeirão. / Por lá subiu / O João Ratão. / ‘Que bela sopa!’ / Gritou contente. / ‘Ai só foi pena / Não estar quente.’ // Deu um abraço / Na carochinha / E houve baile / Lá a cozinha.»69

A tentação do final feliz também se apossa de quem conhece a tradição e o valor pedagógico do seu legado!

A V72, da pena de António Torrado, ainda é mais livre na utilização dos motivos

tradicionais. Entre as suas peculiaridades refere-se que o jantar de casamento é feito com dádivas de diversos actores: o padrinho dá o toucinho e a madrinha, a hortaliça. Até o merceeiro contribui: a chouriça, fiada, vem da sua loja. Por outro lado, o rato não morre apenas cozido e assado no caldeirão, mas também «guisado», numa estranha mistura de modos de cozinhar, que mostram não ter sido compreendida a assadura referida pelas versões mais tradicionais. Mas os seres que choram com a carochinha, são substan-

68

O facto é assinalado pelas editoras do texto, Filipa F. deSOUSA e Idália F. CUSTÓDIO (Povo, povo, eu te pertenço, Loulé, Câmara Municipal, 2000, p. 148) que lhe chamam «memória eufemizada do remate das três versões mais antigas.»

69

Esta versão foi utilizada pela Escola Básica de Geraldes, da freguesia de Atouguia da Baleia, Peniche, para uma representação em banda desenhada, como consta da Imagem 7 do Apêndice II, retirada de http://www.pranet.esel.ipleiria.pt/bandasdesenhadas/EB1Geraldes).

cialmente os mesmos que na versão de referência, com excepção da trave que é substituída pelo fecho (da porta), dos meninos que fazem falta, da rainha que só chora e do rei que abdica do seu cargo. O mecanismo de imposição cumulativa do sentido, por outro lado, também desapareceu. Por isso, pode-se dizer que, neste tratamento original, a história nem ganhou em clareza de funções dos actores nem em termos da estrutura simbólica. Aliás, algumas das suas idiossincrasias parecem ter sido determinadas pelo modo poético e pela rima que, independentemente do seu efeito literário, nada avançam para o seu entendi- mento. Mas também não era essa certamente a intenção do autor.

O último texto deste grupo é constituído por uma versão brasileira (V64), escrita por

Ruth Guimarães em 1962. Embora se afaste bastante das narrativas portuguesas, não parece que as suas particularidades provenham de um fundo antigo diferente, de que só houvesse memória no Brasil. Muito provavelmente resultam de idiossincrasias efabulatórias da autora. Digno de nota é que a baratinha é transformada em «Dona Baratinha», nome sob o qual a nossa carochinha aparece, hoje em dia, em todas as referências brasileiras encontradas e que seria longo e inútil referir. Por outro lado, o texto faz diversas actualiza- ções (por ex. o meio de transporte utilizado pelos noivos é o automóvel), ao mesmo tempo que mantém expressões antigas, como quando diz ter a baratinha encontrado um tostão.

Em termos gerais, esta versão destaca-se pela prolixidade. Os pretendentes da Dona Baratinha são o boi, o burro, o cavalo, o cachorro, o gato, o bode, o galo, o carneiro, o macaco, a onça, a anta, a capivara, o gembá e «muitos outros bichos do mato», como se todo o universo animal pretendesse a mão da baratinha; o que, sendo interessante, não deixa de ser cansativo. Igualmente curiosos são os seres trazidos para a lengalenga final: a cozinheira quebra o pote, o rio seca, os bois ficam mochos, o campo seca, a laranjeira desfolha-se, os passarinhos tiram as penas e finalmente o céu fica escuro. Troveja, venta e chove e despenca de lá de cima, desabando sobre a terra a tempestade mais horrorosa que já se viu. Note-se que neste final se encontram algumas reminiscências, de sinal inverso, do que acontece na V41. Não é, porém, de pressupor que haja interdependência entre estas

versões.

Sintetizando a análise das versões portuguesas do grupo, parece poder afirmar-se que as mais antigas são as mais ricas de sentido e as mais estruturadas. As suas variantes são também as que têm maior interesse heurístico. Pelo contrário, os textos recentes começam a introduzir vários tipos de racionalizações. E, no que toca às versões elaboradas por literatos, nota-se que se afastam significativamente da tradição, deixando de lado elementos essenciais, ou substituindo-os por outros que ou lhes deturpam o sentido ou dificultam o entendimento. Da mesma maneira, observa-se que as versões recolhidas nos últimos vinte e cinco anos têm textos substancialmente estabilizados. Apesar disso, encontram-se nelas algumas confirmações importantes de lições antigas. Num caso ou noutro dão mesmo um contributo específico para a interpretação. Os próprios lembretes deixados em algumas versões («rabo chamuscado», «cozido e assado») apontam para um contexto coerente, embora fora de lugar; e alertam para que nada do que é estranho e absurdo pode ser eliminado da interpretação.

Por outro lado, no que se refere à tradição brasileira, reportada de forma imperfeita aqui, insiste-se em que o tema tradicional foi trabalhado com grande liberdade por Ruth

Guimarães, a recontadora da história de Dona Baratinha. Mas acontece que as outras versões, a que se fará referência mais adiante, são muito menos distantes da tradição portuguesa do que esta versão de autor.

Desta análise poder-se-á, pois, concluir que, não obstante a tradição estar atestada nos textos de recolha recente, os elementos postos em evidência revelam que a mensagem da história começa a esvair-se e a não ser entendida por aqueles que tentam transmiti-la, mesmo quando tiveram acesso aos seus conteúdos tradicionais, sobretudo se preocupados em melhorá-la estilisticamente.