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H ETERÓNIMOS

3. A FECUNDIDADE DAS MUSTELAS

Um dos heterónimos da carochinha é a doninha, a qual figuraria como principal personagem feminina num conto que Filinto Elísio teria ouvido a sua mãe, uma tricana de Aveiro.195

Nas versões do nosso corpus, porém, este nome apenas é retido pela V5. De

qualquer maneira, o testemunho de Filinto atesta ser esta tradição conhecida pelo menos desde o segundo quartel do século XVIII.

A doninha, de seu nome científico Mustela nivalis, é um mamífero carnívoro.196

Tem o corpo esguio, «delgado e alongado, as patas curtas com garras não retrácteis, uma cabeça pequena com um focinho proeminente e orelhas também pequenas e redondas. A cauda, curta e pouco espessa, não ultrapassa 2/3 do comprimento cabeça-corpo. Como se pode ver na Imagem 3 do Apêndice II, a pelagem curta é castanha arruivada no dorso, nas patas e na cauda, sendo o ventre completamente branco. A linha de demarcação entre o dorso e o ventre é geralmente irregular embora possam aparecer exemplares com uma linha direita.»197

195

A informação é retirada de Teófilo BRAGA,Contos tradicionais..., II, p. 56. Filinto Elísio (1734-1819) aludiria na sua obra ao conto «João Ratão e a Princesa Doninha».

196

Aquilino RIBEIRO, O arcanjo negro, Lisboa, Bertrand, 1960, p. 33, diz: «Dava-se conta do tempo ferrado nele como a doninha no cachaço da lebre que vai comendo».

197

Este animal tem habitats muito variados, desde pastos a florestas e zonas monta- nhosas, quando neles descobre abrigo e presas, preferindo, no entanto, «campos agrícolas, especialmente aqueles que se encontram separados por muros de pedras. Geralmente é ani- mal solitário e activo tanto de dia como de noite (alternando algumas horas de actividade com algumas horas de repouso). A sua dieta consiste principalmente de mamíferos, nomea- damente roedores e, nalguns locais, coelhos. Aves, répteis e ovos podem também ser consumidos ocasionalmente.»198

No que se refere à reprodução, sabe-se que tem crias «entre Abril e Maio, podendo haver uma segunda ninhada em Julho-Agosto se houver alimento com abundância. A gestação dura entre 34 a 37 dias e o número de crias varia entre 4 e 6 indivíduos que atingem a maturidade sexual cerca dos 3-4 meses.»199

Os filhos da doninha nascem cegos e, por isso, são alimentados pela mãe durante bastantes meses, mesmo depois da amamen- tação. Uma das características que torna particularmente notória a doninha é o seu mau odor forte e fétido. Uma tradição referida por Leonardo Da Vinci diz que, «ao encontrar a toca do basilisco, mata-o com o odor da urina que faz».200

Bluteau diz que é um «animal daninho aos pombais, capoeiras, etc.»201

Por isso, e apesar de útil – destrói e devora ratos, toupeiras, rãs, caracóis, etc. – move-se «contra ele uma extraordinária guerra de extermínio.»202

Consegue-se, no entanto, domesticá-la, embora com dificuldade, quando captada muito nova.203

A inimizade entre a doninha e as serpentes, às quais dá luta,204

também é afirmada num texto proveniente do concelho da Guarda, que diz: «A doninha faz uma missa para atrair a cobra. Esta vai e a doninha atira-se-lhe à cabeça e mata-a».205

Segundo Ullman, «um dos casos mais intrigantes» de como «as criaturas e as coisas vulgares dotadas de qualidades sobrenaturais podem tornar-se objectos de terror e de tabu» é «a bem conhecida série de nomes eufemísticos para a doninha. Nas línguas românicas há apenas uns sobreviventes isolados de mustela [...]. Em francês foi substituído por belette, diminutivo de beau, belle, que significa literalmente ‘bela mulherzinha’. Noutros lados o eufemismo funcionou principalmente por meio da mudança de significado: os italianos e os portugueses chamam ao animal ‘senhorinha’ (donnola, doninha), os espanhóis ‘bisbilho- teira’ (comadreja), enquanto que na Dinamarca é conhecida por ‘bela’ e ‘noiva’, na Suécia por ‘linda rapariga’ ou ‘jovem senhora’, na Grécia e na Albânia por ‘cunhada’, etc. Em

198 http://carnivora.fc.ul.pt/doninha.htm 199 Ibid. 200

Leonardo DA VINCI, Bestiário, fábulas e outros escritos, trad. de J. Colaço Barreiros, Lisboa, Assírio Alvim, 1995, p. 33. O autor acrescenta que este odor «muitas vezes mata a própria doninha.» Cf. original do texto de Da Vinci em http://www.letteraturaitaliana.net/pdf/Volume_3/t57.pdf, p. 49

201

BLUTEAU, op. cit., III, s.v.

202

Grande enciclopédia portuguesa e brasileira, IX, s.v., p. 247.

203

Ibid.

204

ARISTÓTELES, História dos animais, liv. IX.

205

J. Leite de VASCONCELLOS, Etnografia portuguesa, VII, p. 267. Não diz o autor em que consiste tal «missa», nem foi possível obter informação sobre o assunto.

inglês, a doninha teve outrora o nome de fairy, e Erasmo registou que era de mau agouro mencionar o nome do animal quando se ia à caça».206

As observações de Ullman relativamente à tradição portuguesa, podem ser comple- tadas com o que Gil Vicente diz na Farsa chamada Auto das Fadas: «Este não he bem furão / Nem ginete nem esquio: / He um bichinho vadio»,207

aparentemente em contradição com o facto de ela gostar de viver junto de lugares habitados. Por outro lado, sabe-se que são vários os nomes usados em Portugal para designar este animal. O mais comum corres- ponde ao arcaico donezinha208

ainda usado em linguajares provincianos, como o de Penedono.209

Em Moncorvo, dá-se-lhe o nome de norinha, que Leite de Vasconcellos supõe «ser diminutivo de nora como nome de parentesco», tal como o espanhol comadreja.210

Aliás, esta designação não é estranha à nossa tradição, pois se lhe chama comadrinha em S. Miguel, Açores, num conto em que um mágico e seu aprendiz se metamorfoseiam diversas vezes, numa das quais este se transforma num anel que a princesa põe no dedo. Atirado ao chão, torna-se em painço, quase inteiramente comido pela galinha em que se tinha transfor- mado o mágico. O único grão restante muda-se em doninha: a «comadrinha (doninha), pegou às dentadas na galinha e matou-a. Mal acabou, tornou-se em homem»,211

casando com a princesa. A associação da doninha com a magia, expressa neste texto, é referida igualmente por uma informadora de Leite de Vasconcellos que disse parecer-lhe haver uma «qualquer relação da doninha com as bruxas», não sabendo, porém, qual. O mesmo autor refere ainda que «A doninha é um ser demoníaco», citando uma publicação estrangeira.212

Deste conjunto de testemunhos e associações parece deduzir-se que o termo doninha é menos rico de conotações do que o de carochinha, o que teria contribuído para que figure apenas numa versão. Evoca, no entanto, mais claramente a noção de donaire feito de elegância requebrada e dengosa, própria da mulher enganadora, embora esta última carac- terística não seja determinante para a história, pois nem o João Ratão é enganado no namoro nem a sua morte é provocada por ela.

Seja como for, o texto da V5 diz explicitamente que a doninha, como verdadeira

senhorinha, se enfeita para cativar seu noivo: «A mãe aconselhou-a que se asseasse muito e que se pusesse à janela para dizer a quem passasse se queria casar com ela.» Ou seja, mesmo quando naturalmente bela, é necessário que a noiva se revista de uma beleza cultural para poder aceder ao casamento. O ser despido e selvagem, por mais belo que seja, não se casa. O matrimónio, como constructo social, obriga à representação de papéis que

206

Stephen ULLMAN, Semântica, Uma introdução à ciência do significado, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1973, p. 428-9.

207

Gil VICENTE, «Farsa chamada ‘Auto das Fadas’», in suo Obras, Porto, Lello, 1965, p. 192.

208

J. Leite de VASCONCELLOS, Etnografia portuguesa, II, p. 130. Cf. a utilização no fabulário esopiano medieval em J. Leite de VASCONCELLOS, «Fabulário português, manuscrito do século XV», Revista Lusitana, 8 (2), 1903-1904, p. 120, referido mais adiante no texto.

209

A. Gomes PEREIRA, «Tradições populares e dialecto de Penedono», Revista Lusitana, 12 (3-4) 1909, p. 313.

210

Leite de VASCONCELLOS, Etnografia portuguesa, II, p. 130.

211

Teófilo BRAGA, Contos tradicionais..., I, p. 104.

212

J. Leite de VASCONCELLOS, Etnografia portuguesa, VII, p. 267. Para o autor, é esta nota demoníaca que justifica o seu uso do termo como «palavra de carinho». A mesma justificação é apontada para o uso da palavra «compadre» para designar o Diabo.

são como que uma máscara da natureza. O vestuário, ao envolver o actor, introdu-lo num novo espaço de relações que lhe estaria vedado se dele não estivesse revestido.

Um poeta da antiguidade clássica, Ovídio, fala longamente da origem mítica da doninha e lembra nas suas Metamorfoses que ela é ontogeneticamente uma mulher engana- dora; e tanto que consegue iludir uma deusa. A história é, resumidamente, a seguinte:

T2.1: Galantis transformada em doninha

Estando Alcmena, durante sete dias e sete noites, em trabalho de parto de Alcides, filho de Hilos, pedia em grandes gritos a Lucina e aos deuses que presidem ao nascimento que lhe dessem um sucesso feliz. A deusa veio, mas, subornada por Juno, sentou-se sobre o altar erguido à porta do palácio, a perna direita sobre o joelho esquerdo, os dedos entrelaçados para paralisar os seus esforços, dizendo em voz baixa palavras mágicas que diferiam o termo das dores de Alcmena, entre cujas escravas se encontrava a loura Galantis, nascida obscuramente, a qual suspeitou da trama urdida pelo ressentimento da rainha dos deuses. «Nas suas idas e vindas frequentes, repara em Lucina sentada sobre o altar e com as mãos cruzadas sobre os joelhos. E diz-lhe: ‘Quem quer que sejas, felicita a minha senhora. Alcmena já não sofre. Tornada mãe, os seus votos foram ouvidos’. Lucina, espantada, levanta-se bruscamente e desenlaça as mãos. No mesmo instante [Alcmena] foi libertada. Diz-se que Galantis, enganada a deusa, se riu. E ria ainda quando a deusa a agarra pelos cabelos, a arrasta, a deita ao chão, a impede de se levantar e muda os seus braços em pés. A anterior vivacidade permanece e mantém a côr de antes; mas, [feita doninha], a sua forma é diferente. Porque com boca mentirosa ajudara a parturiente, ela pare pela boca; e habita, como antes, em nossas casas.»213

Este interessantíssimo trecho suscita algumas observações, já que tanto as actividades de Galantis como as da doninha interessam ao sentido do conto português. A primeira vai no sentido de considerar pouco provável que se tenha admitido que a doninha desse à luz pela boca. A observação teria ensinado aos naturalistas romanos que a procriação da doninha era igual à dos outros mamíferos. Por isso, o texto de Ovídio só faz sentido em termos simbólicos. O ponto de partida é que, sem as palavras de Galantis, Hércules teria ficado retido na matriz de Alcmena: as pernas cruzadas e os dedos entrelaçadas de Lucina não lhe permitiam sair para a luz do dia. Não sendo, ela mesma, parturiente, Galantis dá à luz vicariamente, pela palavra que engana Lucina, a deusa que presidia ao parto. Por isso a sua boca é uma verdadeira matriz, embora substitutiva.

Uma segunda observação refere-se às diferenças entre a história da doninha portuguesa e a Galantis romana, notórias tanto ao nível da intenção como da problemática. Na verdade, embora ambas se refiram à reprodução, em Ovídio trata-se do nascimento adiado de um semideus, enquanto que no conto português se fala dos prolegómenos da

213

OVÍDIO, Metamorfoses, IX, V, 273-324. O texto latino referente à metamorfose de Galantis é o seguinte: «Numine decepto risisse Galanthida fama est. / Ridentem prensamque ipsis dea saeva capilis / Traxit, et e terra corpus relevare volentem / Arcuit, inque pedes mutavit brachia primos. / Sternuitas antiqua manet, nec terga colorem / Amisere suum: forma est diversa priori. / Quae, quia mendaci parientem juverat ore, / Ore parit, nostrasque domos, ut et antea, frequentat.» Notar que HOMERO (Ilíada, XIX, 95-119) atribui à intervenção directa de Hera o atraso do nascimento de Héracles.

concepção de um animal monstruoso. De facto, na metamorfose musteliana, a geração foi tão plenamente realizada que a própria esposa de Júpiter, exasperada, tenta adiá-la indefini- damente, contra natura. Galantis viabiliza um parto alheio, de concepção sobrenatural; a doninha portuguesa, ao invés, não chega a ser parturiente de um filho antinatural e é confrontada com a sua própria infecundidade. Por outro lado, é notório que no texto ovidiano existe uma equivalência entre o sexo e a boca, segundo conotações que parecem centrais para a interpretação da história da carochinha, como se verá mais adiante.

Um terceiro aspecto, num registo mais teórico, é que este fantasioso e mítico parto pela boca significa que a palavra é tão necessária à reprodução como a matriz. Por isso se pode dizer que estas duas aberturas do corpo são equivalentes: boca que fala é matriz que se abre. A palavra de Galantis teve mesmo a capacidade de abrir uma matriz alheia. Por isso, não admira que Ovídio diga que a deusa a condenou a continuar a dar à luz pela boca. Tal castigo reconhece, consagra e eterniza a eficácia da palavra de Galantis. Tão definitiva ela é que se cumpre sempre mesmo que para isso seja necessário enganar uma deusa. De facto, sem a abertura realizada pela palavra, Alcmena teria ficado indefinidamente com um feto em seu seio; e um feto não é um filho. Pode-se, pois, dizer que, em última análise, a metamorfose de Galantis em doninha atesta que, no limite, não há nascimento sem que a palavra o suscite e que a palavra, mesmo de uma escrava, é mais forte que as maquinações dos deuses.

A equivalência entre boca e matriz antes deduzida de símbolos não totalmente explicitados, é afirmada de forma clara na tradição portuguesa. Um conto inédito, coligido em 1976 em Serra de El-Rei, concelho de Peniche, mostra-o claramente.

T2.2: Os gémeos

«Eram dois miúdos gémeos e que tinham-le dado uma cadelinha. E atão a cadelinha depois levou descaminho, perdeu-se. Eles, coitados, andavam muito apaixonados porque não sabiam da cadelinha. Vai um dia foram para a ‘scola e ‘tavam no recreio e andavam a jogar à bola. A senhora que ‘stava a vê-los jogar a bola estava assintada e atão lá a bola correu, rolou p’rós lados das pernas da senhora. E ele como foi apanhá-la, nat’ralmente ela não ‘staria bem composta e ele viu que ‘staria lá assim uma coisa preta e ficou a pensar: ‘diabo, ind’assim será a minha cadelinha?’ Foi ter com o irmão e disse-le: ‘Olha, a nossa cadelinha, quem tem é a senhora professora. Tem-na dentre as pernas.’ ‘Não acredito’, disse o outro. ‘Não acreditas, vai ver.’ Lá tornaram a jogar a bola, e o outro foi buscá-la e afirmou-se bem. Afirmou-se bem. Quando vei’ novamente p’ró pé do irmão disse: ‘Não é. Não é a nossa cadelinha. A nossa cadelinha tinha a boca assim [gesto horizontal] e aquela tem a boca assim [gesto vertical], e atão nã é!’»214

214

Contado por Tiago dos Santos Colégio, Serra d’El-Rei, Peniche. O conto faz parte de uma colectânea pessoal e foi coligido por António Batoca no quadro de um seminário de investigação sobre a «Cultura Popular de Ferrel», realizado sob minha orientação em 1976. Há notícia de textos semelhantes noutras zonas do país. Em Salir, do concelho de Loulé, uma mulher contava a história como se se tivesse passado com dois irmãos e sua avó. Em Cabeça Gorda, do concelho de Beja, dois contadores, um homem e uma mulher, referem um texto quase idêntico em que os actores também são dois irmãos e uma professora. A história é contada como se tendo passado na Aldeia do Rosário, Castro Verde (cf. A. Machado GUERREIRO, Anedotas, Contribuição para um estudo, Lisboa, Editorial Império, 1986, pp. 95 e 111-2).

Esta anedota confirma a equivalência simbólica e as diferenças entre a boca do animal e a matriz da mulher, as mesmas que se encontram no texto ovidiano. 215

E se do texto acima se não pode tirar muito mais do que estas relações, elas são suficientes para mostrar que ainda hoje estão presentes na tradição popular os esquemas simbólicos que levaram à produção da história de Galantis.

Em complemento destas reflexões valerá a pena olhar para um pormenor da V5 que

manifesta os mesmos pressupostos imagéticos: «Quando a doninha chegou da fonte e viu a porta fechada, bateu e tornou a bater, chamou e tornou a chamar, mas o João Ratinho não falava. Assim que se cansou de bater, viu passar um serralheiro e disse-lhe que lhe abrisse a porta, que lhe dava uma tigela de caldo de farinha.» Para além de que esta intervenção do serralheiro não existe em nenhuma outra versão portuguesa,216

é estranha, do ponto de vista lógico. Pode-se perguntar, com efeito, porque é que a doninha, como boa dona da casa, não levou consigo uma chave para a fonte, de forma a não necessitar dos serviços de ninguém. Ou, por outra, se não seria mais natural que a porta não tivesse chave, como acontecia frequentemente nas aldeias de antanho. Decorrendo de comportamentos pouco racionais, é legítimo perguntar se a presença de um serralheiro neste ponto da história não tenta inculcar uma significação específica.

A colocação deste texto «estranho» no contexto da história de Galantis talvez ajude a compreendê-la. Pelo menos permite ilustrá-la. É, com efeito, tentador pôr a abertura feita pelo serralheiro da casa da doninha (a matriz doméstica) em paralelo com a abertura da matriz de Alcmena operada por Galantis. No primeiro caso, a abertura realizada por um agente exterior revelou a morte efectiva do João Ratão, e por extensão a negação da probabilidade de nova vida (a infecundidade da carochinha); no segundo, pelo contrário, a intervenção de Galantis na revelação do conteúdo da matriz de Alcmena pôs em evidência uma vida gerada pelo próprio Júpiter. O serralheiro seria como que o epígono de todos os artífices que revelam o sentido do que é anti-natural. Ao contrário, Galantis representaria todos os mediadores praepter-naturais. Ambas as funções são, porém, puramente instrumentais: o serralheiro permitindo a verificação da existência da morte dentro da casa da carochinha e, por arrastamento, a sua infecundidade efectiva; Galantis, ajudando a que se manifestasse uma fecundidade total e perfeita, porque divina e miraculosa, na génese e no termo.

Pode-se objectar que estas deduções se baseiam em textos – carochinha, gémeos e Galantis – provindos de contextos culturais dissemelhantes e, por isso, não comparáveis. A teoria resultante teria, pois, aplicabilidade restrita. Não se pode, no entanto, negar a racio- nalidade das aproximações feitas. E invoca-se o facto de os mesmos procedimentos

215

Claude LÉVI-STRAUSS («Une préfiguration anatomique de la gémellité», in Systèmes de signes, Textes réunis en hommage à Germaine Dieterlen, Paris, Hermann, 1978, p. 371) refere uma versão salish, segundo a qual uma «lebre se escondeu sob uma árvore caída atravessada no caminho que fez cair a [heroína do mito]. A lebre vê as partes íntimas desta e escarnece do seu aspecto. Furiosa a rapariga bate-lhe com o seu bastão e parte-lhe o focinho: donde o lábio leporino que têm desde então os leporídeos.» O texto é utilizado por Lévi- Strauss no contexto da geminalidade: «Por outras palavras, ela inicia no corpo do animal uma fissura que, se fosse terminada, duplicá-lo-ia e transformá-lo-ia em gémeos.»

216

estarem em operação noutros contextos de produção simbólica. Ora não é provável que tais coincidências sejam casuais, referindo-se como se referem ao corpo humano, o qual foi certamente uma das primeiras realidades a ser olhada simbolicamente.

Seja como for, as aproximações feitas não permitem dizer que a doninha portuguesa tem como modelo a doninha ovidiana. O paradigma simbólico da nossa história não é necessariamente latino, embora as relações culturais existentes, desde a antiguidade, entre a Lusitânia e o Lácio pudessem sustentar tal hipótese. De facto nem a precedência nem o parentesco cultural obrigam a supor uma cópia. A ideia de que há esquemas simbólicos comuns a toda a humanidade é suficiente para explicar estas semelhanças. De qualquer maneira é claro que os itens culturais pedidos emprestados pela cultura dependente são seleccionados em função do contexto em que são inseridos e não do lugar que ocupavam na origem. E, mudando de enquadramento, mudam de função.

Esta é a razão que nos leva a não insistir em paralelos provindos de zonas culturais diferentes daquelas em que nos movemos, mesmo quando as suas semelhanças são evidentes.217

Mas não é incorrecto explorar, como no caso de Alcmena, os paralelos da nossa área cultural, tomada em sentido amplo, pela simples razão de que nenhuma cultura está isolada. Todas elas se definem num sistema de trocas em que a apropriação é feita, ora mimeticamente, ora dialecticamente, em função do contexto em que os elementos pedidos emprestados são inseridos.