• Nenhum resultado encontrado

H ETERÓNIMOS

1. O S COLEÓPTEROS E DICTIÓPTEROS DA NOITE

O nome de carocha é atribuído «a diversos géneros e espécies de insectos coleópteros [...] de grande porte e em regra de côr negra ou castanha [...] e de hábitos nocturnos que se encontram escondidos durante o dia debaixo das pedras e das folhas caídas.»162

São ainda chamados carrochos, carrochas ou carochas «os vorazes carabídeos, como Brachinus (‘bombardeiros’), Colosoma, Carabus etc., que apresentam por vezes vistosos reflexos metálicos e cujos hábitos carniceiros (devoram vermes, insectos, caracóis, etc.) os tornam valiosos auxiliares na luta contra as pragas das culturas.»163

Os «bombardeiros», chamados vulgarmente «merdilheiros», são conhecidos pelos seus hábitos estranhos e sujos: fazem grandes bolas de excrementos, designadamente humanos, que guardam em seus buracos.164

As carochas são muito comuns em casas e lugares húmidos e infectos.165

Aos coleópteros aquáticos do género Dytiscus e Hidrophilus é dado o nome de «carochas-de-água».166

De resto, a literatura fala em cerca de 2.250 espécies de Blattidae ou «cockroachs».167

Algumas das suas espécies estão representadas no Apêndice II: Imagem 2.

Raphael Bluteau, reproduzindo fielmente concepções tradicionais, diz que a «carou- cha» é um «bicho repelente, todo negro», com «seis pés e dois cornichos delgados e dobradiços» e com «corpo alguma coisa largo e prolongado.» Refere igualmente a crença popular de que «mata galinhas».168

Algumas das carochas têm hábitos nocturnos, comendo

162

Mª Luísa Gomes ALVES, «Carocha», Enciclopédia luso-brasileira de cultura, IV, Lisboa, 1966, c. 1141.

163

ID.,ibid.

164

J. Leite de VASCONCELLOS (Opúsculos, III, Onomatologia, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1931 p. 582) diz que «em várias localidades do distrito do Porto e de Trás-os-Montes, no Gerez, em Leiria, etc., o termo carocha aplica-se aos coleópteros mais variados. Há igualmente quem chame no Minho ao escaravelho ‘carrocho dos beloiros’, por ele fazer bolas de excremento do gado (bosta: aos montes de bosta chama o povo beloiro)». Notar, porém, que o termo «beloira ou beloura» também tem um significado que nada tem a nada tem a ver com o sentido referido por Leite de Vasconcellos (cf. A. BIVAR, Dicionário geral e analógico da língua portuguesa, I, Porto, Edições Ouro, 1948, s.v., p. 457): beloiro é a «massa de farinha de trigo e milho e de sangue de porco, com que se cozem uns pães em agua gordurosa, por ocasião da matança dos porcos».

165

Enciclopédia portuguesa ilustrada, II, s.v., p. 573.

166

Luísa ALVES, op. cit., c. 1141.

167

O http://www.kiwicare.co.nz/classroom/cockroach.html, refere que muitos milhões de pessoas em todo o mundo são alérgicas às carochas, particularmente as asmáticas. Cerca de 61% das carapaças das carochas, as fezes e o sangue contêm enzimas digestivas e proteínas que causam alergias. «Estas proteínas permanecem muito tempo depois de os insectos terem desaparecido. As carochas produzem imundícies, contaminam a comida, poluem as águas e veiculam muitas doenças, como a salmonela, a gastroenterite, os estafilococos, a diarreia e o tifo.» Foram encontrados fósseis com muitos milhões de anos que mostram que as carochas actuais são idênticas aos seus antepassados pré-históricos.

168

de tudo, nada ficando a salvo da sua voracidade.169

De tudo isto se destaca que, de seu natural, são negras, nocturnas, carniceiras, «merdilheiras», hidrófilas, estando os dois primeiros qualificativos bem atestados, em contextos míticos, quer fortes quer dessorados.

A carochinha portuguesa transforma-se em baratinha no Brasil. Assim, segundo a etimologia popular – a única que interessa para o caso – estas tradições preferem nomes com conotações opostas, o que foi percebido por D. Francisco Manuel de Mello que, num anexim «em metáfora de cara», leva um dos interlocutores a perguntar: «não buscará outra mais cara que essa é muito barata?»170

A associação entre carochinha e baratinha não é, aliás, suportada por outras línguas, como a inglesa, onde tanto as baratas como as carochas são chamadas «cockroachs».

A barata, um «insecto da ordem dos Dictiópteros [...] de corpo achatado, com aspecto repulsivo e exalando mau cheiro, vive especialmente nas habitações, onde cons- purca as substâncias por onde passa, podendo até ser transmissor de doenças (tuberculose, lepra, cólera, tifo etc.) [...] Mais activas durante a noite, nutrem-se de papel de livros e enca- dernações e de produtos alimentares existentes nas dispensas, cozinhas, copas, padarias, restaurantes, mercearias etc.»171

Por isso causa um horror quase irracional às pessoas, sobretudo do sexo feminino, justificado pelo seu aspecto asqueroso.

Estas notas físicas e comportamentais não são, porém, as únicas que interessam ao nosso argumento. Não seria correcto analisar a tradição popular apenas nestas duas dimen- sões. A biologia e a etiologia só são significativas quando apropriadas culturalmente. Por isso se complementam estes dados com outros que decorrem da utilização do termo em contextos exteriores à zoologia.

O primeiro é posto em relevo por Teófilo Braga que diz ser o carocho, «em português, [...] sinónimo de escuro e negro.»172

Da mesma maneira dá-se o nome de carocho ao diabo, por este «ser preto»173

e, provavelmente por isso, também às bruxas.174

Por isso,

169

Recorrendo a referências exteriores à tradição portuguesa e, por isso, não necessariamente pertinentes, nota-se que os «habitantes do Chaco guardam o seu vestuário em jarras de barro para evitar que sejam devoradas pelas baratas nativas». Por outro lado, os irlandeses matam as baratas porque revelaram o esconderijo de Cristo. Cf. Maria LEACH & Jerome FRIED, eds., Standard Dictionary of Folklore Mythology and Legend, London, New English Library, 1972, p. 240.

170

D. Francisco Manuel de MELLO, Feira de anexins, Lisboa, A. M. Pereira, 1875, p. 8. Teófilo BRAGA

(O povo português..., II, p. 309) comentando apressadamente este texto, diz que «neste trecho há dois equívocos seiscentistas», um dos quais «é a relação entre carochinha e barata (contraposição de caro ou barato)», não se apercebendo de que as reflexões de D. Francisco Manuel de Mello fazem o jogo contínuo de palavras que não têm outro nexo que não seja o da semelhança ou oposição aparente dos seus significados imediatos.

171

Mª Luísa G. ALVES, «Barata», Enciclopédia luso-brasileira de cultura, III, Lisboa, 1965, c. 557-8.

172

Teófilo BRAGA, O povo português... op. cit., II, p. 314.

173

J. Leite de VASCONCELLOS, Opúsculos, III, p. 582; ID., Etnografia portuguesa, VII, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1980, pp. 165, 250, 265. A figuração do demónio também é feita com uma máscara nas festas do Natal em terras de Mogadouro e Freixo de Espada-à-Cinta. Refere o Abade de Baçal (Francisco Manuel ALVES, Memórias arqueológico-históricas do distrito de Bragança, IX, Bragança, Museu Abade de Baçal, 1985, p. 290, n.1), citando J. M. M. Martins (As terras de entre Sabor e Douro, p. 329): «dia de Natal vai o mordomo do Deus-Menino tirar a esmola acompanhado do Chocalheiro, ‘homem mascarado cujo vestido costuma ser feito de estopa grossa tinta de escuro e com um feitio muito esquisito. A máscara ou carocha, como aqui se lhe chama, é feita de madeira pintada de preto e de feitio horrendo; o homem depois de mascarado figura o demónio, no dizer do povo’».

174

carocha também é o «Chartaceus magi ou o venefici pileus»,175

ou seja, a cartola do mago ou o barrete mágico.

A associação com as bruxas é atestada, por exemplo, por Almeida Garrett: «uma Brízida velha que eu tive quando era pequeno, era famosa cronista de histórias da carochinha, porque sinceramente cria em bruxas».176

Possivelmente por extensão destas duas acepções, carocha (ou caroça, como também se escreve) significa, como diz Bluteau, a «ignominiosa mitra de papelão que os feiticeiros levam na cabeça no Acto da fé».177

Estas mitras penitenciais tinham «pinturas extravagantes».178

A relação entre carocha e morte é expressa num conto recolhido no segundo quartel do século XX em Querenças, concelho de Loulé, onde as carochas são necrófagas: um homem diz a seu irmão, que morria de fome em casa da sogra, após ter-lhe dado a comer em abundância: «se não fosse eu, não ‘stavas muito tempo sem ires dar de comer às carochas.»179

A relação com o negrume e a noite pode ser confirmada no termo «carocho», usado em contexto marítimo para designar «o barco de pesca, transporte e carga do rio Minho, entre Lanhelas e Lapela», possivelmente por ser «totalmente pintado de negro».180

O nome emprega-se igualmente, na Nazaré, para designar «barcos semelhantes a bateiras, ali usados em certas pescas.»181

O negrume terá igualmente determinado o nome de carocha aplicado ao «fogãozinho portátil em que os funileiros aquecem as ferramentas» ou o «canudo de lata usado pelos calafates para introduzir o breu nas costuras.»182

175

BLUTEAU, op. cit., II, s.v.

176

J. B. L. Almeida GARRETT, Viagens na minha terra, Porto, Porto Editora, 1974, p. 32. O conceito é repetido noutra obra do autor (O arco de Sant’Ana, Porto, Livr. Civilização, 1999, p. 118): «Mas o rapaz viu a bruxa, isso viu ele; e chupado vinha delas, como das carochas.»

177

BLUTEAU, op. cit., s.v. Neste mesmo sentido, o termo «caroza» é usado por Miguel de CERVANTES

(Segunda parte del Ingenioso Caballero Dom Quijote de la Mancha, ed. John Jay Allen, Medrid, Ed. Catedtra, 1995, p. 542): «le puso en la cabeza una caroza, al modo de las que sacan los penitenciados por el Santo Oficio». Na tradução de Aquilino Ribeiro são usados três termos, «carocha», «mitra» e «barrete», para a palavra «caroza» (Cf. Miguel de CERVANTES SAAVEDRA, O engenhoso fidalgo D. Quixote de la Mancha, trad. de Aquilino Ribeiro, Lisboa, Bertrand, 1959, pp. 314 e 318). É possível que estas caroças sejam uma evolução do termo coroças que os penitentes deviam colocar. Segundo as Constituições de Évora de 1534, pecados como «legar homem ou molher pera nom poder aver ajuntamento carnal», tinham como pena o ser «preso e posto publicamente com coroça na cabeça aa porta da igreja.» Estas Constituições determinam ainda que não «façam camisas fiadas e tecidas em hum dia, nem as vistam, nem usem outra forma de feiticeira», de contrário, sejam «preso[s] e encoroçado[s] como dito he». Cf. Consiglieri PEDROSO, Contribuições para uma mitologia popular portuguesa e outros escritos etnográficos, ed. de João Leal, Lisboa, Dom Quixote, 1988, p. 87. Mas este sentido não é assinalado por J. S. Rosa de VITERBO (Elucidário, s.v.), que, no entanto, refere as expressões ‘benefícios encorossados, em corossa, em coroça ou em oroca» como sendo «aqueles em que a simonia se oculta, cobre e esconde», ideia que parece estar presente na cominação das Constituições eborenses. Acrescente-se que hoje o significado de coroça, ou croça é o de uma sobrecapa de palha ou junco para se livrar da invernia.

178

Enciclopédia portuguesa ilustrada, II, s.v., p. 573. Cf. também Leite de VASCONCELLOS, Etnografia portuguesa, VII, p. 315. Teófilo BRAGA, O povo português..., II, p. 309, também diz que o termo significa a «mitra de ignomínia que a Inquisição enfiava na cabeça dos desgraçados que atirava às fogueiras».

179

Alda SOROMENHO e Paulo SOROMENHO, Contos populares portugueses, II, Lisboa, Centro de Estudos Geográficos / INIC, 1986, pp. 111-14.

180

À descoberta de Portugal, Lisboa, Selecções do Reader’s Digest, 1982, p. 19.

181

Artur BIVAR, Dicionário..., s.v.

182

A côr da carocha motiva diversos zoónimos dados a «cavalos, cabras, cães».183

Leite de Vasconcellos refere que «Em Venade (Caminha) tanto aos bois como ao lucano, dão o nome de carroncho»184

com a justificação seguinte: «O nome de carôcho, imposto a um boi, provém da semelhança que o povo encontra entre os cornos deste ruminante e as mandí- bulas da carocha (insecto) também denominadas cornos por causa da dureza e disposição».185

E acrescenta ser frequente, na província de Trás-os-Montes, «chamar carocho um lavrador a um boi que ele tem em estima particular: ‘eh! meu carocho! anda meu carocho que vais comer!’»186

Esta acepção afectiva determina a utilização do termo em relação a pessoas. O etnógrafo ucanhense refere que «uma mulher, falando do marido diz, por exemplo, ‘o meu carôcho’ e falando de uma filhita diz ‘a minha carochinha’». A expressão resultaria de uma «falsa interpretação de carocho como derivando de caro, querido, com o sufixo ocho».187

Mas pode haver outras explicações, como a que era dada por pessoa do meu conhecimento, que chamava «carochinha» à filha, porque esta em criança gostava muito da personagem da história.

Seja como for, não se pode esquecer que o termo também é usado em sentido forte- mente ofensivo. Uma das personagens de Aquilino Ribeiro invectiva outra dizendo: «Pois enganas-te [...], coscuvilheira, lacrau, carocha de altar.»188